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O museu nacional e sua morte sintomática

Por Mila Batista Leite Corrêa da Costa
Editoria Liana Portilho

Nasci no tempo das palavras mortas,[1] diz-seque o “ar estava com cheiro de lembrança.”[2] Ea morte do Museu Nacional na Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão, no Rio, em combustão lancinante, é o nó sintomático, signo da insignificância do patrimônio cultural na estrutura topológica do inconsciente nacional.

Maior museu de história natural do Brasil, instituição científica mais antiga do país, o equipamento possuía um acervo de 20 milhões de itens, com coleções de antropologia biológica, geologia, arqueologia, etnologia, paleontologia, botânica e zoologia, com fósseis, múmias, peças indígenas e livros raros. As múmias e objetos egípcios comprados por Dom Pedro I e DomPedro II formavam a maior coleção egípcia da América Latina.

Mas o significante é mais visceral: criado por D. João VI, em 1818, o museu foi palco do nascedouro do Brasil como Estado-nação, cenário para a assinatura da Declaração de Independência, em 1822, pela princesa Leopoldina, e da 1ª. Constituição do Brasil, em 1824. Foi no Palácio de São Cristóvão, naQuinta da Boa Vista, que Dom Pedro I abdicou do trono, na madrugada de abril de1831, quando partiu para o exílio, e, ainda, onde ocorreu a primeira AssembleiaConstituinte da República, realizada entre novembro de 1890 e fevereiro de1891, que marcou o fim do Império no Brasil. O Palácio foi o cenário dos principais fatos que marcaram a história do Brasil independente em 1808, 1822 e 1889.

Um excerto considerável da memória, da identidade e do patrimônio cultural material e imaterial brasileiro foi consumido naquela noite de setembro, no ano de celebração de 200 anos doMuseu Nacional. E uma inquietude convertida em espécie sentida de flagelação vem para apalpar alguma tentativa de consolo, embora irrecuperável.

Patrimônio cultural é conceituado como tudo o que é valorizado, transmitido e perpetuado entre gerações, de modo a provê-las de um relativo senso de continuidade, tornando-se fator constitutivo de identidade e de diversidade cultural local.[3] Éo espaço de reflexão crítica por excelência em torno da construção da memória histórica e cultural e ampara formas de reconhecimento e salvaguarda de bens e manifestações culturais fundamentais para a formação, consolidação e delineamento identitário e cultural de um povo, além de gestar o fortalecimento de modos de resistência.

Na esfera de análise internacional, países em desenvolvimento nos continentes africano e asiático, em especial os recém-descolonizados, cujo patrimônio cultural é composto, predominantemente, por bens de natureza imaterial, contribuíram, de forma paradigmática, para a ampliação do conceito de patrimônio cultural, de modo a incluir a dimensão da imaterialidade, e para ao bsolescência da consolidada dicotomia “ocidente civilizado” – associado ao patrimônio material – e “não-ocidente primitivo”, marcado pela prevalência de bens culturais imateriais – caracterizados, como conceitua a Organização dasNações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco –, por práticas, representações, expressões ou conhecimento associado que comunidades, grupos e,em casos específicos, indivíduos, reconhecem como parte de sua herança cultural.[4]

As políticas culturais, em âmbito nacional, refletem esse alargamento teórico do patrimônio cultural, revigoradas pela ressignificação do conceito de patrimônio na ordem internacional, e tornaram-se essenciais no estabelecimento de prioridades e de diretrizes para a promoção e a proteção das formas culturais locais. Importante realçar que, no Brasil, a perspectiva imaterial do patrimônio cultural, condecorada pela Unesco somente na Convenção para aSalvaguarda da Herança Cultural Imaterial, de 2003,[5] já é objeto de contemplação e reconhecimento desde o início do século XX, em especial, a partir da atuação singular de Mário de Andrade, na década de 1920, partícipe, inclusive, da elaboração do Decreto-Lei n. 25, de 1937, ainda em vigor, que organiza a proteção do patrimônio cultural nacional e dispõe sobre o tombamento.

Desde 1916, ano de registro das primeiras iniciativas protetivas do patrimônio brasileiro, a política de preservação resiste para tentar salvaguardar a memória coletiva do país. A relevante atuação de Mário deAndrade, a partir da década de 20, com sua “descoberta do Brasil” e seus insignes registros das manifestações culturais brasileiras, e a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN – com a Lei n. 378, de 1937, primeira instituição governamental, de âmbito nacional, voltada para a proteção do patrimônio cultural, são exemplos testemunhais de um percurso árduo e singular por seu vanguardismo.

A trajetória de patrimonialização da cultura no Brasil reflete, portanto, o esforço de resgate e de preservação, pautado pela busca de significação e composição da identidade nacional. Nesse contexto, verifica-se a relevante arregimentação de práticas de gestão voltadas para a ampliação do arcabouço legislativo na seara cultural e, assim, a Constituição da República de 1988 tornou-se um marcoreferencial nesse campo, resultado dessa trajetória longeva de sedimentação da política de preservação no país.

O art. 216 do texto constitucional reconhece, nesse passo evolutivo, o princípio da diversidade cultural e consagra uma concepção abrangente de patrimônio, constituído por bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou emconjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

Por sustentar referências a valores do senso identitário e de permanência de uma comunidade, a proteção do patrimônio cultural é, assim, um direito constitucionalmente assegurado de extremo relevo devido à sua clara dimensão social.[6] Em consequência, nesse quadro, o tratamento do patrimônio cultural merece reflexão e olhar cuidadoso. O trabalho fronteiriço da cultura demanda o encontro com o novo que não apenas retome o passado e o converta em precedente estético, mas que consolide o patrimônio cultural como causa social.

Em vista disso, a preservação e a apropriação antropofágica de bens e equipamentos de valor histórico-identitário como o Museu Nacional adensa as possibilidades de transcendência de uma construção da herança cultural como mero espaço de dominação simbólica, passando a significá-lo como instrumento de sustentação identitária e dignificação. Isso porque o cultivo e a preservação de bens culturais e a responsabilidade no trato de acervos de valor cultural ampliam o espectro de representações e significados que os sujeitos dialeticamente constroem em sua própria constituição, na formação de seu patrimônio cultural e, por consequência, da nação.

Essa concepção de patrimônio como “terceiro espaço de enunciação”,[7]marcado por novos modos de representação, de adensamento do processo de construção das narrativas nacionais como modalidade discursiva,[8] é condicionada à formação de acervos de capital simbólico que contribuem para o fortalecimento das diferenças culturais, nomeadamente a partir de novas articulações de identidade e poder consolidadas com o fim do colonialismo.

E, nesse sentido, a morte doMuseu Nacional e de seu extenso acervo é um sintoma da fragilidade da gestão do patrimônio cultural no país, a despeito da vasta trajetória da política de preservaçãos e dimentada em um século de iniciativas protetivas. A perecibilidade dos fios da memória de um patrimônio centenário como o Museu, arca de madeira de lei de uma história, lança pausas semibreves ao deixar de pautar o povo brasileiro e escancara a negligência de gestores e do próprio povo brasileiro com sua herança histórica e cultural.

Morre um bem que carregava, em si, a materialidade e imaterialidade do patrimônio cultural brasileiro. E remanesce um desapontamento que arrebata as tentativas cotidianas de atravessar o aberto[9] – “isto é ter corpo, isto é comer, isto é morrer –, dicas que surgem como resposta furadas à orfandade irrespondível”.[10]

A linha divisória entre o descaso e a imprudência em relação à gestão do patrimônio deve se tornar o lugar a partir do qual algo começa a se fazer presente, um entre-lugar para a reflexão do significado do patrimônio e da cultura para a nação, um espaço para a elaboração de “estratégias de subjetivação – singular ou coletiva”,[11] capaz de forjar meus signos de identidade e postos de contestação. Pela metodologia de lapidação da memória, faz-se urgente estimular o desejo nacional de resgatar, com densidade conceitual, as lições do patrimônio que pereceram ontem, engolidas pelo fogo, ensinamentos estruturados em esteios de realidade, transcendendo os “deslimites da palavra”.[12]

Remanesce o desafio de delinear uma epistemologia de proteção patrimonial vertida para apreender as marcas da história embrenhadas em cada recorte de espaço e tempo, narrando as nuanças da concretude do passado e das expressões do cotidiano presente que constroem, no dia a dia, a rotina futura, entendendo-lhe as mínimas entonações nesse território inaudito da memória e da identidade. Ao contrário, o país assistiu ao incêndio dividido, de um lado, com indiferença, de outro, atônito, atordoado pelo drama daquelas cenas de angústia, com o mesmo desespero que se sente enquanto se desenlaça um suspense de Hitchcock.

A Constituição da República de 1988 define, na seção referente à cultura, o papel do Estado como garantidor do exercício dos direitos culturais e inova, entretanto, ao ampliar o rol de responsáveis pelo cuidado com o patrimônio cultural. No art. 216, §1º, estabelece que é atribuição do Poder Público, com a colaboração da comunidade, promover e proteger o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

Mas, em verdade, nem oPoder Público, nem a comunidade mobilizou-se o suficiente. Igualmente atônitos, de modo bastante similar, assistiu-se, inerte, ao incêndio da Biblioteca Luiz de Bessa, da Igreja do Carmo, em Mariana, do Hotel Pilão, em Ouro Preto, e de tantos bens culturais perdidos no Brasil e que deveriam ter servido de aprendizado. O patrimônio cultural não morre por acaso e não protagoniza as pautas prioritárias das propostas de governo em ano eleitoral. O descaso, o abandono e a não apropriação do patrimônio nacional aniquilaram todos esses bens quase apagados da memória brasileira, gestando um “desconforto pela incógnita do futuro”.[13]  

As paredes do museu afogueadas provocam, no cidadão enlaçado afetivamente ao seu patrimônio, um misto de exasperação, desesperança e impotência – uma profunda anestesia para aplacar o desconforto, “o contrário de um torpor”.[14] E, assim, infelizmente, “era, outra vez em quando, a Alegria”[15]de perpetuar, em escuta atenta, no Museu Nacional, referente do patrimônio cultural material e imaterial brasileiro, o lastro da lembrança em fragmentos coesos de narrativa.

O Museu, com todo o seu referencial identitário, era, assim, o entre-lugar onde as pessoas tornavam-se objetos históricos de uma pedagogia, sujeitos de um processo de significação que concedia senso qualquer de continuidade. As marcas pretas nas veias do prédio ruindo causa uma espécie de veneração e mistura a um patrimônio partido, tentativa de “juntar” os “pedaços” – sin-tomos– do tempo antigo: “porque há o inefável”.[16]

A modernidade demanda o passado na construção de seu inconsciente irredutível, símbolo e sintoma, signo binário congruente do real que eleva à potência da linguagem. Com o Museu, morre a cadeia significante da esperança do despertar e a interpretação poética de um fragmento do Brasil. Que o povo brasileiro, por reverência e gratidão, diante do colapso de um sistema de proteção patrimonial que foi incendiado sem miseração, saiba aprender a honrar o passado que sustém a memória no emaranhado denso das ruas de hoje, cheia de curvas, “mistas e quebradas”.[17]


[1] PESSANHA, Juliano G. Província da Escrita.Revista Cult, São Paulo, n.48, p.26-31, junho 2001.

[2] ROSA, João Guimarães Rosa. Primeiras Estórias. 44ª impressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p.23.

[3] DEACON, Harriet et al. The Subtle Power of Intangible Heritage. Cape Town: HSRC Press, 2004.

[4] COSTA, Mila Batista Leite C.; PIRES, C. A. S. Memória e Patrimônio Cultural no Mosaico da Urbe: Dimensões do Direito, do Esquerdo e Narrativas do Estado Pós-moderno. In: Maria Tereza Fonseca Dias; Maria Elisa Braz Barbosa; Mila Batista Leite Corrêa da Costa; Caio Barros Cordeiro. (Org.). Estado e Propriedade. Estudos em Homenagem à Professora Maria Coeli Simões Pires. 1ed. Belo Horizonte: Fórum, 2015, v. 1, p. 129-148.

[5] Termo utilizado pela Convention for the Safeguarding of Intangible Cultural Heritage, UNESCO, 2003.

[6] COSTA, Mila Batista Leite C.; PIRES, C. A. S. Memória e Patrimônio Cultural no Mosaico da Urbe: Dimensões do Direito, do Esquerdo e Narrativas do Estado Pós-moderno. In: Maria Tereza Fonseca Dias; Maria Elisa Braz Barbosa; Mila Batista Leite Corrêa da Costa; Caio Barros Cordeiro. (Org.). Estado e Propriedade. Estudos em Homenagem à Professora Maria Coeli Simões Pires. 1ed. Belo Horizonte: Fórum, 2015, v. 1, p. 129-148.

[7] BHABHA, Homi. O Local na Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

[8] GONÇALVES, J. R. S. A Retórica da Perda. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996.

[9] PESSANHA, Juliano G. Província da Escrita.Revista Cult, São Paulo, n.48, p.26-31, junho 2001.

[10] PESSANHA, Juliano G. Província da Escrita.Revista Cult, São Paulo, n.48, p.26-31, junho 2001.

[11] BHABHA, Homi. O Local na Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p.20.

[12] ROSA, João Guimarães Rosa. Primeiras Estórias. 44ª impressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p.30.

[13] QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Vermelho Amargo. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

[14] LISPECTOR, Clarice. A alegria mansa-trecho. In: LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 98-99.

[15] ROSA, João Guimarães Rosa. Primeiras Estórias. 44ª impressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p.12.

[16] LISPECTOR, Clarice. Aprendendo a viver. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2004, p. 109.

[17] PRADO, Adélia. Bagagem. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p.113-114.

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