Editoria Lyslei Nascimento
a única boneca com um coração.
(Amalie Winter)
Coleciono golems há muito tempo. Após o encantamento infantil pelas bonecas e pelos delgados manequins das vitrines das lojas, devo confessar que adquiri verdadeiro fascínio por narrativas em que a relação entre criador e criatura é tema, marca e representação recorrente. Desde As aventuras de Pinóquio: história de uma marionete, de Carlo Collodi (1883), com o seu menino de madeira que tanto queria ser gente e que, mais tarde, junto ao conto de ficção científica Super-brinquedos duram o verão todo, de Brian Aldiss (2001), inspirou Steven Spielberg a fazer Inteligência artificial (2001), até o esperto Pequeno Polegar (1697), o filho em mínima escala do conto de fadas, recriado em inumeráveis versões por um sem números de narradores.
Referências explícitas ao mito judaico relatam mágicas construções de uma espécie de gigante de argila por meio de uma série de receitas ou fórmulas cabalísticas. Essas criações seriam levadas a termo por sábios rabinos na Polônia, em Praga, em todo o leste europeu, os golems de Gustav Meyrink (1915), Bashevis Singer (1969), Elie Wiesel (1983) e Jorge Luis Borges (1967).
Walter Benjamin, nas suas célebres anotações de Passagens (2006), arrola, sob o título “A boneca, o Autômato”, fragmentos em que manequins, brinquedos, esculturas, além de marionetes, mulheres-máquina e instrumentos animados, ilustram não só uma história de medo, em que o trabalho humano possa ser substituído pela indústria e os humanos pelos autômatos, mas também, de forma, metafórica, projeta-se, nesse medo da ciência e da tecnologia, o ofício do escritor e o texto como uma maquina de narrar.
A lenda, que migra da tradição oral para a escrita, prolifera em outros meios tão múltiplos quanto as versões pelas quais é difundida. Em 1998, no Museu Judaico de Nova York, a mostra “Golem! Danger! Deliverance and Art” saturou galerias de memoráveis versões da lenda. Tiveram lugar, ali, releituras inusitadas e obsessões de artistas que reescreveram e reencenaram a história do gigante de argila. A inquietante exposição, exibindo o que se configura como uma monstruosidade, abarcou desde as referências às narrativas medievais até performances, filmes, esculturas, pinturas, espetáculos teatrais, óperas, balés clássicos e danças contemporâneas, passando por textos literários, jogos e histórias em quadrinhos. O museu, nesse sentido, configurou-se como um arquivo que exibiu, com esse acervo, a complexa relação do homem com as suas criações. De setembro de 2016 a janeiro de 2017, essa exposição, denominada “Golem” exibiu revisitações da criatura no Museu Judaico de Berlim.
Como uma materialização da lenda, ou da ficção científica, os golems podem ser concebidos como autômatos, robôs, ciborgues, computadores ou jogadores de xadrez, como no célebre texto de Edgar Allan Poe (1849). Essas máquinas que podem falar, andar e obedecer duplicam, ad infinitum, a gênese de Adão, fazendo com que a narrativa religiosa estabeleça vínculos suspeitos e insuspeitos entre Deus, Golem & Cia, como queria Norbert Wiener (1964).
Da lenda até as realidades virtuais, a emulação do ato divino da criação evidencia o desejo de poder, às vezes consciente, às vezes não, de se igualar ao Criador. Invariavelmente, esse desejo se traduz em transgressões a leis religiosas, morais ou éticas, dando à luz a criaturas e monstros que, desgovernados, atentam contra a vida humana, como a criatura de Mary Shelley (1818).
Chamo a atenção para o fato de que as peças, os fragmentos de corpos suturados pelo Dr. Victor Frankenstein, são reunidas e não criadas de acordo com as instruções cabalísticas. Ao contrário, sob os auspícios da ciência, que nasce rompendo o ventre das crendices, dos mitos e do obscurantismo, a criação de Shelley aponta para a impossibilidade de o homem criar ex nihilo, diferentemente da criação divina narrada no Gênesis.
A obra de Samuel Rawet oferece, de forma paradigmática, uma importante oportunidade para refletirmos sobre as intricadas relações entre a criação, a monstruosidade e a escrita. A lenda do Golem, cuja célebre versão em que o Rabino Judá Leão, em Praga, constrói o humanoide de argila para a defesa do gueto tem, em Rawet, um dos seus mais instigantes tradutores.
Publicado em O terreno de uma polegada quadrada, em 1969, o conto “Johny Golem” antecede, no Brasil, a uma galeria de golems brasileiros. Se não me equivoco, somente em 1991, Moacyr Scliar publica o romance Cenas da vida minúscula, recriando a lenda no Brasil. Construindo uma árvore genealógica do Golem, que vai da Bíblia e do Talmude aos homúnculos de Paracelso, passando pela ficção de Kafka, Scliar compõe um romance de impossibilidades e contrastes, mas também da inscrição do seu Golem numa tradição importante de criadores e criaturas.
Quatro anos mais tarde, em 1995, Samuel Reibscheid publica o conto “O Golem de Manhattan”, aproximando, de forma crítica, o golem à bomba atômica e, portanto, à perigosa e ameaçadora tecnologia de guerra. Em 1997, Jacob Pinheiro Goldberg dedica uma série de poemas ao mito. Os textos, de forma fragmentária, auto-reflexiva e bem-humorada são intitulados “Golem” e refletem, liricamente, sobre a natureza compósita da memória e da escrita. Em 2008, Mário Teixeira ambienta a criatura nas ruas de São Paulo, no romance O Golem do Bom Retiro. Nesse tradicional bairro paulistano, entre fórmulas cabalísticas e procedimentos de investigação, três amigos encontram um aliado sobrenatural para defendê-los.
Em 2010, José Ronaldo Viega lança uma coletânea de poemas sob o título Novas especulações sobre a criação & os Golens e, em 2015, a Arquivo Maaravi: Revista de Estudos Judaicos da UFMG, edita, de Ivy Judensnaider, uma surpreendente Golem feminina no conto “Adamah, a Golem”.
Além dessas publicações, que fazem parte da minha coleção, duas exposições são dignas de nota: República dos fazedores de Golems, de Vlad Eugen Poenaru, de 2004, e Um Golem para Caruaru, de Leila Danziger, de 2014.
Dessa galeria de golems brasileiros, a criatura de Rawet, certamente, é a mais inquietante. Na trama, um personagem misterioso e esquizofrênico surge das divagações e informações truncadas de um impreciso e inepto narrador, que reflete sobre a escrita e a impossibilidade de escrever a história.
O leitor se depara, então, com um texto construído a partir da sobreposição de fragmentos, de níveis e desníveis. Confissões de incompetência do narrador, que vem e vão, abrem e fecham a narrativa, fazendo com que o leitor desconfie da autenticidade do relato, que ostenta, por esse expediente, o seu caráter de ficção e artifício. “Um cansaço, e uma espécie de náusea me leva a redigir a história de Jonhy Golem”, afirma o narrador (RAWET, 2004, p. 333). Além do enfado e do asco declarados, ele acrescenta que não escreve para leitores, mas para uns poucos amigos. Que são, é preciso lembrar, também leitores.
A combinação da autodepreciação com as referências à inabilidade de traduzir a história vem acompanhada de justificativas que apontam para a forma confusa e duvidosa com que o narrador tem acesso às inúmeras versões do que deseja e não deseja relatar:
O mais estranho nisso tudo é o modo caótico com que tomei conhecimento de todos os episódios, modo que me faz duvidar de certos detalhes, falavam em francês, inglês, espanhol, ídiche, línguas dos quais só chegava a perceber algumas palavras. Há detalhes no plano do humor. Alguns dos informantes, desejando também maiores esclarecimentos me acompanhavam por vezes à residência de outros, e pude então ensaiar uma tentativa de captar um sentido em frases em búlgaro, romeno, árabe, línguas que desconheço totalmente, apenas pela vaga semelhança de um som, de algumas sílabas ilusórias. Os equívocos naturalmente foram tremendos, mas os instantes de humor muitos, e o saldo que me ficou foi a vaga ideia de que para certos estados essenciais o que está ligado à fala, exceto a palavra, é o mais que suficiente (RAWET, 2004, p. 333-334).
Além da multiplicidade dos narradores, tratados curiosamente como informantes, o vocabulário deixa entrever as características da composição: estranha, caótica, duvidosa, ilusória, equivocada, vaga. Também é explícito, em todo o relato, o plurilinguísmo como um transtorno à clareza e à objetividade. Referências às cidades, países e línguas fazem do conto uma espécie de mapa ou Torre de Babel. As versões, a partir das várias línguas, principalmente as faladas pelos judeus na Diáspora, só são captadas e retransmitidas de forma incerta e por meio de “sílabas ilusórias”. O “resíduo da palavra”, a sílaba, poderia ir até uma constituição mínima, a letra, mas o narrador não leva até as últimas consequências essa redução. Para onde aponta essa fragmentação do relato?
O efeito em abismo está instaurado: o narrador ouve de Paul Segall, num restaurante em Israel, a primeira referência a Jonhy Golem. Segall, um inglês, de quarenta anos, baixo, magro, de cabelo ralo entre o alourado e o ruivo que, meio embriagado, meio sonolento, afirma que, antes de trabalhar para uma fábrica de produtos químicos, pertencia ao serviço secreto britânico. De acordo com o narrador, por ser homossexual, ele esteve envolvido num caso grave, sobre a qual o leitor não terá detalhes, que o afastou da função.
No relato de Segall, Jonhy Golem aparece como um anônimo paciente de um hospital do exército, um judeu oriundo da Polônia:
Era um esquizofrênico, com fortes doses paranoicas, além de epileptoide. Acho que assim o classificaram. Não me recordo de seu nome, se é que algum dia cheguei a saber realmente. O nome com que todos o conhecíamos depois de um dado instante era Jonhy Golem. […] A fala caótica, uma alternância de silêncios e loquacidade caótica. Uma eclosão pornográfica contrabalançada com êxtases místicos fornecendo um quadro impossível de olhar sem humor. O inglês do homem era péssimo, e algo do que dizia era incompreensível. […] o ídiche falado por Jonhy Golem era estropiado (RAWET, 2004, p. 336).
Diante desse quadro, Brice Account, chefe de um dos setores de pesquisa do serviço secreto, engendra um plano sinistro: transformar o doente num golem autêntico, utilizando para isso, dentre outras técnicas, as de comportamento e reflexo condicionado. Após receber alta, Jonhy Golem, que circulava pela cidade como um idiota de aldeia, é monitorado por agentes que se valem de uma parafernália tecnológica para vigiá-lo. A alusão ao bobo da aldeia, personagem típico da literatura ídiche, não é gratuita. A conexão da criatura engendrada por um rabino nas cidadezinhas judaicas encontra, nesse personagem, uma das suas dramáticas variantes.
Outros personagens, todos velhos, que testemunharam a experiência, aparecem para testificar a autenticidade, sempre posta em dúvida pelo narrador, da história que está sendo contada. Werner Huhn, um discípulo de Jung, que vive num asilo de velhos; uma senhora gorda e alegre, residente em um casarão junto ao porto; um enfermeiro. Enquanto toma um café com o narrador, Segall encerra a história: Account enlouquecera e seu substituto, Bob Smile, deve tê-lo submetido ao mesmo método de controle usado em Jonhy. A ironia, ou o sorriso final, prenunciado no sobrenome ou alcunha desse substituto aponta, assim, para a repetição dos condicionamentos e a possibilidade de outros golems serem engendrados em hospitais e serviços secretos como uma conspiratória e promíscua rede entre a ciência e o poder.
O relato do mito, inclusive com a referência quase exata do verbete da Enciclopédia Judaica, pode ser lido como um segundo plano intertextual da narrativa que provoca um desvio do que é, aparentemente, a base central do que está sendo contado. No entanto, a história de Jonhy Golem delineia-se, canhestramente, no relato. Como uma caixa chinesa, ou uma boneca russa, a escrita acaba por criar um efeito vertiginoso e imponderável na leitura, evidenciando o texto como um constructo, um compósito de citações e vozes.
Se, no enunciado, Jonhy Golem é apresentado como um produto de experimentações científicas, nada éticas e intimamente ligadas ao controle do indivíduo, por sua condição, pode ser visto como “pessoa desajeitada” ou “estúpida”, que adquire, após as experiências, conformações de um robô, ou seja, de uma criatura controlada artificialmente; na enunciação, irrompe um texto sob o signo da monstruosidade (BEREZIN, 1995. p. 75). Assim, as várias histórias do golem, nas camadas que compõem a narrativa, prefiguram, numa outra instância, o texto engendrado como monstro. Como um construto de fragmentos que não podem ser suturados, o texto-golem faz falar, em babélicas vozes, a lenda e sua relação com a criação literária.
Jeffrey Jerome Cohen, em A cultura dos monstros: sete teses (2000, p. 23-60), afirma que o corpo do monstro é cultural, um arauto da crise de categorias, mora nos portões da diferença, está situado no limiar e sempre escapa e policia as fronteiras do possível. Como um duplo, quase perverso, a escrita-golem exibe-se na fragmentação das vozes que não se afinam, nas versões entrecortadas que não formam um todo coerente e na aparente e confessa inaptidão do narrador. A função desses elementos no enredo faz ressaltar, ao contrário, uma escrita que não se engendra a partir de uma corporeidade artificialmente totalizante e impossível da qual Rawet estava absolutamente consciente.
Minha coleção, portanto, se adensa com o Golem de Rawet, porque a sombra de Johny Golem faz surgir, na penumbra, entre a luz e a sombra, olhando-me de soslaio, um corpo-texto, uma urdidura ou uma maquinaria narrativa que não se deixa disciplinar ou cerzir e marca, em vez disso, a impossibilidade de tamponar as fraturas, os esgarçamentos e as lacunas que o medo, o desejo, as fantasias e a consciência da ficção provocam.
Toda coleção é, por definição, incompleta e ilusória. O colecionador padece, obsessivamente, do desejo de sempre acrescentar um item a ela. Por isso, solicito, à maneira de Jorge Luis Borges, no prefácio a O livro dos seres imaginários (1989), a quem tiver notícias de outros golems, do Brasil ou do exterior, que me façam saber de suas existências e idiossincrasias.
Lyslei Nascimento é professora de Teoria da Literatura e Literatura Comparada na FALE/UFMG.
Referências
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