Cheguei à Biblioteca da Assembleia em 1986, antes da informatização, quando todos os processos técnicos seguiam padrões tradicionais.
Anotava-se o empréstimo de livros em fichários e, sempre que o leitor estava em atraso, expedia-se uma correspondência, lembrando-lhe da devolução. Com larga tolerância. Persistindo o problema, enviava-se um formulário-cobrança mais incisivo, onde eram citadas as normas que estipulavam multas e obrigatoriedade de reposição do livro, em caso de perda.
Um dia, chegou-me a seguinte carta:
Prezada Senhora,
Recebi sua caluniosa correspondência de 16/10/1986, em que fui acusado de dever um determinado livro à essa Biblioteca. Esclareço que jamais pus meus pés nesse lugar e nem peguei aí nenhum livro emprestado.
Aliás, eu tenho pavor de dever. Prefiro emprestar. Ainda mais livro que é uma coisa que não tenho costume. Se eu gostasse, eu comprava porque tenho razoável poupança na MINASCAIXA, conforme os demonstrativos que mando. E, aqui na Assembleia, ainda costumo emprestar dinheiro. Cobro juro baixo e socorro colegas e até deputados. Se duvidar, mostro as notas promissórias aqui na minha gaveta.
Por isso, peço que tire meu nome disso. Atenciosamente,
Levei um susto e fui conferir com o pessoal do atendimento. Num instante, descobrimos que a cobrança tinha chegado em mãos erradas. O cidadão revoltado era xará do usuário em atraso. O trabalhador-mirim novato que entregava a correspondência fez a confusão. Rimos muito e fiquei pensando o que fazer.
Descobrimos que o indignado era um dos esquisitos da Casa – lá sempre houve muitos. Era um tipo solitário, verdadeiro misantropo e sovina. De fato, emprestava dinheiro para muita gente. Não era usuário da biblioteca e, sim, usurário na Assembleia. Guardei por muito tempo aquela carta, cheia de extratos de poupança. Era tempo de hiperinflação e ele tinha aberto muitas contas – quase uma para cada dia do mês.
Tive vontade de convidá-lo para conhecer a biblioteca e dizer que lhe mostraria uns livros, pelos quais eu achava que ele, talvez, se interessasse. Poderia ajudá-lo com sugestões, fazendo comentários sobre os mesmos.
Mas não fiz nada disso. Acabei optando por encerrar o assunto sem delongas. Apenas mandei-lhe uma resposta objetiva, explicando o equívoco e pedindo desculpas. Havia um consenso entre meus colegas de que seria difícil fazê-lo trocar sua coleção de extratos e promissórias por livros. Assim, mantive a boa e velha postura técnica, sintonizada apenas com os objetivos maiores da Instituição.
Hoje acho que eu teria tentado. Contaria para ele que nós não possuímos livros – são eles que nos possuem. Quando dormem conosco, os livros podem virar sonhos, desejos e até carícias. Ele possivelmente não iria acreditar, mas se eu insistisse, talvez o convencesse a trocar suas moedas por contos, poesias e romances. Nessa barganha, ele poderia ganhar juros de deleite, abrindo uma conta corrente de emoções. Afinal, livros não são só para ler: pode-se cheirar, abraçar, chorar e até pirar com eles.
No entanto, não falei nada disso, convencida de que para ele, “ter” era muito mais sedutor do que “ler”. Hoje me arrependo, pois, se o conquistasse, o troféu seria meu. Poderia estar aqui contando outra história. Porém, a palavra não foi dita, o esforço não foi feito e o limite não se rompeu. Neguei-me essa chance.
Penso que, se eu tivesse, ao menos, ousado, com certeza não sentiria um puxão de orelhas quando lesse em Mário Quintana: “Livros não mudam o mundo, quem muda o mundo são as pessoas. Os livros só mudam as pessoas.”
Edith de Andrade Roque nasceu em Visconde do Rio Branco – MG, em 23/03/1950. Estudou Letras na PUC-MG e Biblioteconomia na UFMG. Aposentou-se como servidora pública e continua atuante como cafeicultora em Paula Cândido. É estreante como escritora solo e participou da Oficina de Literatura Letras e Ponto. É membro correspondente da Academia Ubaense de Letras e recebeu a medalha do Mérito Legislativo pela Assembleia de Minas, onde trabalhou.