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O fascínio e a obsessão das listas em Ver: Amor, de David Grossman (Momik)

[…] os pais lhe perguntavam sempre porque ele tem que ficar tanto tempo no quarto da avó ouvindo os falatórios dela numa língua que ninguém mais consegue entender, essa língua que Momik disse que entende tudo. É fato. Porque Momik tem um talento assim. Para todas as línguas que ninguém entende. E ele consegue entender também quando se silencia ou quando são ditas só três palavras a vida toda […].
(David Grossman)

Por Lyslei Nascimento
O romance Ver: amor, de David Grossman (2007), constitui-se como uma das mais originais narrativas ficcionais pós-Shoah. Para Berta Waldman, o que o escritor promove, nesse texto, é “uma solução estética radical” (WALDMAN, 2009, p. 73-78), na medida em que escritores, personagens e intertextos, dos mais inusitados, como as referências a Franz Kafka ou a Conan Doyle, por exemplo, fazem emergir do discurso vozes que vão, pouco a pouco, sendo confundidas até se reduzirem, ou se afirmarem, como verbetes de uma enciclopédia, ironicamente chamada de completa, ao final do livro.
O texto, que é dividido em quatro partes, potencializa, em cada uma delas, tentativas precárias de compreensão de uma “experiência-limite”, a Shoah. Na primeira parte, “Momik”, o leitor se vê enredado pela memória de um menino que, em Israel, nos idos de 1959, irá viver a inesperada chegada, em casa, do tio-avô, que todos julgavam morto pelos nazistas.
Na segunda parte, intitulada “Bruno”, Momik, já adulto, constrói uma espécie de biografia fantástica do escritor judeu-polonês Bruno Schulz. Se na vida real, Schulz é morto por um oficial nazista, na escrita, Momik o faz escapar, mergulhando-o no mar e transformando-o em um salmão.
Em “Vasserman”, o personagem que foi criança na primeira parte e escritor na segunda, recria as histórias infantis protagonizadas pelas “Crianças do coração”, do tio-avô, Anshel Vasserman. A narrativa, como uma caixa chinesa, ou uma boneca russa, é apresentada em abismo, fazendo confundir a vida e a obra de Momik, do tio-avô, entretecida a vida e a obra de Bruno Schulz.
Na quarta e última parte, “A enciclopédia completa da vida de Kazik”, conta-se, por intermédio de uma lista de verbetes, a história de Kazik, um dos personagens infantis de Vasserman, o tio-avô de Momik. Livros dentro de livros, ficção dentro da ficção, como em Jorge Luís Borges (1999, p. 504-506),  revelam um vertiginoso abismo como sugere também Umberto Eco, em As vertigens das listas (2010).
Narrar ficcionalmente a Shoah, evidenciando a fragmentação no e do discurso por meio de listas e de enumerações parece ser uma aproximação possível a esse tipo de relato pela ficção. Para além da mera constatação das rupturas, este estudo busca, na análise das listas construídas por narradores e personagens, não ignorar a “evocação de imagens memoráveis”, como esclarece Italo Calvino (1988).
 
Apesar de as listas e as enumerações estarem presentes em todo o romance Ver: amor, sempre evidenciando a tensão entre exatidão e multiplicidade, neste texto, irei me deter em algumas poucas listas da primeira parte, “Momik”, com o objetivo de demonstrar a importância dessa estratégia de enunciação na literatura contemporânea.
Em “Momik”, ao ficcionalizar e embaralhar os vários tipos de listas, as práticas, objetivas e finitas, como as do cardápio do restaurante de Bela Marcus, e as potencialmente infinitas, as subjetivas ou poéticas, como as do nome próprio de Momik, o narrador põe em evidência a falta essencial do discurso do trauma, sua precariedade e fragmentação, mas com isso, faz emergir, também a enumeração que evoca o valor do pormenor e, paradoxalmente, sua resistência na constituição do discurso e da memória. O narrador, assim, nessa primeira parte, apresenta ao leitor o menino em torno do qual se tecerá a história:

É preciso contar também que o nome completo dele era Shlomo Efraim Neuman. Em memória de fulano e beltrano. Se fosse possível, eles lhe dariam cem nomes. Vovó Heni fazia isto todo o tempo. Ela o chamava de Mordechai e de Leibele e de Shepsele e de Mendel, e de Anshel e de Sholem e de Humek e de Shlomo Haim, e assim Momik aprendeu a conhecer a todos: Mendel foi para a Rússia ser comunista, nebech [que terrível pena], e desapareceu lá, e Sholem o iidichista que viajou de navio para a América e o navio naufragou, e Isser que tocava violino e morreu nas mãos dos nazistas imach shmam vezochram [que os seus nomes sejam apagados da memória], e Leibele e Shepsele os pequeninos, que já não havia lugar para eles junto à mesa, tão grande era a família […]. (GROSSMAN, 1993, p. 25-26)

O nome próprio poderia ser, numa abordagem factual, uma lista finita e completa. No entanto, a noção de finitude é desconstruída à medida que as alusões intertextuais podem nela ser evocadas. Como se pode observar, a lista de nomes e a referência a “cem nomes” dão-se fragmentariamente, expondo um texto interminável, num ritmo quase sem marcas de pontuação, constituindo o labirinto no qual o menino e sua condição multifacetada estão imersos e para qual o leitor será tragado.
Para Borges, a beleza do título de As mil e uma noites reside no fato de a palavra “mil” ser, para nós, quase um sinônimo de “infinito”:

Dizer “mil noites” é dizer infinitas noites, as muitas noites, as inumeráveis noites. Dizer “mil e uma noites” é acrescentar uma ao infinito. Lembremos uma curiosa expressão inglesa. Às vezes, em lugar de dizer “para sempre”, “for ever”, diz-se “for ever and a day”, para sempre e um dia”. (BORGES, 2000, p. 259)

De forma semelhante, na lista de nomes de Momik, a noção de numeral é intensificada pelos mais variados papeis a que a ele estão destinados. Todos os nomes, além do apelido, Momik, inscrevem o menino em uma tradição de personagens e de histórias que vêm neles impregnadas. Assim, a lista que, num primeiro momento, aponta para um “nome completo” é, na verdade, uma porta para o infinito. O nome é, pois, em Grossman, o resultado, inapreensível, de inscrições de histórias na história de Momik.
Momik, o menino de cem nomes, de prodigiosos papéis, irá se encontrar com o passado, nessa primeira parte do romance, por intermédio do tio-avô, o escritor de histórias infantis Anshel Vasserman:

Assim foi que, alguns meses depois que vovó Heni morreu e a puseram debaixo da terra, Momik recebeu um novo avô. Este avô chegou no mês hebraico de Shevat do ano de 5719 da Criação, que é o ano de 1959 do outro calendário, e não chegou através do programa de rádio de saudações aos novos imigrantes que Momik tinha de ouvir diariamente entre uma e vinte e uma e trinta da tarde quanto almoçava – e prestar bem atenção se nele mencionavam um dos nomes que o pai anotara numa folha; não, o avô chegou numa ambulância do Maguen-David-Azul que parou à tarde, em meio a um temporal, junto à mercearia de Bela Marcus, […]. (GROSSMAN, 1993, p. 1)

Esse primeiro parágrafo do romance prepara o leitor para listas visíveis e invisíveis que constituirão a narrativa. As primeiras, explícitas, como a dos nomes de Momik, criam a ilusão de uma completude, mas irá se revelar como uma lista aberta. As listas invisíveis revelam, na urdidura, uma estrutura quase transparente no romance, mas que, no entanto, delineiam uma escuta atenta a coisas aludidas e não explicitadas.
A escuta, que é anunciada com a chegada do tio-avô, começa no manicômio. No hospício de Bar-Yam, há 10 anos, ou seja, desde 1949, o velho Anshel Vasserman cantava e falava sozinho, sem ninguém compreendê-lo:
Há um mês, mais ou menos, ele começou a abrir a boca, e a dizer nomes de toda espécie de gente, e também o nome da sra. Heni Mintz, e o nosso diretor fez um pequeno trabalho, diríamos de detetive, e descobriu que todas as pessoas que ele falou já morreram, abençoadas as suas memórias, e que a sra. Heni Mintz, está registrada aqui, em Beit Mazmil, em Jerusalém, e que também ela, descanse em paz, já morreu […]. (GROSSMAN, 1993, p. 3)
O que se percebe, nesse trecho, é que Vasserman falava. Somente não era ouvido. O motorista da ambulância chama a atenção para o fato de o diretor da instituição se tornar um detetive. Ou seja, começa a ouvir, e ouvindo, escuta. A partir daí, trata de investigar os nomes citados por Vasserman e encontra sua família. O diretor-detetive, como o leitor, descobre que todos os nomes citados aludem à pessoas mortas. O item que resta, no entanto, dessa lista invisível (e sob o signo da morte), é o nome da avó de Momik que, embora já falecida também, pôde conectar o irmão desmemoriado à família em Jerusalém.
A cumplicidade que se estabelece entre Momik e o tio-avô Anshel, também se fará notar entre Momik e vovó Heni. Momik desce ao porão, apesar do medo do escuro e da sujeira, para encontrar o kifat da vovó. Nessa espécie de baú, muito bem amarrado, no qual se encontravam roupas e pertences que ela havia trazido de e um Taitsh-Chumash (Pentateuco para instruir as crianças), uma tábua para preparar massa folheada, sacos cheios de pena de ganso, um caderno com toda a espécie de coisas ela havia escrito em ídiche, uma espécie de memórias “de quando ela ainda tinha memória” e uma folha de jornal muito velho, que ela havia lhe mostrado, com uma história que Anshel Vasserman, o irmão dela, havia publicado, há anos na Europa.
Assim, no porão da casa, o baú; no baú, um caderno; dentro do caderno, uma folha de jornal; na folha de jornal, um conto… Essa série de imagens umas dentro das outras aponta para o caráter expressivo das listas que, numa estratégia de construção textual em que os vários itens de conteúdos e de continente são colocados como caixas chinesas elevando à máxima potência os níveis narrativos ali presentes.
Uma das tarefas a que o menino era incumbido era, então, antes de saber da existência do tio-avô, prestar atenção se no programa de rádio mencionavam um dos nomes que o pai anotara em uma folha de papel. Invisíveis ao leitor, tanto a do pai quanto as que são lidas no rádio, essas listas, no entanto, refletem a decisão, traduzida em resistência, do não esquecimento.
Ao compor álbuns, com selos que ele mesmo desenha, cataloga e pesquisa, Momik revela sua condição de criador a partir da paixão infantil por coleções. Para Armando Silva,

Essa vocação narrativa nos leva a encarar esse tesouro visual também como fato literário, pois há diferença entre guardar e classificar fotos para reconhecer alguém quanto a um traço distintivo e fazê-lo para destacar esse alguém como membro de um grupo, juntando as imagens para recriá-las aos olhos com um relato caprichoso, que se atualiza com o passar dos anos. (SILVA, 2008, p. 23)

O fascínio e a obsessão do menino pelas listas revelam, na menção a cadernos, diários, livros, atlas e catálogos, o seu potencial criativo. Os seus inúmeros cadernos, de exercícios, de espionagem, de desenhos, de selos, de estudos pátrios, não podem ser vistos apenas como tentativas de “um escolar que começa a exercitar-se dispondo suas palavras sobre a extensão dos aspectos do mundo” para “exprimi-los após uma série de tentativas, rascunhos, aproximações.” (CALVINO, 1988, p. 89). Momik é um personagem que traduz toda uma condição literária da hipermemória, um alter cop, como um Funes, o célebre personagem de Borges (1998. p. 539-546), mas que desloca, ou é deslocado, da paralisia a que está preso o personagem borgiano, para a de detetive-copista-escritor, que reinventa a tradição e a memória de si e do outro.
Além dos cadernos secretos com as incontáveis listas, como a dos erros de imprensa que ele detecta, incluindo os já identificados e inventariados em erratas; dos álbuns e de seus selos, que ele mesmo desenha, como “todos os animais” da Terra de Lá, a Europa, uma lista viva vem povoar, assustadoramente, o universo de Momik. Trata-se de um mini-zoo que ele resolve conceber.
Uma coleção, ou uma lista de animais em pequena escala, conforma o minizoo de Momik. A empreitada do menino é confinar esse sinistro elenco no porão da casa dos pais:
Tentou descrever para si mesmo a casa do Caçador, com grandes tapetes das peles dos animais e uma prateleira especial para rifles, arcos e cachimbos, e, fincadas na parede, cabeças de animais nazistas que ele já tinha caçado nas florestas, com olhos de vidro […]. (GROSSMAN, 1993, p. 56)
Nesse caso, o ambiente de caça, recriado imaginariamente pelo menino, conforma os nazistas como os animais que seriam caçados por Wiesenthal, que o menino imagina como um caçador nos moldes dos personagens que ele lia e vê em suas fotografias e ilustrações em verbetes de enciclopédias, em revistas e romances, bem como em imagens de aventureiros e de suas histórias divulgadas em artigos de jornal.
No minizoo, Momik intenta recriar para destruir, o monstro imaginário ou dinossauro gigantesco, a “Besta Nazista” que parece “provir de qualquer animal, é só lhe darem tratamento adequado e comida adequada” (GROSSMAN, 1993, p. 11-12). Os zoológicos são, tradicionalmente, instituições dedicadas à uma lista ou coleção, arquivo ou reserva de animais. Antes dos modelos atuais, coleções vivas foram mantidas pelos reis desde o Antigo Egito e pelos soberanos da Suméria (MENEZES, 2010). John Berger afirma que

O zoológico é o local onde espécies e variedades de animais o mais numerosas possíveis são colecionadas a fim de que se possa os ver, observar, estudar. Em princípio, cada jaula é uma moldura que enquadra um animal no seu interior. Os visitantes vão aos zoológicos para ver os animais. Eles avançam de jaula em jaula, como um visitante de uma galeria de arte que para diante de um quadro depois se dirige ao seguinte. Mas no zoológico, a visão é sempre má, distorcida. (BERGER, 1978. p. 822)

Assim, Momik acredita que

[…] tudo o que nos parece hoje misterioso, amedrontador e obscuro é possível torná-lo totalmente claro, porque tudo é uma questão de lógica, e tudo tem uma explicação, assim é em aritmética e assim é em tudo […]. (GROSSMAN, 1993, p. 19)
Para além de todo esse desejo de lógica e de aritmética, que as listas poderiam representar, as certezas são reiteradamente ameaçadas e abaladas. Momik resolve recriar a “Besta Nazista”, para treiná-la, como se fosse possível domesticá-la, a ponto de ela modificar o comportamento e parar de supliciar as pessoas com as quais ele convive. Além disso, ele espera que ela possa revelar tudo o que havia acontecido na Terra de Lá e o que tinha feito às pessoas. No depósito pequeno e escuro, embaixo da casa, ele, como um cientista-mirim ou um colecionador enlouquecido, prepara-se para criar o nocivo animal (GROSSMAN, 1993, p. 28).

Assim, no porão da casa da família, Momik trava uma “guerra”:

[…] e o cheiro dela é fedorento e concentrado, cheiro de umidade e mofo, cheiro de animais e de cocô de animais, e todos estes sons amedrontadores que há lá na escuridão, os farfalhares e os sussurros e os rosnados e uma grande garra que toca na parede da jaula, uma asa que se estende lentamente e algum bico que se abre e se fecha com um rangido, […] e só uma gota de luz penetra através de uma janelinha, também coberta com papelão, e com a ajuda desta luz os olhos começam a se acostumar lentamente à escuridão e então é possível ver com dificuldade que no chão, ao longo da parede oposta, estão colocados alguns caixotes e isto ocorre porque a caçada ainda continua. (GROSSMAN, 1993, p. 37-38)

A enumeração das características desse embate infantil com algo que ele não sabe do que se trata é acompanhada pela escuridão. Chamados de “despojos de guerra”, os animais de Momik, seu minizoo ou bestiário pessoal, espelham-se nos escritores e artistas que ele elege como seus precursores como Kafka, Schulz, Munch… Momik, que já apresenta inúmeros comportamentos que o diferem de outras crianças do romance, não passa pela experiência de criar o seu mini-zoológico impunemente. Da cozinha da mãe ele rouba pratos velhos e xícaras meio quebradas para por comida para os animas, flagrado pela mãe, o menino grita, mente, joga-se ao chão, chutando com as mãos e pés, diz coisas que ele nunca havia dito antes. A mãe se assusta treme sobre a boca, arregala os olhos. Por seu lado, Momik se admira de que “possuía tais palavras no coração.” Afinal, antes de lutar com a Besta, ele nunca havia falado assim com ela nem com ninguém.
No depósito escuro, é difícil para ele ficar ali e incitar a Besta a sair. Assim, basta que, por exemplo, o corvo estenda e bata um pouco as asas pretas para que as calças dele fiquem molhadas. Além disso, também a camiseta fica molhada e malcheirosa de suor. O gato, que mia o tempo todo, com uivos longos e que parecem perversos, aos ouvidos dele, é assustador. Momik tem pena do gato, mas tem medo de abrir a jaula para soltá-lo e ser atacado pelo animal. Desse modo, revela o narrador: “Momik sente um pouco como se ele fosse prisioneiro do gato, e não o contrário” (GROSSMAN, 1993, p. 41).
O mini-zoo de Momik configura-se, assim, numa tentativa frustrada de realizar um projeto de obra bem definido e calculado, mas sob a qual não passa impunemente. A evocação de imagens visuais nítidas, incisivas e memoráveis, mais horrorizam do que amenizam a memória. O desejo de uma linguagem, que tenta ser a mais precisa possível, a fim de traduzir não só a Shoah, mas a imaginação – com suas fantasias e medos – deixa entrever, o caráter monstruoso que as lidas e enumerações podem adquirir.
Daí que, outros espaços poderiam, no afã de tudo querer abarcar, ser vistos como monstruosos. Trata-se, no romance, dos museus e bibliotecas. Na sala de leitura dos adultos na biblioteca, Momik devora os livros de História sobre as coisas que os nazistas fizeram. Ele olha durante muito tempo para fotografias que ele não compreende:

Viu fotos de pais que precisaram escolher entre dois filhos qual ficaria com eles e qual iria para sempre, e tentou pensar em como eles escolheriam e de acordo com o que, e viu como um soldado obrigava um velho a montar um outro velho como se fosse um cavalo, e viu fotos de execuções de inúmeras formas que jamais soube que existiam, e viu fotos de covas nas quais estavam enterrados juntos muito mortos que jaziam de formas diferentes, um sobre o outro e um com o pé no rosto do outro e outro com a cabeça virada tão torta, que Momik, mesmo que tentasse, não conseguia virar assim, e desta forma, lentamente, Momik começou a compreender coisas novas, como por exemplo, quanto o corpo da pessoa é frágil e quebradiça em todo tipo de formas e em todas a direções, basta que se queira quebra-lo, e como família é algo frágil se se deseja desmontá-la, isto pode acontecer num segundo, e tudo se acaba para sempre. (GROSSMAN, 1993, p. 66)

O aprendizado sobre a Shoah, apesar do silêncio dos pais, dos sobreviventes do bairro, portanto, começa a atuar sobre o menino. Diante dos horrores lidos e vistos nas fotografias da biblioteca, ele emudece, nada vê ou não ouve. Esse conhecimento sobre o mal que se abateu sobre a humanidade fará com que Momik recorra a Bela Marcus, com perguntas que parecem não ter fim:

O que são trens da morte, Bela? Para que eles mataram também criancinhas? O que as pessoas sentem quando cavam a própria cova? Hitler teve mãe? É verdade que eles tomavam banho com sabão feito de seres humanos? Onde estão matando agora? O que é jude? O que são experiências com seres humanos? E o que e o que e o que que e como e como e por que e Bela, que já tinha percebido o quanto isto era decisivo e importante, a tudo respondia e nada ocultava […]. (GROSSMAN, 1993, p. 78)

A despeito da ordem dos pais de não revelar a Momik os horrores do que se passou na Shoah, Bela resolve responder as perguntas que põem diante do personagem e do leitor, o desconhecido, não sem uma dose de incredulidade, uma lista de perversidades, sadismos e toda sorte de malignidade inimagináveis.
O que aprende com os pais, com seus silêncios e pesadelos, o que observa e ouve dos vizinhos sobreviventes, todos sequelados de uma forma ou de outra por doenças físicas e psicológicas, além do que devora nas bibliotecas, nos jornais e programas de rádio, conformam toda uma memória assustadora que poderia paralisar ou emudecer. Ao contrário, Momik acrescenta a fantasia e a ficção para se inscrever nessa complexa urdidura.
Na semana em que o tio-avô chega, por exemplo, ele começa a desenhá-lo para o que chama de “selos do reino” e abaixo do desenho escreve “Anshel Vasserman. Escritor hebraico que pereceu no Holocausto.” (GROSSMAN, 1993, p. 9). Algo de epitáfio reside nessa estranha escrita que acompanha e expande a sugestão da imagem. O registro, quase cruel, de Momik abaixo do desenho do tio-avô, alude a também terrível frase de Elie Wiesel, quando da morte de Primo Levi, em 1987: “Primo Levi morreu em Auschwitz quarenta anos atrás”.
Para além da homenagem ao tio-avô, o registro da sua morte no Holocausto, portanto, desconsiderando-lhe a vida pós-Shoah, apontaria para o fim de Vasserman enquanto escritor, mas paradoxalmente põe em cena o menino, copista dos textos do avô, a princípio, e criador de seus próprios textos, depois, trançando a sua vida com a de outros escritores e artistas. Momik surge, a partir da obsessão por listas que apontam para o desejo de recompor os cacos de um mundo que não pode mais ser representado a partir de uma noção de totalidade, na vertigem causada por suas tentativas de catalogação, como uma instigante metáfora do escritor pós-Shoah. As listas do personagem, copista-desenhista-detetive, revelam o que resiste no testemunho dos sobreviventes e é a partir delas e com elas, que o escritor contemporâneo pode, “através de uma janelinha”, “com dificuldade”, deixar falar os fragmentos tortuosos da existência.
Referências
 
“A Hard Case: The Life and Death of Primo Levi”. Disponível em: <http://www.newyorker.com/magazine/2002/06/17/a-hard-case>. Acesso em: 30 jan. 2016.
BERGER, John. Le Zoo. Critique: revue générale des publications française et étrangères. Paris, v. 34, n. 375-376, p. 821-824, août/sept. 1978. p. 822. (citado e traduzido por MENEZES, 2010, p. 50)
BORGES, Jorge Luis de. As mil e uma noites. Trad. Sérgio Molina. In: ______. Jorge Luis Borges. Obras completas III (1975-1985). Vários tradutores. São Paulo: Globo, 2000. 256-268. (Sete noites, 1980).
BORGES, Jorge Luis. A ficção vive na ficção. Trad. Sergio Molina. In: ______. Jorge Luis Borges. Obras completas IV. Vários tradutores. São Paulo: Globo, 1999. p. 504-506.
BORGES, Jorge Luis. Funes, o memorioso. In: ______. Jorge Luis Borges. Obras completas. v. 1. Trad. Flávio José Cardozo. São Paulo: Globo, 1998. p. 539-546.
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
ECO, Umberto. A vertigem das listas. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2010.
GROSSMAN, David. Ver: amor. [‘Aien ‘erech: ahavá]. Trad. Nancy Rozenchan. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. (1ª edição). GROSSMAN, David. Ver: amor. Trad. Nancy Rozenchan. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. (2ª edição).
MENEZES, Filipe Amaral Rocha de. Animais biográficos: um estudo de Poliedro, de Murilo Mendes. Belo Horizonte: Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da UFMG, 2010.
SILVA, Armando. Album de família: a imagem de nós mesmos. Trad. Sandra Martha Dolinski. São Paulo: Senac, 2008. p. 23.
WALDMAN, Berta. A memória vicária em Ver: amor, de David Grossman. WebMosaica, v. 1, n. 2 (jul.dez.), 2009.
 

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