Editoria Carlos Alberto Maciel e André Luiz Prado
A história das sociedades humanas ensina que, em diferentes tempos e contextos geográficos, as situações em que se dão os encontros entre seus indivíduos e a vida social de fato acontece, sempre estão associadas a determinados espaços. Sejam esses espaços abertos, ao ar livre, ou cobertos e fechados, é por meio da ação direta do homem que eles são criados, em termos materiais e simbólicos, permitindo e potencializando os encontros e, consequentemente, a experiência do indivíduo que pertence a um grupo social. A necessidade de criar espaços assim é tão antiga quanto nossa própria existência enquanto sociedade. Desde a apropriação de cavernas ou de abrigos em árvores pelos nossos antepassados pré-históricos, a vida social e coletiva demanda espaços que possibilitem as trocas sociais que caracterizam a vida em grupo. A construção simbólica (arché) e material (tékton) dos edifícios e dos espaços de uso coletivo sempre foram pautadas pela potencialização do encontro, da ágora ou do teatro entre os gregos, passando pelo fórum e pelo stadium entre os romanos, pelas igrejas e pelos mercados medievais, chegando até os shopping centers, triste retrato das possibilidades de encontro contemporâneas, escassas e mediadas pelo consumo. Contudo, existem espaços que, mais do que possibilitar os encontros, nos ensinam diariamente sobre a vida coletiva: as Escolas. Não somente as lições aprendidas no interior destes edifícios, mas eles próprios, educam os indivíduos para viver em sociedade. Entender a relação que alguns edifícios escolares exemplares estabelecem com seus usuários nos ajudaria a perceber, ao mesmo tempo, a força que os espaços têm na formação dos indivíduos em relação à vida coletiva e também como temos feito escolhas equivocadas no sentido de interditar possibilidades de desenvolvimento social com edifícios escolares desprovidos dessas virtudes.
Um ponto de partida fundamental para iluminar o tema, nesses dias sombrios, seria voltarmos à origem etimológica da palavra Escola: do grego Skholè, que significa ócio, tempo livre. Essa escola, do tempo livre na cidade, é talvez aquele lugar em que desejamos estar sempre, alunos e professores, cidadãos. É também um lugar cada vez mais escasso e necessário em um mundo em que tudo é funcionalizado, e em que as escolas se distanciam radicalmente de sua origem. Se a escola é – ou deveria ser – sobretudo o espaço do tempo livre, que cidades e que arquiteturas corresponderiam a essa vida “escolar”? Vida escolar pode ser entendida não apenas no sentido do tempo despendido na instituição escola, mas como um modo de vida, uma vida do tempo livre, que poderíamos distender um pouco para falarmos de uma vida livre.
Henri Lefebvre reconhece a arquitetura muito mais como instrumento de coerção do que como um suporte à liberdade e um estímulo à criatividade. Ou seja, as formalizações tradicionais da arquitetura caminhariam em um sentido oposto ao da construção de espaços de liberdade. De fato, se analisarmos como a arquitetura surge nos fortes, nos castelos, nas muralhas – que se repetem cotidianamente nas cidades contemporâneas – ou nas organizações fechadas dos claustros panópticos dos hospitais, conventos, presídios e, especialmente, nas escolas – veremos que os esforços de grande parte da arquitetura convergem para a criação de barreiras e limites que procuram constituir domínios territoriais controlados. As instituições escolares que surgem principalmente a partir do século XIX, muitas vezes associadas a ordens e grupos religiosos, incorporam esse forte componente de coerção espacial, por meio do edifício com um pátio interno para onde se voltam todos os seus espaços e onde acontece, de maneira vigiada e isolada da cidade, a vida cotidiana de professores e alunos, muitas vezes em regime de internato. Nesse espaço, a liberdade e o encontro são fortemente controlados. Mas a forma como o espaço escolar educa o indivíduo para a vida coletiva poderia apontar para uma outra direção.
Dois edifícios exemplificam, de diferentes maneiras, como a arquitetura educa e cria possibilidades de encontro e convivência ampliando as margens de liberdade. O primeiro deles, projetado em 1961 pelo arquiteto Vilanova Artigas e construído no campus da Universidade de São Paulo, é o edifício da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Um edifício sem portas, se desenha como uma extensão do território que adentra o interior de uma grande cobertura iluminada. Um edifício sem janelas, recria em seus variados espaços internos um contínuo espacial de grande integração que promove o encontro e a convivência. Nas palavras de seu autor:
A sensação de generosidade espacial que sua estrutura permite aumenta o grau de convivência, de encontros, de comunicação. Quem der um grito, dentro do prédio, sentirá a responsabilidade de haver interferido em todo o ambiente.1
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Aí, o indivíduo se instrui, se urbaniza, ganha espírito de equipe.
O grande espaço interno da FAU-USP não é o claustro panóptico do edifício escolar tradicional de onde todos podem ser controlados e vigiados. Algumas circulações como as rampas abrem-se para o pátio, enquanto outras, como os corredores dos pavimentos, são interiorizadas. Alguns espaços, como a biblioteca, abrem-se visualmente para o vão central, mas com janelas envidraçadas para controle de som. Outros, como algumas salas de aula e ateliês, possuem paredes em meia altura sem qualquer fechamento o que, no sentido contrário, gera privacidade visual sem isolamento acústico e térmico. O vão é um abrigo generoso onde todos se encontram, chegando ou saindo da faculdade, aguardando o início de uma aula, discutindo um trabalho, ou simplesmente passando o tempo. É o espaço que permitiu, em momentos críticos da história brasileira, o encontro engajado e político, exatamente por ser um espaço de liberdade.
O segundo exemplo, mais próximo, é o conjunto edificado para abrigar as Faculdades de Letras, Filosofia e Ciências Humanas e Ciência da Informação no campus da UFMG. Projetado a partir de um sistema ambiental e construtivo que imaginava um contínuo edificado de grande escala que integraria todas as unidades acadêmicas da universidade em uma única megaestrutura, foi previsto como uma malha contínua coordenada modularmente de modo a permitir crescimento futuro no plano horizontal e no vertical. A meta final seria a constituição de um todo edificado que reduziria as diferenças entre departamentos e cursos, promovendo uma grande interação que antecipava no princípio da organização espacial questões contemporâneas relacionadas à interdisciplinaridade e à transdisciplinaridade. A proposta de um tecido edificado contínuo aparece no Plano Geral de 1969 aprovado pelo Conselho Universitário, que apresenta uma proposta viária e um zoneamento geral “(…) recomendando uma arquitetura sistematizada, projetada sôbre malha modular contínua, através da qual possam ser satisfatoriamente resolvidos os problemas de articulação, flexibilidade e crescimento.”
Sua concepção pressupunha, portanto, o crescimento, a transformação no tempo e a inclusão de atributos urbanos no desenho dos edifícios, uma premissa declarada na conceituação do sistema:
Procuramos criar o espaço universitário incorporando a ele relações e significados retirados do espaço urbano, tornando-o assim mais facilmente apropriável. (…) Encaramos o espaço da universidade como extensão da cidade, e procuramos incorporar ao projeto múltiplos significados, quer ao nível formal da atividade, quer ao nível informal, conferindo-lhe grande animação.2
O Complexo FAFICH-FALE-ECI é o que melhor exemplifica isso. Reforçam o sentido urbano do conjunto a continuidade entre unidades e a articulação com a topografia ascendente, bem como a organização de percursos articulados a pátios internos de diferentes proporções, em uma analogia direta com o projeto de 1960 para a Universidade Livre de Berlim, de Candilis, Josic e Woods. O Complexo FAFICH-FALE-ECI têm ainda em comum com o projeto de Berlim as diferenciações claras entre espaços servidos e espaços de serviço, a abertura à transformação do uso no tempo e à personalização do espaço pelo usuário, com previsão de crescimento, e aplicação de redes modulares que se estendem do edifício para a estrutura urbana. É, na UFMG, dentre os fragmento edificados que integrariam esse grande conjunto, o que melhor incorpora os conceitos de um edifício que se urbaniza. Ao evitar a construção de pequenos prédios isolados e interligar em um contínuo edificado que se estende sobre vasta extensão territorial, dilui a ideia do edifício como uma figura contra o fundo do território, e ativa seus espaços internos como lugares de encontro e convivência.
1FERRAZ, Marcelo Carvalho (org.). Vilanova Artigas: arquitetos brasileiros. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1997, p.101.
2UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS. Proposta para um sistema ambiental. Belo Horizonte: UFMG [1976] 101p., s.p.
André Luiz Prado e Carlos Alberto Maciel, arquitetos, mestres e doutores pela EAUFMG, onde são professores. Sócios do escritório Arquitetos Associados.
Este artigo faz parte de uma série dedicada ao ensino de arquitetura. São parte da produção dos arquitetos no âmbito do Grupo de Pesquisa em Ensino de Projeto da Escola de Arquitetura da UFMG.