Por Wellington Cançado
Praticamente tudo que as sociedades modernas, extensivamente urbanas, constroem, produzem e consomem vem do solo. Minerais, petróleo, madeira e água viabilizam a complexa tectônica do mundo ocidental – ferramentas, objetos, máquinas, veículos, edifícios e cidades são feitos de metais, plásticos, betume, compensados e outros sintéticos.
Para que esta simples página exista muitas árvores foram necessárias e um volume brutal de solventes, resinas, óleos e pigmentos orgânicos e inorgânicos foram mobilizados para fixar as palavras no papel.
Movidos a combustíveis fósseis e baterias alcalinas, com nossos corpos invadidos por titânio, silicone, medicamentos e nanorobôs, continuamos, à revelia dos delírios tecnocientíficos e aceleracionistas, dependentes de outros seres, da terra, dos rios e oceanos para sobreviver enquanto espécie.
Se convencionamos em algum momento chamar tudo isso de Natureza, foi em grande medida para que pudéssemos manter a “distância crítica” necessária para subjugá-la aos desígnios humanos, e uma vez desanimado o mundo, redesenhá-lo como um grande repositório de recursos naturais e provedor inesgotável e benevolente de matérias-primas. A voracidade capital dessa economia extrativista que não cessa de comoditizar, foi capaz de fazer da urbanização – matriz espacial constitutiva da modernidade – um artefato planetário sem precedentes, um “bioma antropogênico” que reconfigura material e extensivamente ¾ da biosfera, com impactos profundos no regime climático e nos sistemas ecológicos.
Mas a invisibilidade ociosa da natureza e de certos humanos submetidos à condição de “naturais” não passa de uma das falácias do “euroexclusivismo” atuante no cerne da modernidade ocidental, diria José Jorge de Carvalho. Pois hoje bem sabemos, a separação entre Natureza e Cultura não tem a universalidade que se advoga não somente porque esta carece de sentido para aqueles que não são modernos (os ameríndios, os aborígenes, etc), mas também porque as relações que os humanos mantem consigo mesmos e com os não-humanos não pode apoiar-se em uma única cosmologia e uma ontologia tão aferradas como as nossas a um contexto específico.
As fundações deste monumental edifício dualista que perdura há séculos entretanto, vem sendo abaladas principalmente pelas descobertas antropológicas e arqueológicas na Amazônia – bioma que sintetiza como nenhum outro o imaginário natureza idílica e intocada – que revelam uma floresta altamente antrogênica que resulta de milênios de intervenção humana (indígena) em cooperação com não-humanos (plantas e animais).
Se nos parece óbvio que “grande terra-floresta” yanomami e tantos outros ambientes extra urbanos diferem radicalmente da “produção do espaço” antropocêntrica e predatória como concebemos nas cidades, bem menos evidente é a maneira pela qual os povos da floresta concebem as relações com as entidades e seres que os cercam.
Pois a ideia de “produção”, como se as atividades tivessem o objetivo de criar um produto consumível ontologicamente dissociado dos materiais que lhes deram origem, lhes é totalmente alheia. E é por isso que não somente a Natureza não existe para os ameríndios – pois tudo é fabricado e cultivado – como a noção de recursos não faz sentido algum para os mesmo, justamente porque o que entendemos como produção são para estes povos, de fato, relações entre pessoas, sejam estas árvores, peixes, rios ou uma montanha. Ou como diria o antropólogo Philippe Descola, em outros termos, “são essas relações entre sujeitos (humanos e não-humanos) que condicionam a produção dos meios de existência e não a produção de coisas que condiciona as relações entre sujeitos (humanos)”.
Para o multinaturalismo ameríndio – no qual existem tantos mundos quanto perspectivas –, os outros-que-não-humanos não deixam de ser seres com capacidade de agência e não deixam de ser gente. Entre este mundo e as formas essencialmente desanimadoras pelas quais nós não-indígenas estabelecemos as relações sociais e a interagimos com a natureza há, pois, um abismo ontológico colossal. Abismo à espera de novas pontes diplomáticas, como diria Bruno Latour.
E enquanto o cimento arde nas cidades e o veneno queima no campo é nos extra espaços da urbanização planetária que estão sendo redefinidas as bases intestinas do mundo por vir. É lá onde repousam as reservas inestimáveis de bens primários, prontas para serem esquadrinhadas, mineradas, refinadas, processadas, expropriadas, bem como as ameaças às múltiplas formas de vida que escapam ao plano. Mas é de lá sobretudo que emergem as questões e propostas que podem reinventar o futuro: os “direitos da natureza”, os “Estados plurinacionais”, a “crítica xamãnica à economia política”, a “máquina cosmológica do cinema indígena”…
Sob a cobertura densa e cortante do capim colonião, Marilton Maxakali completamente embrenhado nessa touceira de arquitetura gramínea, segue os rastros de uma capivara, numa busca frenética com a colaboração dos espíritos auxiliares da caça. Em suas mãos, uma lança que se dá a ver apenas parcialmente, estando sua ponta afiada – esmerilhada seria o termo correto – fora do plano. A lança, como já pudemos ver anteriormente no filme, é um corte de um grande vergalhão de aço amplamente utilizado na construção civil para armar o concreto das estruturas. A captura da capivara, como viríamos a saber, muito mais do que pela necessidade de alimento enseja o encontro ritual com humanos tornados não-humanos. O encontro com parentes humanos que se tornaram bichos após a morte.
Kuxakuk Xak – Caçando Capivara, filme de Derli, Marilton, Juninha, Janaina, Fernando, Joanina e Zé Carlos Maxakali realizado em 2009, nos assombra com sua “imagem-corpo-verdade”, enquanto os Tikmũ’ũn – Maxakali como são conhecidos pelos não-indígenas – nos desafiam com suas pulsantes estruturas sociocosmológicas.
Como diria a etnomusicóloga e parceira do “povo gavião-espírito” Rosângela de Tugny, no “mundo de infinitudes tikmũ’ũn, as sucessivas perdas materiais – território, fauna, flora, água, alimentos, casas, e mesmo de pessoas – são atualizadas a cada dia, com seus yãmĩyxop, os “povos espíritos”que chegam às aldeias vindos de “florestas virtuais”.
Isael Maxakali em um debate recente na Escola de Arquitetura da UFMG, após a exibição de Caçando Capivara se recorda que sempre lhe questionavam em Belo Horizonte o fato de a lagoa da Pampulha estar povoada de capivaras, enquanto na aldeia está estava praticamente extinta. E indaga ao público: “então porque não levamos as capivaras conosco? Aqui elas vivem na imundice, são vistas como pragas que transmitem doenças. Isso nunca aconteceria por lá”.
Quando Pampulha foi construída na década de 1940, inaugurando a arquitetura moderna entre nós, as florestas eram entidades bastante concretas, mas as cidades brasileiras não eram mais do que projeções de um país do futuro. Naquele momento os tikmũ’ũn, não passavam de 59 individuos, vivendo como podiam nas margens do córrego Umburanas, na fronteira entre Minas Gerais e a Bahia, e como nos mostra Roberto Romero em seu trabalho “A errática maxakali”, a extinção dos “remanescentes” por morte ou dissolução na sociedade nacional era então tida como certa, mesmo por seus eventuais aliados (hoje, somam cerca de duas mil pessoas).
Caçando capivara é uma das tantas facetas do multidiverso cinema indígena, – experiência relativamente recente –, que desde que os modos de ver ocidentais foram engenhosamente canibalizados pelo “pensamento selvagem”, tem se tornado uma ferramenta crucial na construção de discretas pinguelas interculturais e interétnicas. Mas também uma poderosa tecnologia xamãnica de atravessamentos entre a história e o tempo mítico.
E se, para os ameríndios “o mito não é apenas o repositório de eventos originários que se perderam na aurora dos tempos; ele orienta e justifica constantemente o presente”, como nos diz o etnólogo Eduardo Viveiros de Castro, o cinema indígena acaba por ser um experimento mitoprático de mediação entre os animais, os espíritos, a florestas e a inevitabilidade do mundo dos não-índios, suas imagens, suas cidades, etc. Mas também entre o passado e o futuro, constituindo um catálogo aberto e em processo de possibilidades de outros mundos habitados por outras humanidades.
Nos territórios tikmũ’ũn, como de tantos povos indígenas, já não se vêm há muito antas, ariranhas, jacarés, ou caititus, nem se ouvem o pio da jacutinga, das araras ou do gavião real. Os rios secaram ou estão represados pelas hidrelétricas, os peixes escasseiam e os mosquitos proliferam. A floresta tomba, as montanhas foram escavadas e a “queda do céu” é eminente. O Antropoceno, o aquecimento global e tantas outras versões do fim do mundo que agora assombram os habitantes da cidade são nomes abstratos de realidades concretas para a maioria do indígenas há séculos.
E enquanto por aqui continuamos a exercitar a nossa capacidade de devastação modernizante, reiterando nosso analfabetismo mitológico ao perseguir as capivaras que resistem às cidades inabitáveis que construimos, os Maxacali reinventam as conexões entre os animais, os espíritos, os humanos e o território. Ou como diria André Brasil sobre o “cinema-morcego dos Tikmũ’ũn”, agora “eles filmam como caçadores e caçam como cineastas”.