Por Ana Elisa Ribeiro
O que eu sinto enquanto leio? E depois? Essas são minhas perguntas mais recorrentes depois de ler um livro de poemas ou um poema isolado. Há textos que nos deixam sem respirar por alguns segundos, outros que nos fazem levantar a cabeça (para lembrar Roland Barthes), outros que nos arrepiam. Há textos que não nos dizem ou causam nada. E enquanto lia dois livros do Casé Lontra Marques eu me perguntava: o que isso me faz sentir?
Casé é poeta de produção frequente. Nasceu em 1985, em Volta Redonda, RJ, e mora em Vitória, ES, uma das cidades brasileiras mais efervescentes na poesia e mesmo na produção de livros independentes. Desde 2008, publicou pelo menos nove livros, dentre os quais pinço títulos como A densidade do céu sobre a demolição (2009), Movo as mãos queimadas sob a água (2011) e os dois que tenho em mãos, dedicados pelo próprio autor, O que se cala não nos cura (pela editora Aves de Água, 2017) e Desde o medo já é tarde (pela legendária editora 7Letras, em 2018).
Particularmente, gosto dos títulos das obras de Casé Lontra Marques. São imprecisos, moventes, meio inacabados, mas é só aparência, uma espécie de performance. Em algum sentido, me fazem lembrar as formações de Manoel de Barros, só que com quase zero alegria. Casé é plúmbeo, na maioria das vezes. O peso, o frio, o cinza, a nuvem, a densidade estão mais lá do que outras coisas. Assim como o corpo, quase em tudo, e o vazio ou certa solidão. Será que exagerei na dose? É o que é a poesia dele? Ou será o que sinto? De todo modo, é o que os dois livros mais recentes me provocam.
Em O que se cala não nos cura encontrei um texto imenso, quase um poema só, distribuído em 80 páginas, desprovido de títulos e outras divisões, exceto por uns traços ou asteriscos, se muito. Um superpoema às vezes próximo de uma narrativa, na maioria das vezes não. Imagens, imagens, imagens mentais, metáforas, palavras que se encontram e desencontram. Inclusive palavras que se encontram na semelhança dos sons, eventualmente também na dos sentidos, e povoam juntas a página. Uma sequência de poemas? Um poema único que só existe a espaços porque precisa estar numa página? Essa condição me deu certa ideia de que o grande poema de Casé pode ser falado, recitado, conversado, de modo interminável até.
Já em Desde o medo já é tarde, o poeta publica poemas em páginas separadas, normalmente sem títulos, ainda repletos de imagens imprecisas, mas muito sensíveis. Difícil escolher um ou dois textos porque, justamente, os poemas continuam meio gêmeos, da mesma safra, um jorro talvez. Quem sabe este, dos muitos que me saltaram aos sentidos:
Soltamos outra sede
para perturbar a apatia imposta
aos dias;
crepitando, uma fenda –
manhã
multiplicada – agora
sim
nos infinda: afeto
atrai fala (e fala
faz faísca)
No mesmo livro, Casé escreve:
Palavras aparecem de surpresa
no fundo
do diafragma, batendo
as barbatanas
com algum
fulgor;
palavras aparecem
de surpresa: o corpo só
assim não
se despedaça – escoltado
por
carências sempre
concorrentes
(e nenhuma
escassa).
Em muitos poemas, o som é tão ou mais importante que o sentido; o branco é tão ou mais importante que a pontuação; o não dito paira mais que o escrito; a sensação de corpo pesado flerta com a melancolia; a cidade é vista sob névoa ou com os olhos sérios do eu lírico. E mais um:
Ângulos ambíguos
reviram meus intervalos –
tento (jamais)
esquecer: toda palavra
é uma solidão
tumultuada.
Casé Lontra Marques vem publicando poemas sob o manto de uma voz reconhecível, isto é, tem personalidade, embora não dispense suas influências aqui e ali. O que me ocorre ao ler – e depois – é pensar que muitas frases me ficam ainda por um tempo depois de lidas. Será isso o que eu sinto? O que o poeta consegue dizer que eu não consigo captar, enquanto sinto? Surpreendentes, alguns versos fazem parar. Outros escorregam para dentro dos próximos poemas. Para quem gosta de uma poesia sem muitas facilidades (e de abundante sensibilidade), está aí um poeta.
Foto: Alexandre Moraes