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A Vida de Artista

Por Luka Milanovic

Faz tempo que penso que fazer arte como um hobby é a melhor maneira de se relacionar com ela. Abençoados são aqueles que com a sua expressão artística não precisam agradar ninguém, não precisam vender o fruto da sua criatividade para poder viver, que criam e interpretam porque gostam, e que podem escolher quando e onde realizar sua arte.

A vida de quem pretende viver da sua arte é bem menos amigável. Os artistas, hoje celebrados como grandes, frequentemente criavam dentro de ecossistemas bastante hostis.  Como nenhum artista cria fora dos seus contextos histórico e pessoal, se não nos aprofundamos em circunstâncias temporais intrínsecas ao nascimento de uma obra de arte, devemos aceitar que estaremos observando só o topo do iceberg de seus significados ocultos. O ambiente econômico, sociocultural, saúde física e psíquica do artista, o estado de seus relacionamentos pessoais, as modas, a opinião crítica em voga na época… são todos aspectos que conspiram para uma obra de arte chegar até nós da maneira que é.

Enfrentar o mundo em constante mudança, consolidar a necessidade da autêntica expressão artística dentro das limitações impostas pelo mercado e suas demandas, desde sempre se apresenta como um grande desafio para os artistas profissionais. Essa volatilidade na área de música afeta e afetava, principalmente, os compositores. Observando registros históricos, para uns as mudanças aconteciam demasiadamente lenta, enquanto que, para outros, rapidamente. Exemplos são muitos:

– Mendelssohn, em suas cartas, expressava descontentamento com as regras rígidas impostas pelos ideais do pensamento iluminista, caracterizado pelo zelo à forma, ordem e regularidade sobre todas as coisas;

– Beethoven, que vivia e trabalhava em Viena, quis estrear a sua Nona em Berlim, devido ao medo dela não ser bem recebida pelo público vienense, cada vez mais atraído pela música dos compositores italianos;

– Seis anos depois, em 1830, o jovem Hector Berlioz, aos seus 27, estreou em Paris sua Sinfonia Fantástica, que ousadamente desafiara a maioria dos postulados que caracterizavam a música do período neoclássico, causando fortes críticas. Essa obra, abruptamente, abrira a porta para além dos regrados e impessoais salões cartesianos, adentrando no emergente pensamento romântico, focado no individual, tingido de paixão e regido pelas profundezas obscuras do subjetivo;

–  Quase setenta anos mais tarde, em 1898, dentro da já bastante evoluída tradição romântica, o alemão Richard Strauss maestralmente pintaria em sons o conflito entre si mesmo e os que criticavam seu estilo no poema tonal autobiográfico “Vida de Herói”;

– Decorreram cerca de 40 anos até Shostakovich, sob implícita ameaça de morte pelo regime stalinista, abandonar os ensaios da já completa 4ª sinfonia, pois a linguagem e forma dessa obra não coincidiam com a direção que Stalin visava para a arte socialista. No próximo ano, 1937, seguindo o sucesso extraordinário da sua formalmente mais conservadora 5ª sinfonia, foi consagrado pelas autoridades como um “verdadeiro artista Soviético”. Enquanto manteve a linguagem mais cautelosa em suas sinfonias seguintes, experimentava com ideias mais ousadas em seus quartetos, obras que tinham menos visibilidade pelo público.

Amplo leque de sanções, desde a má recepção à pobreza ou a morte violenta esperavam aqueles que não tivessem jogo de cintura suficiente para acompanhar a ousadia e desobediência do que era considerado normal e desejado. Artistas hábeis conseguiam se adaptar e transcender os paradigmas temporais, obtendo sucesso sem vender sua alma artística. Outros tiveram que mudar de carreira ou decidir-se por atender o comum, oferecendo o já aceito e cômodo, almejando o empreendedorismo e a segurança financeira em primeiro lugar, deixando de se expressar verdadeiramente.

Para explicar melhor o que considero uma “expressão verdadeira”, recorro às palavras de um dos mais importantes compositores e teóricos de música do século XX, Arnold Schönberg, que afirmou: “Der Kunst kommt nicht von Können, sorgen von Müssen” – A arte não vem de poder, mas sim de dever. Embora exista uma vasta gama de músicos considerados profissionais e maneiras de se compreender o que significa ser um, quero comentar sobre o que acredito ser a vida de quem vive a música como vocação, aquele chamado interno que leva cada artista a desenvolver sua própria voz, possibilitando sua verdadeira expressão. Vejo essa busca perpétua representada no seguinte ciclo:

– Vislumbre de certo recurso musical que ajuda na melhor expressão de ideias;

– Aprimoramento técnico necessário para executar o recurso vislumbrado;

– Aplicação consciente do recurso em estudos musicais diários;

– O vislumbre novo.

O vislumbre – independentemente se vier de fora (ao observar ou ouvir um intérprete/professor), ou de dentro (na forma de um insight ou como fruto da reflexão e autoanálise) é um alimento essencial para a insaciável fome que todo artista sente: de superar as limitações encontradas no ato de comunicar suas verdades internas para o público. Relatando a minha experiência: certos vislumbres chegaram a reverberar em sincronia com a minha ânsia artística, roubando-me o sono por várias noites. Sentia-me como um viciado, com a mente tomada pela excruciante concomitância da posse de visão do lugar onde queria chegar e da falta de meios para ascender até ele. Dias ou semanas de lapidação de critérios estéticos e ferramentas técnicas acabavam sendo coroados pela alegria do tão almejado, paulatinamente conquistado, domínio daquilo que me tirava o sossego. Aos poucos, a ânsia voltava, aguardando um outro vislumbre para fecundar mais um ciclo de expansão para dentro e para fora.

Quando se vive dessa maneira, os conquistados artifícios aglomerados resultam em uma compreensão cada vez mais profunda das leis que regem a natureza; essas, encarnadas em proporções e relações dos elementos musicais, trazem a naturalidade para a expressão no ato de criação ou interpretação da “grande música”. Para evitar soar pretencioso, deixo aqui que como “grande música” considero um conjunto harmônico e lógico de informações musicais conexas, que veem o seu propósito em servir à transmissão das mensagens emocionais dentro de um determinado contexto estético.

Por mais complexa que seja, a grande questão é: como este chamado e o intuito de viver trabalhando com ele se encaixam no mundo atual, regido pelo mercado e pelas indústrias de conteúdos multimidiais. No mundo, onde a educação formal falha no seu papel de conectar de maneira viva os jovens com a tradição e com a arte que perduraram por séculos; onde os tablets e a televisão substituíram os livros, museus e teatro; onde as injeções de dopamina, administradas pelos conteúdos desconexos das redes sociais, tendem a diminuir a nossa capacidade de manter a atenção focada e compreender uma peça musical ou qualquer assunto que demande mais de 3 minutos para ser exposto? Como conseguir um lugar para uma música elaborada no self-service de mistura indevida de arte e entretenimento? Eu diria, graças ao fato de ainda existir um público, relativamente pequeno, que, fugindo da curva, tende a ter afinidades mais apuradas, que cultiva a apreciação pela aqui dita “grande música”. Os lotados Palácio das Artes, Fundação de Educação Artística, Sala Minas Gerais, CCBB, SESC Paladium, Cine Brasil, Cine Belas Artes, Autêntica, assim como festivais e clubes de jazz me dão a certeza que a arte ainda vive, que os artistas vocacionais e o público ainda têm a oportunidade e lugares de exercer essa simbiose milenar. Nesse contexto, a criatividade, apoiada pela qualidade e muito trabalho, pode providenciar ao artista uma vida nada exuberante, porém digna.

A concorrência artística é feroz. Cabe ao músico subir os degraus da compreensão estética e da qualidade técnica rumo ao ápice do seu gênero de atuação, até finalmente conseguir consolidar o seu chamado interno e o alto nível artístico com um padrão decente de vida. Admito ser este um caminho árduo e longo. Até isso se concretizar, a realidade continua sendo aquela onde nem sempre se toca o que, quando, com quem e como se gostaria. Mas será que um músico precisa de estímulos melhores para crescimento que estes?

Se apesar de tudo a nossa tentativa ao final for frustrada e nos vermos incapazes de ganhar a vida com a arte, nela teremos sempre um refúgio, consolo e a janela pela qual conseguimos derramar para o mundo manifestado aquela parte de nós que não cabe nas palavras.

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