Por Leo Moraes
Editoria Thiago Pereira
Eu tenho ídolos. Muitos. E, durante um breve período, cheguei a me envergonhar da minha condição de fã. Eu tentei manter uma postura blasé, como manda o figurino, aprisionando minha tiete interior sob uma casca de análises intelectualizadas, críticas cidas, e uma atitude cool. Mas logo percebi que isso não era eu, e saí do armário. Eu amo música, e as pessoas que com ela conseguiram verdadeiramente me emocionar, são objeto da minha mais profunda admiração e, sim, idolatria. Mas não uma idolatria que ignora os defeitos do ídolo, cegando para todas as bobagens que ele possa fazer, seja na sua vida pessoal, seja na sua obra. Não é, como se imagina, colocar o ídolo em um
pedestal como entidade intocável. É o contrário disso. É o reconhecimento de que uma pessoa, com toda sua humanidade e todas as contradições inerentes a ela, consegue produzir coisas simplesmente maravilhosas. Assim vejo meus ídolos.
Falando especificamente do universo da música, minha geração viu o fim da era dos grandes ídolos. Hoje tudo é muito diluído e transitório. A música não tem o poder de arrebatar multidões em proporções realmente significativas. Não há grandes distâncias entre ídolos e fãs, não há mitos. Mas não foi sempre assim. Ou foi sempre assim mas, por um breve período na história, houve uma conjunção de fatores que permitiu que não fosse assim. E as condições foram propícias para que gigantes andassem sobre a terra.
Antes de Thomas Edison inventar o fonógrafo, primeiro aparelho a registrar e reproduzir sons, só existia música ao vivo. Se alguém quisesse fazer um baile, ou uma festa, era indispensável a contratação de músicos, que apresentariam ali uma performance que só existiria naquele breve momento, e que seria perdida para sempre, registrada apenas nas memórias dos presentes. Com a evolução da invenção de Edison, e sua inevitável popularização, uma performance musical podia então ser eternizada, e reproduzida ad infinitum, ao gosto e hora do freguês. A primeira reação da classe musical foi de repulsa e revolta. Os músicos, até então detentores do, digamos, monopólio do som, temiam que sua profissão entrasse em obsolescência. Como iriam se sustentar, se agora bastava um disco para se ter acesso ao som das melhores orquestras, e dos maiores musicistas? Há relatos de uma revolta em Viena, quando uma horda de músicos saiu pela cidade invadindo casas de família e destruindo gramofones.
Mal sabiam que o suposto inimigo iria elevar categoria a patamares inéditos de riqueza e reconhecimento. A possibilidade de gravar e reproduzir uma performance revolucionou a relação entre os artistas e seu público. Músicos foram alçados à condição de ícones, e suas obras, vozes, performances, foram eternizadas gerando fortunas que perpassam gerações. A música, de um ofício artesanal, se tornou uma indústria.
Ironicamente, foi também uma revolução tecnológica que veio a trazer esse modelo a uma derrocada. O advento da internet e dos formatos digitais popularizou a produção e distribuição de música de tal forma que acabou com a distância entre artista e público. Esse assunto já foi debatido à exaustão, não é necessário elaborar mais sobre a revolução digital. O ponto a que quero chegar é que, ao contrário do que muitos dizem, ela não matou a música como profissão, e menos ainda como forma de arte. O que aconteceu foi que o ofício musical voltou a ser o que sempre havia sido. O século XX foi a exceção, o que fizemos foi voltar às origens. Música ao vivo. O músico fora do pedestal, ou ao menos em um pedestal menor.
Mas isso é bom ou é ruim? Sentimental e saudosista que sou, confesso que parte de mim lamenta perceber que não veremos outra Tropicália, outro Beatles, outra Bossa Nova, outro Sepultura, outro BRock. Não em alcance pelo menos. Uma vez, em algum debate virtual de textões sobre o mercado da música, alguém disse que temia que estivéssemos vivendo o fim da música. O argumento era que com o fim da possibilidade de se enriquecer com a música, os grandes talentos que porventura surgiriam, acabariam optando por outras atividades. Levantou-se
também como motivo a saturação das possibilidades estéticas e musicais, depois que até música eletrônica tornou-se “antiga”.
Eu tendo a discordar dessa visão por três motivos básicos: primeiro, que a vocação musical é tão forte, que muitas pessoas não conseguem não fazer música. É mais que uma opção de carreira, é um chamado. O segundo é que cada geração tem a necessidade de ter as suas próprias vozes. Por mais que algumas canções do passado possam ser atemporais, eternas, e se comunicarem diretamente com a alma humana, independente de época, as pessoas precisam se sentir conectadas a músicas feitas por seus contemporâneos. Mesmo que as referências estéticas sejam recicladas, ou revisitadas, o olhar contemporâneo costuma ser transformador.
Esse é o segredo da continuidade. O terceiro motivo é: não há experiência mais sensacional do que presenciar ao vivo um artista da música no seu auge. Não há tecnologia que registre todas as sensações que uma apresentação épica provoca no espectador.E torço para que quem proporciona essas sensações nas pessoas continuem sendo idolatradas. Mesmo que por meia hora por meia dúzia de pessoas.
Leo Moraes é arquiteto, músico e sócio da casa de shows A Autêntica