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O lirismo austero de Louise Glück

Editoria Ana Caetano

Descendente de uma família de judeus húngaros, Louise Glück é nova-iorquina de nascimento, cresceu em Long Island, publicou 2 livros de ensaios e 12 livros de poemas, vários deles premiados. Seu livro mais recente foi Faithful and Virtuous Night. Atualmente ela é escritora residente na Yale University e mora em Cambridge, Massachusetts.

Glück ganhou o Prêmio Pulitzer em 1992 com Wild Iris, o National Book Award em 2012, Los Angeles Times Book Prize em 2017 além de outros (Lannan Literary Award for Poetry, Sara Teasdale Memorial Prize, MIT Anniversary Medal, Wallace Stevens Award, National Humanities Medal, Bollingen Award, Gold Medal for Poetry da American Academy of Arts and Letters). Ela também recebeu bolsas acadêmicas das Fundações Guggenheim e Rockefeller, e do National Endowment for the Arts.

Desde seu primeiro livro, Firstborn (1968), ela é conhecida por sua poética aparentemente singela, coloquial, direta, mas construída cuidadosamente com ritmos e repetições que conferem uma densidade poderosa aos seus versos. Os poemas de Firstborn (1968), The House on Marshland (1975), The Garden (1976), Descending Figure (1980), The Triumph of Achilles (1985), Ararat (1990) e The Wild Iris (1992) levam o leitor em uma jornada íntima rumo ao veneno da existência. Uma trajetória que lembra muito o olhar agudo de Clarice Lispector sobre todas as coisas, da urgência do amor às flores encarnadas na jarra. A poesia de Glück não evoca sentimentos fáceis. Ao contrário, ela nos devolve ao mistério que habita as palavras e seu uso. Extrai o prosaico de personagens da mitologia para construir um lirismo austero no qual os segredos da alma se abrigam em detalhes mínimos da vida para ganhar contornos sublimes e universais. Como diz Nicholas Christopher sobre a autora, essa relação com o mito “parece alimentar sua imaginação para lutar com alguns dos mais antigos e intratáveis medos – o isolamento e o esquecimento, a dissolução do amor, a falência da memória, a derrota do corpo e a destruição do espírito”.

Bem antes do prêmio Nobel com o qual foi agraciada em 2020, Louise Glück já era uma autora reconhecida e premiada nos Estados Unidos. Certamente seus livros serão agora todos traduzidos no Brasil, mas é muito revelador que a poeta não tenha nenhum livro ainda em língua portuguesa. Ela não é a única autora norte-americana nesse hall. Outros poetas contemporâneos importantes como Wallace Stevens, William Carlos Williams, Marianne Moore, Raymond Carver, E.E. Cummings, além dos poetas da contracultura (da chamada geração Beat) como Lawrence Ferlingetthi, Allen Ginsberg, Gregory Corso e outros, somente apareceram por aqui em pequenas antologias graças ao trabalho pioneiro e primoroso de tradução de José Paulo Paes (William Carlos Williams), Cide Piquet (Raymond Carver), Paulo Henriques Brito (Wallace Stevens, Elizabeth Bishop), José Antônio Arantes (Marianne Moore), Augusto de Campos (E.E. Cummings), Eduardo Bueno e Leonardo Fróes (Lawrence Ferlinguetti) e Cláudio Willer (Allen Ginsberg). Poetas como Frank O’Hara, Mark Strand, Adrienne Rich, Muriel Rukeyser, Fanny Howe, para citar alguns, contam apenas com traduções avulsas e desbravadoras de revistas e jornais (Rascunho, Malarmagem, Germina, Cult, Opção, Prosa Verso e Arte, Letras, entre outros) e de tradutores atentos e talentosos como André Caramuru Aubert. Mesmo Emily Dickinson somente se tornou uma poeta conhecida dos leitores brasileiros nos anos 80 e 90 com o trabalho de Augusto de Campos. O fato de Manuel Bandeira ter recriado lindamente 5 dos seus poemas em 1928 somente realça sua antena de poeta e tradutor. O livro Poemas traduzidos de Bandeira, com edição mais recente de 1976, foi uma apresentação extraordinária, aos leitores daqui, de poetas como Goethe, Baudelaire, Rilke e Hölderlin. Também Ana Cristina César traduziu e incorporou muito da tradição poética inglesa e norte-americana na sua própria poética.

Walter Benjamin dizia que a tarefa do tradutor é “liberar a obra do cativeiro da língua”. Mas ainda há um desafio especial na tradução de poesia e talvez uma dificuldade particular na transcriação da poesia americana moderna que opera com ritmos e cadências únicos da língua inglesa e da dicção americana.

Louise Gluck está na categoria de autora desconhecida por aqui. Há que se reconhecer as traduções de 6 poemas seus por Maria Lúcia Milléo Martins na Antologia da Poesia Norte-Americana Contemporânea organizada por José Roberto O’Shea e publicada pela UFSC em 1997. E os poemas em versão portuguesa traduzidos por Pedro Gonzaga para o jornal Estadão, entre 2017 e 2018. Podemos ainda encontrar, nesse momento, algumas traduções interessantes de “The red poppy”, “Wild Iris”, “Telemachus dilema”, “Parable of the beast”, “Field Flowers”, “Gratitude”, “Itaca”, ”The Garden”, “Vita nova”, “Matinas”, “Portland, 1968”, “Lamiun” e certamente outros espalhados por inúmeros sites dedicados à poesia e à literatura.

Escolhi quatro dos seus poemas para traduzir, consciente que seria um exercício difícil trazer, para a língua portuguesa, essa aventura heroica da poeta entre o desespero tranquilo do cotidiano e a moldura épica que emana da sua obra. Mas sempre vale a pena quando o que se tenta é um poema.

The evening star

Tonight, for the first time in many years
there appear to me again
a vision of the earth’s splendor:

in the evening sky
the first star seemed
to increase in brilliance
as the earth darkened

until at last it could grow no darker.
And the light, which was the light of death,
seemed to restore to earth

its power to console. There were
no other stars. Only the one
whose name I knew

as in my other life I did her
injury: Venus,
star of the early evening,

to you, I dedicate
my vision, since on this blank surface

you have cast enough light
to make my thought
visible again.

A estrela vespertina

Essa noite, pela primeira vez em muitos anos,
apareceu para mim novamente
a visão do esplendor terrestre:

no céu ao anoitecer
a primeira estrela pareceu
aumentar seu brilho
enquanto a terra escurecia

até não poder escurecer mais.
E a luz, que era a luz da morte
pareceu restaurar para a terra

seu poder de consolo. Não havia
outras estrelas. Apenas aquela
cujo nome eu sabia

pois na outra vida eu a
machuquei: Vênus,
estrela do anoitecer,

a você eu dedico
minha visão, pois nessa superfície branca

você lançou tanta luz
que meu pensamento se fez
outra vez visível.

“A Myth of Devotion”, from Averno

When Hades decided he loved this girl
he built for her a duplicate of earth,
everything the same, down to the meadow,
but with a bed added.

Everything the same, including sunlight,
because it would be hard on a young girl
to go so quickly from bright light to utter darkness

Gradually, he thought, he’d introduce the night,
first as the shadows of fluttering leaves.
Then moon, then stars. Then no moon, no stars.
Let Persephone get used to it slowly.
In the end, he thought, she’d find it comforting.

A replica of earth
except there was love here.
Doesn’t everyone want love?

He waited many years,
building a world, watching
Persephone in the meadow.
Persephone, a smeller, a taster.
If you have one appetite, he thought,
you have them all.

Doesn’t everyone want to feel in the night
the beloved body, compass, polestar,
to hear the quiet breathing that says
I am alive, that means also
you are alive, because you hear me,
you are here with me. And when one turns,
the other turns—

That’s what he felt, the lord of darkness,
looking at the world he had
constructed for Persephone. It never crossed his mind
that there’d be no more smelling here,
certainly no more eating.

Guilt? Terror? The fear of love?
These things he couldn’t imagine;
no lover ever imagines them.

He dreams, he wonders what to call this place.
First he thinks: The New Hell. Then: The Garden.
In the end, he decides to name it
Persephone’s Girlhood.

A soft light rising above the level meadow,
behind the bed. He takes her in his arms.
He wants to say I love you, nothing can hurt you

but he thinks
this is a lie, so he says in the end
you’re dead, nothing can hurt you
which seems to him
a more promising beginning, more true.

O mito da devoção

Quando Hades descobriu que gostava desta garota
construiu para ela uma duplicata da terra,
tudo igual, até o campo,
mas acrescentou uma cama.

Tudo igual, incluindo a luz do sol,
porque seria difícil para uma garota
sair da luz brilhante para a escuridão profunda

Gradualmente, ele pensou, introduziria a noite,
Primeiro como sombras de folhas flutuantes.
Depois a lua, depois estrelas. Depois sem lua, sem estrelas.
Deixar Perséfone se acostumar a tudo devagar.
Ao final, ele imaginou, ela acharia o escuro aconchegante.

Uma réplica da terra
mas haveria amor aqui.
Não querem todos o amor?

Ele esperou anos a fio,
Construindo um mundo, observando
Perséfone no campo.
Perséfone, aquela que cheira, a que saboreia.
Se você tem um apetite, pensou ele,
terá todos.

Não querem todos sentir na noite
o corpo amado, a bússola, a estrela polar,
ouvir a respiração tranquila que diz
eu estou viva, o que também significa
que você está vivo, porque você me ouve,
você está aqui comigo. E quando um se move,
o outro se move –

Foi o que ele sentiu, o senhor das trevas
olhando o mundo que havia
criado para Perséfone. Nunca lhe passou pela cabeça
que não haveria cheiro algum aqui,
e certamente nenhuma refeição.

Culpa? Terror? Medo do amor?
Nada disto ele imaginou;
nenhum amante imagina isto.

Ele sonha, se pergunta como chamar este lugar.
Primeiro, pensa: O novo inferno. Depois: O jardim.
No final, decide chamá-lo
Juventude de Perséfone.

Uma luz suave subindo acima do campo,
atrás da cama. Ele a toma em seus braços.
Quer lhe dizer: Eu te amo, nada pode te machucar

mas pensa
isto é uma mentira, então diz ao final
você está morta, nada pode te machucar
o que lhe pareceu
um começo mais promissor, mais verdadeiro.

Image
Try to think, said the teacher,
of an image from your childhood
Spoon, said one boy. Ah, said the teacher,
this is not an image. It is,
said the boy. See, I hold it in my hand
and on the convex side a room appears
but distorted, the middle taking longer to see
than the two ends. Yes, said the teacher, that is so.
But in the larger sense, it is not so: if you move your hand
even an inch, it is not so. You weren’t there, said the boy.
You don’t know how we set the table.
That is true, said the teacher. I know nothing
of your childhood. But if you add your mother
to the distorted furniture, you will have an image.
Will it be good, said the boy, a strong image?
Very strong, said the teacher.
Very strong and full of foreboding.

Imagem
Tente pensar, disse a professora,
em uma imagem da sua infância.
Colher, disse um garoto. Ah, disse a professora,
isto não é uma imagem. É sim,
disse o garoto. Veja, eu a trago na minha mão
e no lado convexo aparece uma sala
um pouco distorcida, com o meio mais demorado de ver
que os dois finais. Sim, disse a professora, é verdade.
Mas no sentido mais amplo, não é verdade: se você mover sua mão
um pouco que seja, não é mais verdade. Você não estava lá, disse o garoto.
Você não sabe como colocávamos a mesa.
É verdade, disse a professora. Eu não sei nada
da sua infância. Mas se você acrescentar sua mãe
à mobília distorcida, você terá uma imagem.
Será bom, disse o garoto, ter uma imagem forte?
Muito forte, disse a professora.
Muito forte e cheia de presságios.

Matins
You want to know how I spend my time?
I walk the front lawn, pretending
to be weeding. You ought to know
I’m never weeding, on my knees, pulling
clumps of clover from the flower beds: In fact
I’m looking for courage, for some evidence
my life will change, though
it takes forever, checking
each clump for symbolic
leaf, and soon the summer is ending, already
the leaves turning, always the sick trees
going first, the dying turning
brilliant yellow, while a few dark birds perform
their curfew of music. You want to see my hands?
As empty now as at the first note.
Or was the point always
to continue without a sign?

Matinas
Você quer saber como eu gasto meu tempo?
Eu ando pela grama em frente da casa, fingindo
que estou capinando. Preciso lhe dizer
que não estou capinando, de joelhos, puxando
punhados de trevos dos canteiros de flores: na verdade
eu procuro por coragem, por alguma evidência
de que minha vida irá mudar, ainda que
que demore uma eternidade, buscando
em cada um desses punhados pela folha
simbólica, e em breve o verão termina, e
as folhas já estão mudando, as árvores doentes
sempre indo primeiro, as mortas se tornando
amarelo brilhante, enquanto pássaros negros fazem
seu toque de recolher musical. Você quer ver minhas mãos?
Tão vazias agora como na primeira nota.
Ou o objetivo sempre foi
continuar sem sinal algum?

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