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O lugar do retrato: séculos XIX e XXI

Por Luiz Henrique Vieira
Editoria Márcia Charnizon
A partir de meados do século XIX, partindo da França para os quatro continentes, um novo hábito passa a compor o cotidiano de pessoas das classes sociais mais elevadas: ao irem de visita à casa de amigos e/ou de familiares, era comum que essas pessoas levassem consigo os seus retratos, que eram oferecidos aos donos da casa. Com as mesmas dimensões dos cartões que, ainda hoje, são usados social ou profissionamente, com a finalidade de se apresentar ao interlocutor, os pequenos retratos “oitocentistas” foram batizados por seu criador, o francês Disdéri, como cartes de visite.
Se nos primeiros anos após o seu advento, os cartões eram dispostos em salvas de prata, bandejas ou similares, devidamente colocados sobre aparadores, em lugar acessível e de destaque na sala de visita ou no hall de entrada das casas elegantes, logo surgiram os álbuns para mantê-los agrupados e protegidos. Dispostos em bandejas ou compondo os suntuosos álbuns, esses cartões pretendiam tanto afirmar a posição social dos retratados quanto definir o círculo social e de influências daqueles que ostentavam as coleções de retratos em suas salas.

Figura 1: : (esquerda) S.l. s.n.. Carte de visite de jovem não identificado, s/ data. (centro) Manoel Garcia. Carte de visite de Américo Pinto, Rio de janeiro, c. 1870. (direita) Elliott &Fry. Carte de visite de homen não identificado, Londres, c. 1865. (datas estimadas).
Naquela época, deixar-se retratar constituia um evento extraordinário, que implicava uma cuidadosa escolha do figurino (incluindo jóias e relógios), esmerados penteados, acessórios cênicos apropriados, a pose adequada ao temperamento e intenção do modelo e tudo que pudesse contribuir na construção de uma imagem que revelasse (ou simulasse) estabilidade moral e prosperidade social – valores tão almejados pelas classes burguesas, em franca ascensão político-financeira ao longo do século XIX. Desta forma, a estética usada nesses retratos era pensada de forma a ressaltar aspectos que elevassem a imagem do retratado, aproximando-o de valores idealizados e distanciando-o de quaisquer indícios de perturbação (moral, estética, intelectual ou social). Assim, nada mais lógico do que buscar referências em pinturas que retratassem membros da aristocracia, copiando-lhe as poses, a ambientação (fazendo referência a interiores palacianos) e paisagens pacificadoras como fundos. Toda essa encenação (e porque não se cogitar em construção identitária?) se dava nos estúdios fotográficos, que no decorrer da segunda metade do século XIX, foram se tornando pontos de encontro imprescindíveis na agenda dos endinheirados ou um lugar a ser eventualmente visitado por representantes de classes menos privilegiadas.
Podemos dizer que os estúdios constituíram o principal palco dos retratos oitocentistas, não devendo, no entanto, deixar de mencionar que alguns fotógrafos prescindiam do estúdio para produzirem seus retratos. David Octavius Hill, por exemplo, realizou vários autorretratos ambientados em cemitérios, e Julia Margaret Cameron preferia trabalhar no quintal de sua casa. Entretanto, é fundamental que ressaltemos a diferença de conteúdo entre o trabalho realizado por esses dois artistas e os retratos tipológicos produzidos na maioria dos estúdios. Talvez não seja errôneo afirmar que tanto o trabalho de Hill quanto o de Cameron estavam comprometidos com questões existencialistas, enquanto os cartes de visite (pelo menos, a princípio) cumpriam uma função de ordem prática – a de projetar socialmente o retratado.
Hoje, passados mais de 160 anos após a invenção do retrato carte de visite, as pessoas tendem a dispensar o trabalho do fotógrafo profissional e o uso do estúdio fotográfico como cenário para os seus retratos. Sim, pois “todos” nos tornamos fotógrafos especializados em captar nossas próprias imagens – vivemos com a lente apontada para nossos próprios corpos (especialmente os rostos, sempre prontos a esboçar um sorriso do tipo X ou Y). E o antigo estúdio foi substituído por qualquer lugar onde o indivíduo deseja estar.
Figura 2: Eugenio Rache. Frente e verso de CVD do menino Argimino, oferecido ao tio, Manoel Vicente Lisboa, Jaguarão, RS, s/ data.
Se, em meados do século XIX, o portátil formato carte de visite barateou o custo do retrato e favoreceu a circulação da autoimagem do indivívuo dentro do seu círculo social, hoje, com o advento da internet e o surgimento das minúsculas câmeras (celulares) automáticas, o retrato (especialmente o selfie) é produzido com custo irrisório, em escala inumerável e disponibilizado (instantâneamente) em redes sociais para um público que extrapola os limites do conhecimento interpessoal. Se o homem oitocentista vislumbrava a possibilidade de investir em si mesmo como imagem, o sujeito do século XXI não hesita em tecer sua autobiografia imagética, com um número prodigioso de imagens que contemplam, em pé de igualdade, desde os eventos mais significativos até os mais banais – pois todas as ocasiões devem ser registradas.
Se um álbum de cartes de visite oitocentista dizia muito da abrangência do círculo social do proprietário do álbum, não podemos nos esquecer de que, possivelmente, entre os cartões dos “verdadeiros” amigos havia aqueles que representavam celebridades da época, como políticos, artistas, aristocratas, etc. Tais retratos de nomes proemientes eram dispostos nas vitrines dos estúdios fotográficos e estavam à venda para figurarem, nos álbuns, ao lado de familiares e amigos do colecionador das imagens. Podemos traçar um paralelo entre a aquisição e inclusão dessas imagens nos antigos álbuns e o que testemunhamos atualmente nas redes sociais, onde o colossal número de “amigos” acabam produzindo no sujeito uma falsa sensação de influência social e de efetiva interação interpessoal. Talvez, a mais popular das redes sociais seja o Facebook – o excepcional álbum de retratos do homem contemporâneo.
Figura 3: D. L. Schröder Photograph, Bremen, Alemanha. Retrato de duas jovens: frente de verso do carte-de-visite, albúmen, 10,4 x 6,4 cm, c. 1880 (data estimada).

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