Editoria Felipe Cordeiro
Entrevista com Éder Rodrigues
Éder Rodrigues é poeta, contista e dramaturgo. Mineiro radicado na Bahia, atualmente se dedica à docência no Centro de Formação em Artes da Universidade Federal do Sul da Bahia. O autor respondeu, por e-mail, algumas perguntas em decorrência do lançamento de seu livro O infindável museu das coisas efêmeras (Telecazu Edições), do qual nosso leitor poderá ler alguns trechos entremeados às perguntas.
Todo desejo é um segredo que a língua guarda
Uma cicatriz que o corpo esconde
Um adeus que o museu aprofunda.
Felipe Cordeiro/ Letras: Por que lançar um livro de poesia, mania tão fora de moda, quando o fim do mundo irrompe a plenos pulmões?
Éder Rodrigues: A poesia nunca esteve na moda e, graças a isto, segue incólume a modismos, a expectativas, a especulações e também a uma variável funcional que ela sopra, mas não adere. É bom que esteja sempre fora de moda, porque este detalhe a desobriga e mantém acesa sua centelha secular e ancestral. A Poesia se encerra no ato de recolher o que a humanidade desentende, atropela, banaliza. A poesia lida com os fios do sensível e do simbólico. Quando ocorre o desfibramento destes fios é sinal de que o mundo do qual falamos já não existe mais.
O fim do mundo também já aconteceu inúmeras vezes e não precisa ser poeta para saber que foi a Arte a única instância capaz de reerguer a humanidade dos escombros que ela mesma cava. Sabe por quê? Porque a poesia é também aquilo que não conhecemos. É a maneira mais sincera de partilhar dos abismos exatamente na altura em que tememos calcular a altura.
Este mundo que irrompe a plenos pulmões só será ressignificado se nos tornarmos seres mais poéticos, mais sensíveis, mais humanamente assentados na singularidade delicada de ver e sentir as coisas.
Poesia é um jeito de ser e estar no mundo. O livro é um lugar que ela habita para cutucar o sono dos que se acham sabidos demais. Lançar um livro de poesia, estrear uma peça de teatro, insistir em saraus de troca e partilha, mensurar a arte do afeto talvez sejam as coisas mais revolucionárias na nossa atual conjuntura.
Primeiro sopro
Eu não sei me despedir das coisas que tive.
Nem prender as palavras dentro de mim
como se pudesse amansá-las
até significarem apenas o sentido que ensinei.
Tenho desses caprichos de não suportar
os corações que tive na palma
e os corpos onde estive dentro.
A palavra desfalece nos braços ainda quentes
de tudo que se bifurca.
O tempo é um companheiro sincero.
Nós é que desprezamos o que todo dia
ele confessa sem cerimônias.
FC/ Letras: Seu livro de poesia chega ao público após você já ter sido nacionalmente premiado por sua produção poética e teatral ao longo das últimas décadas. Quais foram os motivos dessa espera?
ER: Eu trabalho profissionalmente com a escrita desde 2006. Iniciei uma longa jornada ao percorrer os festivais literários periodicamente realizados nas cinco regiões do nosso país, principalmente aqueles que não desassociam a literatura do viés performático de suas fontes e manifestação. Tenho a tranquilidade de dizer que, cartograficamente, conheci cada um desses lugares especiais que abrange tanto festivais em municípios minúsculos a eventos como a Jornada Nacional de Literatura, o maior evento literário brasileiro onde recebi o Prêmio Josué Guimarães de Contos em 2009. O meu público foi sendo reunido em torno dessas andanças em que eu levava a poesia no meu próprio corpo e também junto à temporada das 15 peças teatrais que escrevi.
Comecei a ser publicado em 2007, em antologias nacionais que hoje passam de 72, além de uma incursão especial na Revista Agália, periódico lusófono de grande destaque internacional. De lá para cá, os prêmios recebidos projetaram muito o meu trabalho e tenho certeza que eles são o resultado desse corpo a corpo, dessa maneira plural de entender a literatura para além do livro. Até hoje me emociono quando chego nos lugares e as pessoas sabem de cor algum poema, conto ou peça do meu repertório. O livro O Infindável Museu das Coisas Efêmeras também reúne esta itinerância, esta forma de conexão poética meio que mambembe, herdada do teatro, e que mantenho no trabalho literário, no caso desta obra, junto a este museu poeticamente inventado para reunir as coisas incapturáveis.
Não é que houve espera. O que não havia era tempo.
O tempo é um menino arteiro
que diante de um terreno íngreme,
acelera mais ainda.
FC/ Letras: Na boca de sua poesia é possível identificar frases de suas personagens teatrais e vice-versa. Quais são os desafios que você enfrenta em cada uma das expressões literárias nas quais se aventura? Quais são as distâncias e aproximações entre elas?
ER: Não faço distinção entre os segmentos literários. Os atravessamentos entre um e outro acontecem de forma pulsante e, em determinado momento, a própria obra sopra no meu ouvido o formato final que habitará enquanto texto. Como todo o escritor, fiel ao ofício, mantenho um baú de ideias, argumentos, disparadores, trechos e anotações. O meu papel é esvaziá-los até conseguir permear a camada mais abissal que as superfícies ocultam. Meus poemas são performáticos, escritos para serem ditos, para serem corpografados. Assim como meus personagens são poéticos, dialogam poeticamente em uma esfera quase impossível porque justamente me interessa ferir e assoprar esta impossibilidade com a qual, nós, humanos, não sabemos lidar.
Cama feita arde em solidão simétrica.
FC/ Letras: Há uma presença latente de Hilda Hilst em muitos de seus poemas. Como é sua relação com a obscena senhora H?
ER: Hilda Hilst me ensinou que Poesia é tudo aquilo que escorre. O resto qualquer um rima com alguma coisa e sai por aí dizendo que escreve.
Hilst é uma referência para mim. Uma das maiores escritoras brasileiras cujo projeto literário acontece em torno do desejo, do incorpóreo e do corpóreo que a liberdade prioriza e mantém como centelha e pulsão.
Desde a última vez que voltei da Casa do Sol, a Senhora H me persegue, me visita, toma café comigo, me diz as coisas mais absurdamente saborosas, ironiza as sapiências mais seguras e agulha as angústias que a existência sempre veste. A presença e a ausência dela faz com que eu mergulhe no que temos de mais reticente.
E se o orvalho molhar a lenha:
use os livros da estante.
FC/ Letras: Você possui cinco livros publicados no segmento infantojuvenil. Como enxerga as infâncias e juventudes para as quais escreve? Que temáticas lhe são caras quando pensa nesse público?
ER: São 6 agora. Em primeira mão. Acabo de lançar o meu novo livro infantojuvenil Carrossel de um cavalo só, pelo selo da Editora Ática, a mesma editora da Série Vagalume, que lá atrás me formou enquanto leitor. Eu tenho um cuidado muito dilatado ao escrever para este público. Não é uma questão etária. Trata-se de estabelecer elos com aqueles/a que poderão reconstituir o mundo lá na frente, e esta reconstituição começa exatamente com e a partir deste elo.
Nenhuma temática me é cara, até porque o imaginário infantojuvenil está alheio aos preconceitos e às armaduras característicos do mundo adulto. Por isso, costumo dizer que escrevo para crianças de todas as idades.
Sinto tua presença nas ruas que o cascalho não tapa.
Na fresta das casas a recordar tua partida
quando ainda criança, eu sonhava com o cinema
e colecionava maços de Hollywood.
FC/ Letras: De quais formas você percebe que sua trajetória como artista potencializa seu trabalho como professor universitário?
ER: Em todas as frentes. A sala de aula é puro movimento. Leciono exatamente a desaprendizagem das coisas, literalmente “as experiências do sensível” como formas de recuperar ou de irrigar o estado dilatado de permanência e especialidade que cada ser carrega. E que é capaz de compartilhar por meio da arte ou através de qualquer outra via que, ao chegar no outro, arte se torna.
Mas antes, prove do gosto indelicado
dessa fome que nunca floresce.
FC/ Letras: Tanto sua obra literária quanto sua participação em congressos e feiras traçam caminhos decoloniais, não se curvando a muitos cânones europeus e norte-americanos. Por que, para você, é importante marcar esse posicionamento?
ER: Enquanto escritor e artista faço questão de demarcar o meu local de enunciação latino-americano e também a comunidade lusófona como um espaço aglutinador de poéticas, dissidências e resistências. Lidamos com um histórico de colonização muito violento e, para além das linhas geográficas, esta colonização ainda se perpetua no pensamento, no aparato estético de nossas fontes, na interdição dos corpos, nos silenciamentos múltiplos. Lembro-me do ápice dessa tensão quando a América Latina equivalia ao quintal do mundo. Pois bem. Chegamos numa altura que a história vai ser contada por nós mesmos, e, até gosto da ideia de quintal, porque o nosso é cheio de encantarias, raízes, ancestralidades, jeitos próprios de contar, de narrar, de tecer o novelo sensível que nos identifica. Agora a história vai ser soprada e corpografada a partir daqui. E para os ouvidos relutantes, sugiro três gotas de limão e muito mais do que mil e uma noites.
IV – Das posses
Aos meus netos:
deixo um oratório sem muitos santos
para que não desperdicem tanto tempo de joelhos,
pedindo perdão por coisas que nem fizeram.
Acendam velas e só se ajoelhem
para confessar a deus os prazeres vividos até o cume.
Ele ficará mais feliz com essas verdades
do que com as ladainhas que até os infelizes sabem de cor.
Deixo-lhes minhas bolinhas de gude, meus vinis do porto,
brochuras que caligrafei com garatujas
quando eu pouco entendia da taquicardia dos tempos.
Uma vida sem acúmulos, sem quinquênios, sem valores.
Sem terrenos sobrando à mercê da fome
que paira na margem invisível dos pios.
Toda a minha herança coube
num bauzinho à revelia no porão.
Não multipliquei alqueires, só sabores.
Caíram os dentes,
mas cicatrizei a marca de cada mordida.
Não deixo família nem mulher.
Abandonaram-me quando o mundo quis
e eu não tive desses egoísmos de prender.
Só sei do que fui pela pequenitude
de tudo que não se edifica e, ainda assim,
conserva a grandeza das coisas.