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Patrimônio cultural no Brasil: 80 anos de encontros e desencontros

Nesta edição, o Letras abre as portas ao encontro da visão sensível e técnica de Adalberto Andrade Mateus, do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais – o IEPHA/MG, que vai traçar o percurso percorrido desde os modernistas – no início do século passado – até chegarmos hoje, em 2017, à celebração dos 80 anos da criação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN e da elaboração do Decreto-lei n. 25/1937, ainda vigente e marco regulatório da proteção do patrimônio cultural no Brasil.

Por Adalberto Andrade Mateus
Editoria Liana Portilho
SE ENCONTRANDO NOS CAMINHOS DO PATRIMÔNIO E, ACIMA DE QUALQUER VISTA
Há cerca de um ano, os bens culturais brasileiros alcançaram significativo espaço no noticiário nacional suscitando sério debate sobre os limites da ingerência administrativa que vez ou outra os ameaçam. O conhecido caso da construção do prédio La Vue que ultrapassava os limites impostos por diretrizes protetivas a conhecidos bens culturais na orla de Salvador, nos questiona e nos provoca: qual o valor do nosso patrimônio cultural?
Passada a polêmica situação, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) conquistou não somente o apoio à sua causa, como se revigorou perante a opinião pública brasileira como uma das mais longevas e sérias instituições públicas brasileiras, capaz que foi de sobreviver a diferentes regimes políticos e alcançar o octogenário aniversário de criação em 2017.
Fruto de intensas pesquisas e observações que vinham desde a década de 1920 (em que se destaca os trabalhos de Mário de Andrade) e da necessidade de proteção de monumentos e obras históricas, o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional surgiu de fatores conjunturais que buscavam a unidade em torno de um projeto nacional. Criado durante a ditadura do Estado Novo, suas ações sempre estiveram vencendo as distâncias do país continental, contrariando interesses políticos, econômicos e financeiros, sabendo se reinventar como sugere a própria alma brasileira, sempre inovadora e criativa.
Comemorar os oitenta anos de uma instituição como o Iphan é revisitar nossas origens, é saber de onde viemos, é refletir sobre como vivemos e, acima de tudo, criar perspectivas para o futuro a que chegaremos.
Em se tratando de política pública, a instituição abriu, de certa forma e guardadas as devidas proporções, o tratamento de valores culturais como política de Estado. E, ainda por sua definição legal, percebe-se a preocupação em consolidar de forma definitiva sua presença no escopo da atuação do governo: “com finalidade de promover, em todo o país e de modo permanente, o tombamento, a conservação, o enriquecimento e o conhecimento do patrimônio histórico e artístico nacional” (grifo nosso, artigo 46 da Lei nº378, de 13/01/1937).

Rodrigo Melo Franco de Andrade e Carlos Drummond de Andrade no Morro da Queimada, em Ouro Preto, 1951 [Acervo Iphan]
Com a presença do Iphan no cenário institucional e a obstinada direção do mineiro Rodrigo Melo Franco de Andrade (à frente da criação e responsável pela consolidação, sendo diretor de 1937 a 1967), começa um intenso trabalho de conhecimento do país sobre si mesmo. Estava delegada, a partir dos dispositivos legais já mencionados, a função de reconhecer o que então se constituía como patrimônio histórico e artístico brasileiro: “o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interêsse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico” (decreto lei º25/1937, de 30/11/1937). Atuando ‘sozinho’ nos trinta anos seguintes à sua criação, somente a partir da década de 1960 é que são criadas as instituições em nível estadual, para cuidar igualmente de ‘seus’ patrimônios nessa instância. Assim, surgem primeiramente o IPAC na Bahia (1967), o Condephaat em São Paulo (1968) e o IEPHA em Minas Gerais (1971). Reforços importantes que vão repercutir em ampliação do reconhecimento do que seja patrimônio cultural. E, a partir da Constituição de 1988, de forma definitiva, o patrimônio alcança a atuação de municípios que se engajam como protagonistas da política pública. As cartas ficam dadas em defesa do patrimônio cultural. Todas sob os auspícios do mesmo decreto lei nº25/1937. Todas com as marcas da criatividade do povo brasileiro. E, nessa riqueza de criatividade e pluralidade do patrimônio cultural, já vislumbrada por Mário de Andrade na década de 1920, é que os sentidos de proteção se arregimentam. E, somente a partir desses sentidos, é que a população vai se encontrar consigo mesmo, sob o reconhecimento de sua própria identidade.
 
Nessa trajetória de encontros, que se inicia com a “Viagem de descoberta do Brasil” empreendida em 1924 por um grupo de modernistas às cidades históricas de Minas Gerais, e que conhecem ‘ao vivo’ a obra genial do mestre Antônio Francisco Lisboa – o Aleijadinho – e nela veem a necessidade de proteção do patrimônio brasileiro, até a legislação que estabelece as ações protetivas do patrimônio imaterial no ano 2000, passamos por diferentes etapas, todas elas vividas certamente com a emoção que a matéria é capaz de suscitar. Por isso, é que os oitenta anos da criação do serviço de proteção ao patrimônio cultural devem ser comemorados com a significação de uma grande batalha. Seja na matéria da pedra e cal, seja no rodopio das saias que dançam o jongo, o patrimônio cultural se faz e refaz em novos espetáculos e entendimentos sobre a cultura popular brasileira, cultura do povo para seu povo.
Os olhos que viram e reconheceram as características urbanísticas das cidades do século 18 como patrimônio cultural brasileiro talvez não tenham sobrevivido para testemunharem a evocação do ‘espírito do lugar’ como matéria de apuro e reconhecimento enquanto patrimônio cultural. Mas as novas gerações vão ver e desse encontro devem se apropriar. Se no tempo inicial foi possível reconhecer a matéria tangível, hoje vamos além, e reconhecemos a energia criadora. Cabe-nos promover o encontro entre a ação do passado e fruição da energia nela presente, ou que nesses bens devem ser ressignificadas. E esses diálogos são possíveis, verdadeiros e reais.
Um bom exemplo é o Conjunto Arquitetônico e Paisagístico da Pampulha, em Belo Horizonte. Reconhecido enquanto patrimônio histórico e artístico em todas as instâncias de proteção – municipal, estadual e nacional – em julho de 2016, ele alcançou nova proteção recebendo o título de patrimônio cultural da Humanidade. O até então conjunto arquitetônico e paisagístico, recebe, dessa vez, amplitude de seu sentido, que vem explícito inclusive no seu nome inscrito na listagem: Conjunto Moderno da Pampulha. O reconhecimento vem acompanhado de novo sentido, amplo em significação, pois agora, dentre os critérios estabelecidos pela Unesco, o conjunto é valorado enquanto “obra prima do gênio criativo humano”, “intercâmbio de valores humanos”, “exemplo excepcional de conjunto arquitetônico que ilustra etapa significativa da história da humanidade”. Ou seja, a Pampulha, enquanto ideário modernista empreendido nos anos 1940 se estabelece agora enquanto valor da humanidade pelas ideias que ali marcaram a prancheta, indo muito além do que a obra de pedra e cal, ou concreto, ou pintura, ou expressão.
No palco do Theatro Municipal, Mário de Andrade saúda os participantes do I Congresso da Língua Nacional Cantada. Na mesa, Júlio de Mesquita Filho, o prefeito Fábio Prado e Guilherme de Almeida.
A trajetória do patrimônio cultural é marcada assim, nesse início do século 21, com a ampliação de seu significado. Já muito além do histórico e artístico, vemos a consolidação das ideias do encontro de seus valores com as suas comunidades, a própria dita experiência do vivenciar. Pois, desde a década de 1980 é que Aloísio Magalhães (ex-presidente do Iphan) nos alerta de que a comunidade é a melhor guardiã de seu patrimônio. Somente quando essa mesma comunidade se apropria e se encontra com a riqueza do seu próprio patrimônio é que ela vai ter a consciência de sua herança, ou de quanto ela pode lhe valer. Somente quando a comunidade demonstra afeto por seu patrimônio é que ela consegue sobrepor o seu patrimônio acima de qualquer vista que lhe obstrua. Afinal, send’O Turista Aprendiz de nosso patrimônio cultural, como o fez o grande e potente Mário de Andrade, é que estaremos acima de que qualquer la vue que nos oprima e nos faça míopes.
OS VÁRIOS ENCONTROS ‘MINEIROS’ DO PATRIMÔNIO CULTURAL
O ano de 2017 registra datas significativas da trajetória da preservação do patrimônio cultural brasileiro. No mês de janeiro, a principal delas, quando se registra os 80 anos da criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Sphan (atual Iphan). Com a instituição, surgia pela primeira vez na América Latina uma política pública voltada aos anseios da preservação de testemunhos e elementos que fossem capazes de conferir a identidade de um povo (monumentos, obras de arte, sítios históricos). Mas, apesar da lembrada efeméride, os ideais já repercutiam há bom tempo, na inquietação de intelectuais e artistas que viam no reconhecimento de aspectos da arte brasileira – sendo a principal delas o barroco – o caminho para se entender uma genuína expressão nacional – a verdadeira ideia e mão do povo brasileiro. Figuras que despontavam na cultura nacional como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, d. Olívia Guedes Penteado, acompanhados do poeta franco-suíço Blaise Cendrars, estiveram nas Minas Gerais na Semana Santa de 1924, em excursão histórica que criou as bases da valorização do barroco e, principalmente da existência do gênio artístico de Antônio Francisco Lisboa – o Aleijadinho.
Aleijadinho – o primeiro encontro
Reconhecer a genialidade de Aleijadinho em nível nacional foi o resultado dessa interessante excursão decidida ainda durante os festejos carnavalescos cariocas de 1924. A chamada “Viagem de Descoberta do Brasil” viu na obra de Lisboa algo impressionante, tanto em sua produção escultórica quanto arquitetônica. Apesar de alimentados pela beleza das obras, o grupo se deparava com uma completa desarticulação em torno da preservação desses monumentos artísticos, que viviam o impacto da perda de suas valiosas alfaias e pratarias, vendidas a “pouco custo” em benefício da manutenção paroquial. A antiga ‘fábrica’, que deu às sacristias e altares preciosas peças de prata e magníficas esculturas, já não era capaz de sustentar sua preservação. E a alta sociedade, a buscar status e privilégio por peças únicas, as comprava para seus altares particulares que ostentavam, mas não exprimiam o ser devoto. Ao grupo coube o espanto e o alerta: é preciso salvar o tesouro nacional! Partindo dos brados de d.Olívia, em encontros semanais que ocorriam em sua residência paulista, seria fundada a Sociedade dos Amigos dos Monumentos Históricos do Brasil. Não repercutiu, mas era valiosa semente.
Em Belo Horizonte, no Grande Hotel, o segundo encontro
Ainda durante a excursão que visitava as cidades coloniais de Minas, Mário de Andrade tem a oportunidade para encontrar com intelectuais e escritores mineiros participantes do Grupo do Estrela, que se reunia no famoso Café Estrela, na rua da Bahia. Entre tantos, figuras que despontariam nos anos seguintes como liderança e personagens públicas: Carlos Drummond de Andrade, Gustavo Capanema, Milton Campos. Entre a turma do Estrela e os “modernistas nacionais” estavam criados os laços que passariam pela preservação do patrimônio nos anos seguintes, pois durante o Estado Novo, numa forte ditadura empunhada por Getúlio Vargas, surgiram as conveniências e as convergências para encontros mais decisivos que pudessem por em prática, e legalmente, a preservação do patrimônio, nessa época, ainda histórico e artístico. E os protagonistas seriam os mesmos.
Com Capanema e Mário, chegamos ao encontro com Rodrigo
Em 1934, tendo à frente do Ministério da Educação e Saúde, a figura do mineiro Gustavo Capanema surge o convite para que Mário de Andrade fosse o responsável pela redação de um anteprojeto de lei de proteção à arte no Brasil. Mário ainda não consegue contribuir aos desejos de Capanema, mesmo que confessasse a Drummond, “umas ideiazinhas, talvez viáveis”. Mas as vibrantes atividades desenvolvidas no Departamento de Cultura de São Paulo no ano seguinte, ainda o afastavam da dedicação a um projeto nacional, desejado por Capanema. Somente a partir do terceiro convite é que Mário se incumbe da escrita de um anteprojeto voltado “para a defesa do nosso extenso e valioso patrimônio artístico”. Mário, com sua mente brilhante, plural e culturalmente ambiciosa, tinha visto ‘a olhos nus’ a cultura nacional em excursões que realizara ao Nordeste do país e à região amazônica. Assim, propôs um projeto abrangente, que abraçava o patrimônio em suas características imateriais. Mas, o país ainda não estava preparado para acolher tal proposta.
 
E, nesse momento de articulação para criação da nova instituição, é que o nome do também mineiro Rodrigo Melo Franco de Andrade surge, indicado por Manuel Bandeira e Mário de Andrade, às mãos da designação de Capanema. Rodrigo foi convidado para organizar e dirigir o Serviço e, extremamente preocupado com os aspectos jurídicos e políticos, alimenta-se do projeto proposto por Mário, mas lhe reserva um caráter menos ambicioso, mas coerente com os momentos de resistência que poderia enfrentar. Antes ainda da aprovação do projeto nas instâncias legislativas, uma rede de articuladores intelectuais começa a se formar para a produção técnica e subsídio de informações que viessem a dar sustentação de ação ao novo Serviço a ser implementado, e por conseguinte, das políticas públicas voltadas à cultura nacional. Augusto Meyer (RS), Mário de Andrade (SP), Gilberto Freyre (PE), estão em rede com Rodrigo que vê, em 1937, o projeto efetivado em 13 de janeiro com a lei nº378 e, em 30 de novembro com o decreto-lei nº25: estava criado e organizado o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. A partir de então, começa uma intensa relação de Rodrigo com o patrimônio, homem e instituição. É Dr. Rodrigo, o servidor público que vai estar à frente de dedicados companheiros (Lúcio Costa, Carlos Drummond, Sylvio de Vasconcellos, Afonso Arinos, Jair Inácio e muitos) pelos próximos 30 anos e vai garantir a consolidação da instituição e buscar os elementos necessários para que seja respeitada em nível internacional, e consegue. A proteção do patrimônio, tendo Dr. Rodrigo à frente, conquista espaço definitivo na pauta das políticas brasileiras, e atravessa diferentes regimes políticos, se tornando em uma das mais longevas instituições públicas brasileiras, em funcionamento ininterrupto.
Novas nuances do patrimônio, novos encontros
Para as duas últimas décadas do século 20 e início do 21 estava reservado ao patrimônio o seu encontro com suas raízes pensadas ainda nas décadas de 1920/30 por Mário de Andrade. O projeto, outrora ambicioso, era preciso ser revisitado para que o patrimônio entrasse na pauta dos novos tempos. De histórico e artístico, ao abrangente cultural, o patrimônio ganhou novos atores em sua defesa que ampliavam e resgatavam as ideias de Mário. O designer Aloísio Magalhães, dirigente da instituição na década de 1980, traz a ideia do desenvolvimento e de suas potencialidades econômicas. A Constituição Cidadã de 1988 consagra o seu espaço na ação do Estado e nas garantias de sua permanência. Os anos 2000 assistem à emergência de uma nova categoria: está instituído o patrimônio de caráter imaterial, intimamente ligado às vivências e expressões do povo brasileiro. O patrimônio cultural conquista, nos albores do novo século, uma plataforma plural, significativa e definitivamente ligada aos seus valores de identidade do povo brasileiro. Os brasileiros passam a se conhecer e reconhecer por meio de seu patrimônio cultural. Pois, afinal, eles, reunidos em comunidade, são o seu melhor guardião.
 

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