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Mosaico e bricolagem no romance bíblico de Richard Zimler

Por Lyslei Nascimento

O romance O Evangelho segundo Lázaro, de Richard Zimler, inscreve-se, com requinte e propriedade, numa tradição sofisticada de textos literários que tem a Bíblia como seu principal argumento.[1] A apropriação de temas, episódios e personagens bíblicos dá-se, na literatura, de inúmeras formas: citação, alusão, paródia, paráfrase ou pastiche, só para citar algumas estratégias do escritor para construir o seu texto.

Forjando espaços privilegiados, a ficção constrói cenários onde heróis e santos, vilões, reis e homens comuns – com concepções muito distintas de mundo – chegam até o leitor em revisitações que deixam vislumbrar uma estrutura imaginativa híbrida, como afirma Northrop Frye em O código dos códigos,[2] a partir da pequena e vasta biblioteca que é a Bíblia.

As estratégias de apropriação e de reescrita das histórias bíblicas alcançam, assim, os estudos literários contemporâneos, sobretudo, a partir de uma consciência da arte como recriação e do texto sagrado como um arquivo que “pesou na imaginação do Ocidente” como nenhuma outra tradição religiosa.

Ao mesmo tempo que enfatiza a multiplicidade dos livros que compõem o texto bíblico, suas várias naturezas, gêneros, espaços, pontos de vista narrativos, personagens e tempos históricos ou ficcionais, o crítico aponta para certo princípio unificador da miscelânea. A essa tensão entre o único e o múltiplo, entre o vário e o distinto, Frye chama “bricolagem”, ou seja, “um ajuntar de partes e pedaços”.[3]

Literalmente, bricolagem é um trabalho manual em que se aproveita todos materiais e objetos que se tem à mão. Na literatura, o termo foi sinônimo de colagem de textos e, contemporaneamente, traduz uma prática de criação, ou de recriação, a partir da transformação ou da estilização de materiais preexistentes em outros trabalhos.[4]

A ficção baseada na Escritura desdobra-a em reescrituras. Desse modo, ela mais se aproxima do que se afasta da concepção da Bíblia como um conjunto de livros, uma estrutura compósita e fragmentada, que põe em cena um Autor /Criador e os autores dos livros ali reunidos como amanuenses e copistas. Quando o artista acessa esse texto múltiplo, surge uma composição também múltipla que, invariavelmente, espelha, em maior ou menor grau, o texto como mosaico ou marchetaria, o ofício do escritor com suas ferramentas de reelaboração textual.

O episódio recriado e ampliado por Zimler foi tomado dos 46 versículos, do capítulo 11, do Evangelho Segundo São João. Como se vê, então, desde o título, o romancista desdobra os evangelhos canônicos, recriando, apocrifamente, pela ficção, um evangelho segundo Lázaro. Outros fragmentos recortados da Escritura são, também, entretecidos ao relato. O que se narra na Bíblia é um dos mais extraordinários milagres de Jesus: a ressurreição do irmão de Marta e Maria. O texto, sem qualquer elemento supérfluo, como já ensinava Erich Auerbach,[5] começa com as irmãs mandando dizer a Jesus que Lázaro está doente. Os discípulos temem voltar à região devido às perseguições, mas o Mestre os ordena que o sigam. Quando eles chegam em Betânia, Lázaro já está morto e sepultado numa gruta fechada com uma pedra, como era a tradição. Jesus, compadecido, se emociona e chora com as irmãs do amigo e vai com elas e algumas outras pessoas até o túmulo. Ele pede que retirem a pedra que lacra aquele espaço de morte. Marta, no entanto, adverte: “Senhor, já cheira mal: é o quarto dia!”. Jesus desconsidera o aviso e ordena: “Lázaro, vem para fora.” O morto, então, sai do sepulcro com as mãos e os pés enrolados em tiras de linho e com panos à volta do rosto, de acordo com o costume funerário da época. Jesus, nesse momento, diz ao grupo: “Desatai-o e deixai-o ir embora.” A narrativa continua com o relato das  perseguições que o levarão Jesus à prisão e à morte.

No romance, a distensão desse episódio, narrado na Bíblia com a economia própria do seu estilo, é construída a partir de um jogo intertextual que se aproxima do mosaico e da bricolagem em cerca de 416 páginas. Como se sabe, um mosaico pode ser: um conjunto de pedras coloridas e incrustradas, dispostas de maneira a formar desenhos ou padrões; a arte de dispor essas pedras; um objeto formado a partir da combinação de muitas partes ou peças; uma teoria, um poema, ou um texto formado pela combinação de vários elementos distintos e que preexistem ao todo; além de referir-se a Moisés e, por extensão, significar hebraico ou judaico.

Na construção de O Evangelho segundo Lázaro como um mosaico, Zimler se vale tanto da história quanto da geografia no tempo de Jesus, recriando os usos e costumes da época, a culinária, as tramas secretas dos afetos, as histórias vistas de baixo, tão minuciosamente descritas pela imaginação do escritor, e tecidas junto a outros textos, personagens e narrativas da Bíblia, como vários versículos dos Salmos, dos Profetas, dos Evangelhos, além de textos apócrifos que são recortados e inseridos no romance por entre “as águas lodosas e traiçoeiras da Torá” (p. 15). Diante da exiguidade da narrativa bíblica, entretecendo vozes e fios variados, o tecido romanesco toma forma e promove a ampliação dos sentidos. Inclusive, do texto bíblico, efetuando o que Jorge Luis Borges afirmou em “Kafka e seus precursores”, que o texto contemporâneo pode modificar, pela escrita e pela leitura, o texto precedente.[6]

O Lázaro bíblico, sobre o qual quase nada se sabe, apresenta-se, no romance de Zimler, como o narrador que solicita a imaginação ao neto, seu narratário imediato, e, por conseguinte, ao leitor contemporâneo: “Imagina a ponta do meu cálamo a desenhar estas palavras” (p. 17). Esse destaque metalinguístico, dado a um ex-morto, cujo corpo sofreu o milagre da ressurreição, oferece ao olhar (do cálamo e das palavras) um encantamento sensorial, porque ele é um renomado mosaísta que, já idoso, conta o acontecimento maravilhoso no qual esteve envolvido.

Se os evangelhos canônicos visam dar visibilidade a Jesus, nesse romance, a escrita biográfica cede lugar para uma narrativa autobiográfica. Nesse sentido, a figura de Lázaro, com seus dramas íntimos e pessoais, sobressai-se a de Jesus e, em primeiro plano, exibe sua singularidade, deixando na sombra, quase como um coadjuvante, o filho de Deus. Assim, do enunciado para a enunciação, o leitor poderá acompanhar a narrativa do milagre, mas também perceber que o ofício do ex-morto é, também, o do romancista ali inscrito e metaforizado. Está-se, portanto, diante de um romance bíblico, ou seja, de um texto ficcional que reescreve um episódio da Bíblia pela ficção, lançando luz sobre um personagem que, sem voz, aguardava, há, pelo menos dois mil anos, para se revelar na ficção. Há muitos textos que se referem à Bíblia, que a citam para a referendar ou refutar. O romance bíblico de Zimler, nesse sentido, apresenta-se não como sua contestação, mas como um suplemento que a ela se entretece pela imaginação.

Ao reescrever o grande texto da tradição religiosa judaico-cristã, distendendo, recortando e colando, construindo, afinal, um mosaico de textos que são ajuntados rejuntados por intermédio de um exercício de bricolagem, isto é, a partir da transformação e da estilização, o escritor revela-se no ofício de mosaísta de Lázaro. O mosaico e a bricolagem traduzem, assim, em primeiro lugar, o caráter de leitor do artista que se apropria da Escritura e a faz renascer, solta de suas amarras, ampliada em sua vocação para a narrativa, em outros tempos, outros espaços, outras leituras.


[1] Em vários romances, a escritora britânica Taylor Caldwell constrói sua ficção a partir da Bíblia. Em Médico de homens e de almas (1958) ou Eu, Judas (1977), ela apresenta histórias nas quais o evangelista Lucas e o discípulo traidor, Judas, respectivamente, migram para a ficção numa trama que mescla, às escassas informações das Escrituras, lendas e narrativas da tradição religiosa e profana com a invenção ficcional. Além das preciosas recriações irônicas da Bíblia realizadas por Machado de Assis, na literatura brasileira, como no poema “O dilúvio” (1864), nos contos “Na arca: três capítulos inéditos do Gênesis” (1882) e “Adão e Eva” (1886) ou no romance Esaú e Jacó (1904), Moacyr Scliar revela, com A mulher que escreveu a Bíblia (1999), Os vendilhões do templo (2006) ou Manual da paixão solitária (2008), uma forma luminosa dos textos bíblicos serem recriados pela invenção literária. Na literatura portuguesa, Deana Barroqueiro reescreve episódios bíblicos a partir de uma perspectiva erótica e feminina em Contos eróticos do Antigo Testamento (2018). Surge, ainda, contemporaneamente, em vários países, um verdadeiro filão editorial: uma expressiva produção de romances baseados em textos apócrifos da Bíblia.

[2] FRYE, Northrop. O código dos códigos: a Bíblia e a literatura. Trad. Flávio Aguiar. São Paulo: Boitempo, 2004.

[3] FRYE, 2004, p. 20.

[4] CEIA, Carlos (Coord.). Bricolage. In: ______. E-Dicionário de termos literários. Lisboa: Universidade de Lisboa. Disponível em: <http://www.edtl.com.pt>. Acesso em: 5 nov. 2018.

[5] AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura Ocidental. Trad. Jacó Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2001. p.1-20.

[6] BORGES, Jorge Luis. Kafka e seus precursores. Trad. Sérgio Molina. In: ______. Obras completas de Jorge Luis Borges. v. 2. Vários tradutores. São Paulo: Globo, 2000. p. 96-98.

Referência

ZIMLER, Richard. O evangelho segundo Lázaro. Trad. Daniela Garcia. São Paulo: Globo Livros, 2018. 528p.

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