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Cidades na linha de frente da pandemia: diagnósticos e soluções

Editoria Thiago Jardim

Grandes cidades no mundo inteiro foram profundamente impactadas pela pandemia do novo coronavírus. Os efeitos devastadores do vírus sobre a vida se propagaram rapidamente nos meios urbanos e, sem vacina, optou-se na maioria das cidades pelo lockdown, política de distanciamento social que esvaziou as ruas. O comércio foi fechado, exceto as atividades classificadas como essenciais. As ruas ficaram desertas e as cidades praticamente paradas principalmente à noite. O movimento se restringia ao espaço cibernético, a polícia e ambulâncias, motocicletas e veículos de delivery.

O retrato dos centros urbanos nas fases mais agudas da pandemia era desolador. Em outros tempos, entretanto, tudo seria pior. As evoluções no sistema financeiro e nos meios de transporte e comunicação permitiram que grande parte das pessoas se acomodassem em casa, amenizando os impactos da pandemia. O auxílio emergencial, quantia monetária de auxílio aos indivíduos que tiveram suas atividades laborais interrompidas, era transferido no espaço cibernético. Ordens de serviços eram feitas por telefone ou por “apps”, aplicações cibernéticas. Enquanto as ruas estavam vazias, as edificações, principalmente as residenciais, estavam tomadas por trabalhadores em “home-office” e crianças ausentes das escolas.

O lockdown, ou, em português, bloqueio total ou confinamento, foi um protocolo de isolamento que impediu o movimento de pessoas para proteger os indivíduos mais vulneráveis ao vírus, que são aqueles com mais de 60 anos de idade e aqueles com comorbidades. A medida restringiu direitos fundamentais do cidadão como a liberdade de ir e vir para salvar parte da população. Em Belo Horizonte, os habitantes com 60 anos de idade ou mais representam 7,94% da população e a letalidade do vírus para esta faixa etária, levando em conta as circunstâncias observadas nas metrópoles brasileiras durante a pandemia, é de aproximadamente 20%. A mortalidade nesta faixa etária, portanto, poderia atingir aproximadamente 1,5% da população belo-horizontina, o que equivaleria a 37.5 mil habitantes. Com base nos dados publicados até maio de 2021, foram confirmados 187 mil casos de COVID em Belo Horizonte e foram registrados 4,5 mil óbitos, 0,18% da população. As evidências sugerem que não houvesse políticas de distanciamento social, ambas quantidades de contágio e óbitos seriam maiores.

Por outro lado, o lockdown reflete a incapacidade do sistema de saúde em lidar com situações adversas como a provocada por esta pandemia. Como consequência, o PIB brasileiro caiu 4,1%, – sendo provável a queda do PIB em algumas cidades em até 10% -, a arrecadação da União caiu 5%, o gasto público federal aumentou 35% e a dívida líquida da União aumentou em 20%. Dos R$ 510 bilhões gastos pela União no enfrentamento da pandemia em 2020, R$ 293 bilhões foram transferidos sob forma de auxílio emergencial a 67,9 milhões de trabalhadores. Não teria sido mais vantajoso manter a economia funcionando plenamente e ter alocado esses recursos para pessoas do grupo de risco e centros de acolhimento aos mais vulneráveis? No Brasil, há 20,5 milhões de pessoas com 60 anos ou mais, aproximadamente 10% da população. Houvessem divido o auxílio emergencial para indivíduos deste grupo, cada um teria R$ 14.300,00 ao seu dispor, ou R$1.590,00 por mês entre abril e dezembro de 2020. Não há solução simples, mas a política vencedora é aquela que resulta em menos óbitos e menos danos à economia.

As consequências econômicas da pandemia serão sentidas ainda por muito tempo, principalmente nas cidades. Segundo dados da Junta Comercial de Minas Gerais ocorreu a extinção de 21.321 empresas em Belo Horizonte em 2020, aproximadamente 6% do total de empresas da cidade. Este número pode ser muito maior, tendo em vista que as empresas não registram imediatamente o encerramento de suas atividades. O programa de empréstimos do Governo Federal não foi suficientemente atrativo para manter estas empresas ativas. As taxas de desempregos já batem recordes.

A baixa produtividade aliada a uma expansão fiscal e monetária sem precedentes no Brasil e no Mundo, começa a trazer à luz um problema clássico em macroeconomia, a inflação, cujo antídoto é a elevação dos juros e austeridade, menos gastos públicos. O problema é que a elevação da taxa de juros arrefece a atividade econômica e eleva o custo de serviço da dívida. O gasto com juros no Brasil em 2020 foi de 18% da arrecadação – os títulos de dívida atrelados à taxa de juros (Selic) correspondem a 34% da dívida total; os títulos atrelados à inflação representam 28%; os títulos prefixados representam 33% e os títulos atrelados ao câmbio correspondem a 5% da dívida total. Se para conter a inflação for necessário elevar a taxa Selic de 3,5% para 7%, como estava em 2018, o custo do serviço da dívida passaria de 18% da receita da União para 24%. Com déficits recorrentes, a dívida pública e o risco de se investir no país aumentam. A crise de 2015 e 2016 foi causada por medidas de contenção da inflação e de estancamento da dívida pública. Esta é a segunda crise que poderá vir se a inflação sair do controle. Os déficits fiscais precisam ser sanados e as dívidas serão eventualmente pagas com aumento de impostos, maior produtividade, ou com a própria inflação – que é uma espécie de tributação sobre os mais pobres, principalmente os trabalhadores informais. Levará algum tempo para que se estabeleça um cenário de inflação baixa, juros baixos, e pleno emprego. Em alguns países, a dificuldade de reestabelecer a vitalidade econômica pode gerar crises políticas, adoção de políticas heterodoxas ou até revoluções que poderiam comprometer o futuro de uma geração.

O vírus afeta desproporcionalmente as pessoas, empresas e países mais vulneráveis. Nas cidades, o impacto da pandemia varia também com o endereço, o grau de instrução, o nível de renda, o tipo de transporte utilizado, a densidade urbana, a condição das habitações e da infraestrutura de saneamento. O alto grau de instrução é correlacionado ao alto nível de renda, e também a maior parte dos trabalhadores que conseguiram manter suas atividades em home-office. Contra intuitivamente, um estudo do Banco Mundial realizado em junho de 2020, demonstrou como bairros menos densos em Nova York foram mais afetados pelo Coronavírus que bairros mais densos, justamente por aspectos como o nível de renda e instrução, mas principalmente devido a qualidade da moradia e da infraestrutura de saneamento. O bairro de West Queens, com densidade de 12,5 mil habitantes por km², apresentava 4,4 mil casos por 100 mil habitantes em junho de 2020. Já o bairro Upper East Side, em Manhattan apresentava cerca de 500 casos por 100 mil habitantes, nove vezes menos, mesmo sendo uma região com densidade de 58 mil habitantes por km², cinco vezes superior. Upper East Side é um bairro nobre e verticalizado, com construções que proporcionam mais espaço construído por pessoa.

De acordo com a Prefeitura de Nova York, os indicadores apresentados no estudo do Banco Mundial persistem até hoje. Upper East Side apresenta atualmente 5 mil casos por 100 mil habitantes contra 13 mil em West Queens e, como pode ser observado no mapa de Nova York, a ilha de Manhattan foi a região menos impactada relativamente ao tamanho de sua população.

O estudo do Banco Mundial pondera enfim sobre a necessidade de remodelar as densidades econômicas urbanas e tornar o tecido urbano socialmente inclusivo e ambientalmente sustentável. Dentre as cinco importantes recomendações feitas na análise destaco aqui duas que considero mais relevantes para Belo Horizonte:

i) A garantia do direito de propriedade. A garantia do direito de propriedade é a chave para o funcionamento do sistema econômico atual, e no caso, do mercado imobiliário. A inexistência de direitos sobre a propriedade, ou direitos inseguros e instáveis, atrapalham o desenvolvimento econômico. Em Belo Horizonte e em demais cidades brasileiras vem ocorrendo frequente uma extração de direitos sobre a propriedade, como a redução do índice de aproveitamento dos terrenos que traz insegurança para os proprietários e desvirtua a alocação de recursos na cidade. Além disso, parte considerável da população não dispõe de títulos de propriedade e permanecem em habitações informais, sem incentivos para tornar o seu “patrimônio” melhor.

ii) A mudança de regulamentações que restringem o potencial de uso do solo para possibilitar a ampliação da quantidade de espaço construído por pessoa. Contrário ao que se observa nas principais cidades no mundo, Belo Horizonte e outras cidades brasileiras vem reduzindo o potencial de aproveitamento do solo urbano para construção com a regulação de índices de aproveitamento extremamente restritivos. Além de extrair direitos sobre a propriedade, restringir o aproveitamento do solo, ou seja, restringir a expansão da oferta de espaço construído, exerce uma série de efeitos negativos como a subdivisão de imóveis e o aumento do preço dos imóveis relativo à renda dos habitantes, – residências e escritórios menores e mais caros. Ocorrem também outras externalidades como a expansão horizontal do desenvolvimento imobiliário, maiores despesas com expansão e manutenção de infraestrutura de transporte e saneamento, depreciação de regiões centrais e a migração de famílias e empresas para novos edifícios em áreas afastadas.

Evidências indicam que a intensidade de conversão da terra em capital imobiliário está associada a um desenvolvimento econômico mais sustentável, com melhor aproveitamento do espaço, preservação e ampliação de áreas verdes, menor uso de automóveis e consequentemente menor consumo de combustível e emissão de CO2. Dentre outros benefícios do melhor aproveitamento do solo urbano, da redução da área ocupada e ampliação de atividades econômicas em uma área, estão algumas características que otimizam o desempenho econômico da cidade como: i) eficiências de escala, aumento da produção e redução marginal de custos, otimizando os mercados de produtores e consumidores; ii) elevação da arrecadação de recursos por unidade de área; iii) viabilidade de meios de transporte sustentáveis; iv) redução de tempo e custo de transporte; v) aumento de socialização e de transbordamentos de conhecimento; vi) maior grau de inovação, especialização e diversificação dos bens e serviços, elevando o padrão de vida.

Conceder um elevado potencial de uso do solo é um papel desempenhado pelo Governo Municipal com a regulação de parâmetros urbanísticos, como o índice de aproveitamento de terrenos. A prefeitura de Belo Horizonte, entretanto, tem feito o oposto ao recomendado nas últimas 3 décadas e especialmente após o último plano diretor. O índice de aproveitamento dos terrenos é um número definido pelo governo para determinar quantas vezes a área de um terreno pode se transformar em espaço construído. Um índice de aproveitamento de 15, como ocorre em algumas áreas de Manhattan, significa que o construtor pode construir uma edificação com área construída equivalente a 15 vezes a área do terreno. Até a década de 90, o maior índice de aproveitamento na região central de Belo Horizonte era 8. Este era o direito de aproveitamento do solo que os proprietários detinham na época e foi reduzido para 3 com o plano de 1996. Sabendo que o valor de uma propriedade varia de acordo com o potencial de produção da propriedade, a prefeitura desvalorizou parte significativa dos bens imobiliários dos proprietários em uma iniciativa conhecida na ciência econômica como “destruição de valor”. Proprietários comuns, a não ser os construtores, raramente sabem o que é índice de aproveitamento e que o valor de sua propriedade está condicionado ao valor do índice. Quando decidem vender sua propriedade, o fazem ao preço de mercado, sem saber como o mercado precifica.

Em 2018, data da aprovação do atual plano diretor de Belo Horizonte, o governo municipal optou por reduzir ainda mais o direito dos proprietários regredindo o índice de aproveitamento básico de todas as propriedades para 1 vez a área do terreno. O plano, entretanto, permite índices de aproveitamento máximo de até 5 nas áreas centrais e principais vias de transporte. Mas, desde que a prefeitura seja compensada financeiramente por ceder esse “direito adicional”. Deu-se a este instrumento o nome de Outorga Onerosa do Direito de Construção. Para adquirir o potencial de construção de 3 vezes a área do terreno, ou seja, ampliar o aproveitamento básico do terreno em 2 unidades adicionais, o empreendedor deve compensar a prefeitura um montante equivalente a 100% do valor do terreno. Caso o empreendedor queira adquirir o potencial máximo de construção, que é o índice de aproveitamento de 5, ele deve compensar a prefeitura em 200% do valor do terreno. Seria como adquirir o terreno três vezes a não ser que o proprietário aceite reduzir o valor do seu bem em um terço para comportar o custo da prefeitura. A insegurança ou instabilidade sobre o direito de propriedade atrapalha a alocação de recursos e o desenvolvimento econômico.

As restrições que acompanham o desenvolvimento de Belo Horizonte e demais cidades brasileiras não encontram paralelos no mundo desenvolvido. Londres e Paris foram desenvolvidas durante o século XIX e XX com índices de aproveitamento de até 8. Já nas áreas centrais de Chicago e Nova York, os índices de aproveitamento chegam a 20. Em Hong Kong e Cingapura, o índice na área central é 15 e 25 respectivamente.  O reflexo das políticas belo-horizontinas é evidenciado no envelhecimento e na depreciação do centro da cidade, no espalhamento de edificações de médio-alto porte no território, principalmente para a Zona Sul, e mais recentemente em Nova Lima, onde está sendo canalizada a maior parte dos investimentos imobiliários. A cidade tem 2 vezes mais automóveis por habitante que Nova York e 3 vezes mais que Londres mesmo com custos de aquisição, manutenção e gasolina significativamente superior, um exemplo de deseconomia. Os baixos índices de aproveitamento do solo não evitaram a consolidação de níveis moderados de densidade populacional, com 5 a 15 mil habitantes por km² na maioria dos bairros, e 20 a 35 mil nas favelas. O baixo índice de aproveitamento, entretanto, tem restringido a produção imobiliária, reduzido a quantidade de espaço construído por habitante e elevado o preço dos imóveis relativo à renda dos moradores. De acordo com o IBGE, 13% das habitações em Belo Horizonte ainda são consideradas subnormais. Restringir a produção imobiliária é justamente o oposto do que deve ser feito em uma cidade onde os habitantes precisam de moradias adequadas e melhor qualidade de vida. A burocracia e as restrições ao empreendedorismo em Belo Horizonte acabam arrefecendo a atividade econômica e atrasando o progresso da cidade que, assim como o país, ainda está em desenvolvimento.

Os planejadores urbanos de BH promovem tais políticas restritivas por diversos motivos os quais descrevo em ordem decrescente de importância: i) restringir a valorização do capital imobiliário e, nas palavras deles, extrair do setor privado a mais-valia oriunda da especulação sobre a terra; ii) tornar o uso e o valor da terra igualitário; iii) arrecadar mais para supostamente investir em infraestrutura e moradias populares; iv) descentralizar a ocupação e criar subcentros “autossustentáveis”. Se subcentros fosse algo interessante e eficiente, os mercados o fariam naturalmente. Os subcentros que se desenvolvem forçadamente na RMBH, na realidade, estão se tornando centros rivais, subjugando o centro antigo e, o que se observa, de fato, é a perda da unidade territorial com a desintegração da cidade em multicentros de distintas classes sociais.

Embora o processo de urbanização tenha sido historicamente acompanhado pela redução da pobreza, inequidades herdadas de longa data foram agravadas pela pandemia. Hoje muitos trabalhadores informais fazem parte das fileiras crescentes de “novos pobres” criados pela pandemia. Se esses trabalhadores tiverem dificuldade em reestabelecer suas atividades, possivelmente migrarão para próximo de novas oportunidades de trabalho ou, no pior cenário, se renderão a atividades ilícitas. A construção civil é uma grande fonte de empregos e com as baixas taxas de juros atuais, as construtoras estão ampliando o estoque imobiliário majoritariamente fora de Belo Horizonte. O número de habitantes que compõem a Região Metropolitana de Belo Horizonte, exceto BH, cresce 2,7% ao ano, quatro vezes mais que o crescimento populacional de Belo Horizonte, que é de 0,7% ao ano. Uma emigração em massa seria problemática para a economia de Belo Horizonte. Bastaria uma emigração de 200 mil pessoas para tornar a taxa de crescimento populacional de BH negativa. Portanto, monitorar esta taxa de crescimento populacional é consideravelmente importante olhando para o futuro.

A forma como a população ocupa o espaço urbano é resultado da adaptação das leis mercadológicas de oferta e procura por espaço para moradia e trabalho – onde o interesse dos indivíduos se manifesta -, às leis de uso do solo, onde o interesse político se manifesta. A pandemia poderá influenciar no padrão de ocupação e uso do solo e as metrópoles poderão naturalmente se tornar menos densas. Isto também não impede que seja possível produzir mais espaço construído. Quem terá que lidar com os riscos do investimento é o empreendedor. As pessoas irão comprar apartamentos ou escritórios e adensar mais as regiões da cidade ou irão emigrar? Depende da área? Depende do preço? Estas decisões cabem ao indivíduo, ao construtor e ao habitante, o ofertante e o demandante no mercado imobiliário. Ao planejador, que não é um ser omnipresente, resta atentar para os sinais vitais da cidade e atuar adequadamente.

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