Por Ana Elisa Ribeiro
“Que mulher é esta? Eu não conhecia, mas já me apaixonei!” – Foram essas as palavras de uma leitora, ao conhecer a poesia de Líria Porto, em um dos livros gratuitos da coleção Leve um Livro, que editei por três anos, com o poeta e parceiro Bruno Brum, em Belo Horizonte.
De fato, Líria Porto é apaixonante. Mineira de Araguari, residente em Araxá, professora primária aposentada, 72 anos, a autora tem uma trajetória relativamente tardia na literatura. Bom, Saramago também teve… Segundo conta a poeta, desde o tempo de colégio ela “escrevia uns poemas, umas trovas”. Quando se mudou para a capital mineira, ficou quatro décadas sem escrever sequer um verso, mas investiu na leitura. Foram anos e anos de Drummond, Adélia Prado, Mário Quintana, os “poetas malditos”, Neruda, Paulo Leminski, entre outros. E somente aos 60 anos Líria voltou a escrever.
A literatura foi seu caminho de expressão, depois de tentar a pintura, sem muito sucesso. Na internet, Líria Porto encontrou grupos de discussão, blogs e ofertas de oficinas literárias que a auxiliaram na construção dessa trilha na poesia. Tudo deixou de ser necessidade de expressão e tornou-se ofício. Ela passou a escrever todos os dias. Perdia arquivos, desorganizava-se, mas mantinha um blog, que se transformou em seu acervo, em seu exercício.
O primeiro livro publicado da mineira Líria Porto foi proposto por um editor português. Era Vítor Vicente, da Canto Escuro. Em 2009, nascia Borboleta desfolhada. Também é de Portugal o segundo livro, de lua, um conjunto monotemático de poemas que tive a honra de prefaciar, sem nem conhecer pessoalmente a poeta. Os poemas realmente me convenceram e encantaram. “Que mulher é esta?”
Com o Facebook, tudo ganhou nova velocidade. Líria passou a conhecer outros escritores e editores, como o oficineiro Paulo Betancur, já falecido. Era difícil para uma poeta tão produtiva conseguir organizar os próprios textos. Foi Betancur quem auxiliou nessa organização, configurando quatro novos livros: Asa de passarinho, Garimpo, Cadela prateada e Olho nu.
Asa de passarinho e Garimpo foram ilustrados pela artista mineira Silvana Menezes e se tornaram, em 2014, obras para o público infantojuvenil. São publicados pela editora Lê, de Belo Horizonte. Garimpo foi finalista do Prêmio Jabuti de 2015.
Em 2016, de volta ao público adulto, Líria publicou, pela editora paulista Penalux, o Cadela prateada, e o quarto volume organizado com a ajuda de Betancur veio à luz no fim de 2017, pela editora Patuá, de São Paulo, Olho nu. São deste último livro os poemas que aqui vão:
drummondiana
meu grande amor por luigi
ardeu nos braços de juan
que amava sua Judith
mas se tornou meu amante
(ninguém se perde
todos se aproveitam)
peixe
a amante do vovô
era uma sereia linda
de olhos verdes
que a vovó chamava
de piranha
dissimulação
no tanto da boca
assombro
no quanto do olho
pranto
no canto de tudo
marulho
e no entanto
rio
descobrimento
a infância é um barquinho
a transportar nossos sonhos
da enxurrada até o rio
a juventude um caiaque
a descer a correnteza
sem pensar em desembarque
a velhice é caravela
terra à vista
Como é de se esperar, Líria Porto está em algumas antologias e revistas digitais, como é o caso das Escritoras Suicidas e das Cartas embaralhadas. Na coleção Leve um Livro, tivemos a alegria de publicar seu Para compensar a força bruta, que circulou em 2500 exemplares gratuitos pela capital mineira (o Café com Letras foi um ponto parceiro de distribuição nos três anos do projeto).
A poesia de Líria surpreende pela ironia, pela maneira astuta como usa as palavras e os discursos a fim de desvelar o mundo. Líria é experiência e é coragem. Não é uma “mulher de seu tempo”, como poderiam esperar por aí, vislumbrando ecos de uma poesia mais mansa ou mais previsível. O que me pegou em Líria Porto, quando a li pela primeira vez, sem fazer ideia de sua idade e de seu paradeiro, foi o vigor contemporâneo de seu olhar e de sua voz poética insolente, atrevida, irônica. Aprendamos com ela, que não para nunca.