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Londres: a história de uma cidade duradoura

Editoria Thiago Jardim

A existência de centros urbanos como centros de comércio e cultura é milenar. À medida que se desenvolviam as tecnologias de construção, abastecimento de água e transporte, especialmente as embarcações que transportavam grandes volumes de mercadorias e pessoas, as pequenas aldeias se transformavam em centros urbanos. Em 500 B.C já havia um milhão de habitantes em Roma. Mas foi apenas depois de 1760, após a Revolução Industrial na Inglaterra, que o protagonismo das cidades começa a tomar o seu lugar. Desde então as cidades passaram por grandes desafios e, até o momento, absolutamente nada foi capaz de dissipar as pessoas e desconstruir os grandes centros urbanos.

Até 1700, apenas 5,2% da população mundial vivia em cidades. Londres, uma das precursoras da Revolução Industrial, tinha 450 mil habitantes em 1665 quando foi atingida pelo surto de peste bubônica, a chamada Peste Negra, causando o falecimento de 15% de sua população. Em seguida, ocorre o Grande Incêndio de 1666 que destruiu 90% dos imóveis da cidade – sem grandes fatalidades -, mas que acabou ajudando a matar os ratos e pulgas que disseminavam a peste.

Serie temporal da densidade populacional por região
da Grande Londres

Nem a escravidão ou as severas restrições econômicas do período feudal, como a servidão, existiam na Inglaterra neste período, mas havia ainda muitas restrições a atividades econômicas nas quais as pessoas poderiam se envolver. A economia doméstica e internacional era dominada por monopólios; o Estado praticava tributação arbitrária e manipulava o sistema legal; a maior parte das terras estava sujeita a formas arcaicas de direitos de propriedade que tornavam sua venda impossível, e elevavam o risco de se investir e produzir nelas. Isto mudou com a Revolução Gloriosa de 1688, que impôs limites ao poder do Rei e do executivo, e transferiu ao Parlamento o poder de definir instituições econômicas. Ao assegurar os direitos de posse de propriedade privada, incluindo a propriedade de ideias – patentes –, o governo inglês gerou os incentivos necessários para inovação, investimentos e o comércio que catalisaram a Revolução Industrial e o processo de urbanização nos séculos seguintes. O Brasil só se industrializaria e urbanizaria a partir do século 1900.

Com a industrialização e a expansão do fluxo comercial e financeiro no Império Britânico durante a Era Mercantilista, Londres se torna a cidade mais populosa do mundo em 1825, com 1,3 milhão de habitantes. À medida que a cidade se industrializava, a demanda por trabalhadores aumentava e os pobres camponeses ingleses migravam para a cidade. Em 1830, a renda per capita dos londrinos era de US$ 1.749 (nos preços internacionais de 1990), o equivalente à renda per capita de Honduras, Moçambique ou Paquistão em 2003. A palavra “slum”, ou favela, foi criada na Europa Ocidental nesta época para caracterizar os locais pouco drenados e lamacentos, perto das fábricas, às margens dos canais, onde os pobres migrantes se aglomeravam em habitações baratas, superlotadas e pouco drenadas. O saneamento era inadequado ou inexistente. A qualidade do ar era ruim, com fuligem e poluentes. Diarreia, tifo, doenças respiratórias, sarampo e escarlatina eram mazelas comuns, e a expectativa de vida dos recém-nascidos nestes locais era de apenas 12 anos. Ao invés de impedir a migração, o governo estabeleceu regras para ocupação, remoção de cortiços, e desenvolveu junto com a iniciativa privada as melhorias de infraestrutura que aos poucos elevaram a qualidade de vida e a dinâmica da cidade. Na Era Vitoriana (1838 a 1901), o PIB do Reino Unido cresceu em média 2% ao ano e Londres se tornava o centro político do maior império do mundo.

Em 1900, a população de Londres atingia 6,5 milhões de habitantes e a taxa de urbanização da Inglaterra já era de 62% – um país praticamente urbanizado. Nesta época, o Brasil ainda era um país agrário com apenas 23% da população vivendo em cidades. São Paulo tinha apenas 240 mil habitantes. Com 7 milhões de habitantes em 1925, Nova York tomava o posto de cidade mais populosa do mundo. Mas Londres seria ainda bombardeada na Primeira Guerra Mundial, causando quase 5 mil mortes. Sofreria posteriormente as consequências da Grande Depressão de 1929. Mesmo assim, sua população atingiu 8,6 milhões de habitantes em 1939. Uma sopa de invenções tecnológicas, intervenções políticas, declínio de indústrias e um novo bombardeio na Segunda Guerra Mundial, entretanto, quase torna Londres uma cidade obsoleta. Entre 1939 e 1991, a população da Grande Londres encolheu 26%, uma queda de 2,2 milhões de habitantes. Deste total, 2,1 milhões migraram de Inner London – região central com área equivalente à de Belo Horizonte (~320 km²) – onde habitavam 4,45 milhões de pessoas.

Os primórdios do século 1900 foram um período de grande influência política do economista britânico John Maynard Keynes – pai do planejamento macroeconômico – por um lado, e por outro, Karl Marx e o planejamento central soviético – que aboliu os mercados e o livre comércio na Rússia após a Revolução de 1917. O estilo clássico de gestão econômica de Adam Smith e Stuart Mills, em prática na maior parte da Era Vitoriana, começava a ceder lugar ao Liberalismo Social e o Keynesianismo. A visão de que os governos sabiam controlar a economia, promover o máximo de empregos, produção e poder de compra em um sistema de livre iniciativa e bem-estar social era um consenso político inglês. O princípio fundamental da teoria clássica de que a economia é autorregulada pelos preços dava lugar à gestão econômica. Para Keynes, o caminho para a servidão estava, não no controle excessivo do governo, mas no descontrole ou no controle tardio. Keynes tentou criar controles mínimos que permitiriam o funcionamento da livre iniciativa e, para ele, o fim da teoria clássica não significava o início do comunismo.

No âmbito do planejamento urbano, teóricos desenvolviam projetos e leis para mitigar as consequências indesejadas da era industrial, planejando a ocupação urbana e o sistema de transporte. Concluiu-se à época que a cidade estava superpovoada, com habitações inadequadas, e que tais condições eram indesejáveis. Através da Comissão de Barlow de 1938, os planejadores propuseram a descentralização da indústria. Após a Segunda Guerra, a necessidade de reconstruir 50 mil imóveis e reparar outros dois milhões deu ao Conselho do Condado de Londres a oportunidade para reestruturar a cidade. A palavra de ordem do Plano da Grande Londres era a descentralização da indústria e a realocação de um milhão de habitantes.

Série Histórica da População de Londres e Inner London

Por restrições tecnológicas associadas à arquitetura neoclássica e à altura de escadas de combate a incêndio, Londres se desenvolveu respeitando leis que limitavam a altura de edifícios a 25 metros. Com a modernização da arquitetura no século 1900, os limites à altura passaram a refletir não mais limitações técnicas, mas o interesse político na preservação da identidade histórica da cidade. Havia também uma preocupação com a elevada densidade e congestionamentos que levou à legislação de restritivos índices de aproveitamento do solo nas áreas centrais. A partir da década de 50, construtores só poderiam expandir a oferta imobiliária obedecendo índices de 2,2 a 5,5 vezes a área dos terrenos. Como o estoque imobilizado foi construído com índices entre 2 e 7, a lei inviabilizou consideravelmente a expansão imobiliária em Inner London. Nesse tempo, já havia sido construído em Nova York o Empire State Building, com 430 metros de altura e índice de aproveitamento superior a 30.

Em 1952, uma combinação de padrões climáticos e poluição do ar tornou a névoa de Londres uma névoa de ácido sulfúrico concentrado, causando entre 4 e 12 mil fatalidades – o Grande Nevoeiro de 1952. Mas os veículos automotores acabaram sendo facilitadores do grande êxodo populacional de Londres. O aumento da mobilidade e as rígidas leis tornaram viáveis a instalação de indústrias, escritórios e moradias em locais periféricos e rurais, com menores custos e mais comodidades, uma tendência reconhecida como a “desurbanização”. Os setores industriais da cidade, especialmente a manufatura e as docas, que eram fontes significativas de emprego, declinaram. Londres perdeu um milhão de empregos. A queda populacional e de produção significava menos arrecadação, e menos capacidade fiscal para manter a infraestrutura e os serviços públicos do município, quando mais financiar planos de desenvolvimento.

A reconstrução da cidade e o padrão de mobilidade avançado forneceram um impulso econômico. Na escala nacional, o governo trabalhista de Attlee nacionalizou parte da indústria e com políticas fiscais e monetárias de gestão da demanda de bens e serviços ajudou a economia a crescer em média 2,8% entre 1951 e 1973. A taxa de desemprego nunca foi superior a 2,5%. Mas as regulamentações excessivas, má alocação de recursos, descontrole do crescimento da oferta de moeda e a monetização de dívidas públicas, isto é, o pagamento de dívida via emissão de moeda, acabaram causando um fenômeno desconhecido até então: a estagflação.

A estagflação, ou “stagflation”, é um termo originado no Reino Unido nos anos 70, quando ocorreu uma estagnação econômica com elevada taxa de desemprego e alto nível de inflação. Na versão da teoria macroeconômica keynesiana, a inflação e a recessão eram consideradas mutuamente exclusivas. Mas em 1975, a inflação chegou a 25%, o PIB caiu 4% e a taxa de desemprego subiu para 12%, deteriorando as contas públicas e obrigando o Reino Unido a recorrer ao FMI. As medidas recomendadas pela teoria dominante para remediar o desemprego tornaram-se a causa de uma má distribuição de recursos que tornou inevitável a recessão e o desemprego. A gestão econômica malsucedida e o aumento da hostilidade em relação ao poder estatal, a extensão da propriedade pública e o nível de taxação, culminou na rejeição da política keynesiana no fim da década de 1970.

Assim como o desemprego em massa dos anos 20 e 30 deu crédito às ideias de Keynes, os problemas econômicos dos anos 70 e 80 fortaleceram seus críticos. O governo recém-eleito de Thatcher abandonou formalmente a política keynesiana negando que a estabilização econômica por meio da gestão de demanda fosse possível ou desejável; e afirmou sua crença em uma ordem de mercado liberal com o mínimo de intervenção estatal. Um dos precursores desta reorientação política foi o renascimento do interesse mundial pelas obras do economista Friedrich von Hayek, vencedor do Prêmio Nobel em 1974, e pela filosofia monetarista do economista Milton Friedman, de Chicago, vencedor do Prêmio Nobel em 1976. O tratamento promulgado pelos economistas na ocasião ficou conhecido como “Terapia de Choque”, e se fez através do controle estrito da oferta de moeda, responsabilidade fiscal, privatização de indústrias, desburocratização do mercado e corte de impostos. Estas medidas eliminaram as amarras sobre a produção e reviveram economias sucumbidas em todo o mundo.

Questões econômicas afetam quase todas as áreas da sociedade e a ciência econômica também interage com outras ciências sociais. Hayek conduziu um trabalho importante sobre os ciclos econômicos, mas, posteriormente, desenvolveu análises sociais mais amplas destacando os problemas do planejamento econômico central. Sua conclusão foi que o conhecimento e as informações mantidas por vários atores só podem ser utilizados plenamente em um sistema de mercado descentralizado com livre concorrência e precificação.

Neste processo, as cidades transitavam naturalmente de uma base econômica industrial para uma base econômica de serviços. As reformas pró-mercado e a desburocratização, principalmente da construção, e da indústria financeira – conhecida como o “Big Bang” de 1986 -, fomentaram a recuperação econômica e o crescimento populacional em Londres nas próximas décadas. Restritivas leis de uso do solo foram abolidas em locais vitais. Áreas obsoletas ou pequenos edifícios antigos deram lugar a edificações de 300 metros de altura, como o The Shard. Novos edifícios corporativos preencheram o centro da cidade e elevaram a densidade de empregos para 82 mil trab/km² – duas vezes superior à densidade no centro de Belo Horizonte. Os empregos atraíram residentes e a densidade de Inner London subiu para 10 mil habitantes por km² – 30% superior à de BH. Uma nova onda de globalização e integração econômica, promulgada também pela União Europeia em 1991, atraiu Imigrantes e investimentos, e o crescimento se tornou a história de Londres nos 30 anos seguintes.

O mercado financeiro causaria em 2008 uma recessão mundial e colocaria o sistema político e econômico em cheque novamente. Políticas nos moldes keynesianos de incentivos fiscais e afrouxamento quantitativo foram aplicadas para socorrer os bancos e estabilizar a economia, impedindo uma crise de efeitos ainda mais catastróficos. A escola austríaca de Hayek, não seria tão complacente com a indústria financeira. As mesmas políticas estão sendo implementadas hoje, desta vez, por causa da pandemia do Sars-CoV-2, o novo coronavírus. A imposição de lockdowns em centros urbanos, com o fechamento de atividades não essenciais, obriga os governos a providenciar recursos para a subsistência das pessoas e empresas, se endividando no processo – dívida esta que será paga com impostos no futuro, ou por inflação – que é outro meio de taxar papel-moeda e dígitos em uma conta corrente.

A cidade nos torna mais fortes, felizes e saudáveis. Mas o acúmulo de pessoas e capital em pequenas áreas também nos torna vulneráveis a armas de destruição em massa, desastres naturais, pandemias e políticas urbanas e econômicas inadequadas. As cidades brasileiras têm sido alvos de ambas, pandemia e políticas urbanas ineficientes. Por causa de leis que restringem a produtividade do solo urbano, Belo Horizonte já vinha enfrentando um êxodo de investimentos, empresas e habitantes para municípios vizinhos enquanto sua região central deprecia. Agora, não se sabe ao certo qual parte da força de trabalho continuará trabalhando em casa e em qual local residirá. No Reino Unido, 5% da força de trabalho trabalhava em casa antes da pandemia e em julho de 2020 este número chegou a 27%. A propensão ao home-office é maior para os empregos mais bem remunerados e qualificados. Isto explica em parte por que Manhattan, a região mais densa e valorizada de Nova York, foi relativamente menos impactada que os demais bairros e distritos da cidade. A infraestrutura de moradias, leis de uso do solo eficientes e a quantidade de espaço construído por pessoa justifica a outra parte.

Inúmeras catástrofes moldaram as cidades mundiais ao longo da história. Cidades pegaram fogo ou inundaram, encararam doenças e guerras, e consecutivamente se reergueram com mais vigor, aumentando os padrões de saúde, segurança e sustentabilidade em cada renascimento. Por séculos os cidadãos abandonaram suas casas em tempos de problemas, mas sempre voltaram e reinventaram suas cidades. As cidades sempre foram e continuarão sendo centros de cultura e entretenimento, trabalho, inovação e prosperidade. Em um universo condicionado pelo tempo, no estado de desenvolvimento tecnológico atual, e contando que preservemos nosso sistema econômico, as pessoas e empresas continuarão se beneficiando dos grandes centros urbanos.

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