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A memória das artes cênicas sob as lentes de Guto Muniz

Editoria Julia Guimarães

Em março deste ano, um importante acervo da memória iconográfica das artes cênicas de Belo Horizonte foi disponibilizado ao público. Reconhecido por eternizar, há 35 anos, algumas das cenas mais emblemáticas do teatro da cidade, o fotógrafo Guto Muniz incluiu no seu portal – o Foco in Cena – cerca de 3.000 fotos de espetáculos registrados em papel fotográfico, do período entre 1987 e 2000. Reunidas, as imagens contam um pouco da história teatral dessa época. Podemos ver registros de obras como “Álbum de Família” (1991, direção de Eid Ribeiro), do Grupo Galpão, ou de “O beijo no Asfalto” (1996, direção de Wilson Oliveira), do Grupo Teatral Encena.

Criado em 2012, atualmente o portal Foco in Cena (focoincena.com.br) reúne registros de aproximadamente 1.000 espetáculos – entre criações cênicas locais, nacionais e internacionais – e possui, no total, 15.000 fotos. Nesta conversa, discutimos o lugar da fotografia na construção de uma historiografia teatral e na preservação da memória cultural.      

Julia Guimarães/ Letras: Desde os anos 1980, você realiza fotografias da cena teatral, especialmente da cena belo-horizontina. O seu olhar como fotógrafo mudou ao longo desses anos? Quais concepções acerca desse registro surgiram durante a sua trajetória?

Guto Muniz: O começo foi em 1987, quando fotografei o primeiro espetáculo. A partir de 1990, comecei a ser chamado pelas companhias de artes cênicas e foi assim, fotografando em filme, até 2001, quando passei para o digital. Acho que o olhar foi se desenvolvendo na medida que mergulhei, cada vez mais, não exatamente na fotografia, mas nas artes cênicas. Eu descobri a fotografia e o teatro no mesmo ano, em 1986. E, como comecei a fotografar na mesma época em que comecei a ver teatro, fui associando muito rapidamente as duas coisas, fui desenvolvendo um olhar fotográfico teatral. Passei a ter um olhar mais aprofundado para o trabalho cênico e uma compreensão maior do que a fotografia me oferecia como linguagem. Mas uma coisa curiosa é que, ao digitalizar todo esse trabalho agora, fui também encontrando preciosidades, no sentido de fotografias que hoje fazem um sentido incrível para mim e naquele momento não faziam. Ao digitalizar tudo, tive a oportunidade de ver fotos que eu antes não valorizava, que criaram um novo significado com o tempo.

JG/ Letras: Algo que eu arriscaria dizer sobre o seu trabalho é uma certa visão plástica que você tem da cena e uma capacidade de captar a expressividade do espetáculo e dos artistas. O que você tenta priorizar quando está fotografando?

Guto: Essa é uma pergunta até difícil de responder. Porque, na verdade, tudo parte do fato de eu procurar estar sempre presente quando fotografo, assistindo àquele espetáculo acontecer. A fotografia tem isso, ela me pede que eu antecipe uma cena. Se eu estivesse só esteticamente preparado, vendo aquele espetáculo, talvez não percebesse o caminhar da dramaturgia. Isso faz com que eu esteja mais preparado para capturar os momentos mais emblemáticos daquele trabalho, mais carregados de emoção. Fotografar teatro, embora digam que tecnicamente seja mais difícil, esteticamente falando, de certa forma é fácil. Você vê muita foto bonita de teatro porque o espetáculo, muitas vezes, foi preparado para isso. Mas, ao mesmo tempo, você vê muita foto que é bonita, mas meio fria, porque você não sente tanto essa emoção. Então, eu gosto dessa foto que é meio inacabada em si mesma, aquela imagem que te sugere alguma coisa, mas não te conta efetivamente que coisa é essa. Aquela foto em que, às vezes, tem uma pessoa olhando para fora do quadro, que você não vê o resto da cena, mas que tem uma presença forte. Às vezes tem foto minha que está meio desfocada, meio em movimento – algo necessário para capturar aquele instante – mas que tem uma energia, tem algo que eu senti na hora que assistia, então essa foto acaba passando na minha edição. Acho que, nesse caso, a imperfeição dela faz parte da ação em si. Ela mostra algo acontecendo. Então acho que talvez o que minha fotografia pode ter, por conta desse envolvimento todo com o teatro, é essa característica. A preocupação estética passa a ser algo meio natural, já está tão dentro da gente que você faz naturalmente, não precisa pensar no enquadramento. O que me move muito é o acontecimento da cena.

JG/ Letras: O teatro é conhecido como a arte do efêmero, ou seja, uma arte que valoriza a presença e o acontecimento, tal como você comenta. Como você vê a contribuição da fotografia e, especificamente dessa fotografia que você faz, muito conectada à cena, para a memória e a historiografia teatral? Como ela nos ajuda na construção e preservação dessa memória?

Guto: Acho que a fotografia tem aspectos muito interessantes nesse sentido. Primeiro porque, ao mesmo tempo em que eterniza um momento, ela nunca te conta a história toda. Ela está ali para despertar uma série de outros insights de memórias sobre aqueles trabalhos. Se a gente pensar em relação a esses vídeos de gravação de espetáculos com câmera parada, o vídeo acaba ficando um pouco impessoal, enquanto a fotografia já traz uma certa leitura de quem fez aquilo. Isso porque a fotografia não é meramente um registro, ela produz um olhar sobre a cena, e nesse sentido ela pode ser um auxílio de pesquisa muito importante. Ela é um suporte para o texto e para o próprio vídeo, embora ela, por si só, nunca será um material autônomo de pesquisa. No site Foco in Cena, o trabalho da fotografia é mais narrativo, são várias fotos de uma mesma obra reunidas, existe uma edição pensada para isso.

Álbum de Família, 1991

JG/ Letras: No processo de pesquisa e análise de espetáculos, vejo a fotografia de um modo parecido, quase como uma disparadora de insights. Tenho a impressão de que, através dela, a gente consegue enxergar aspectos dos espetáculos que não necessariamente vai conseguir ver em outros meios e fontes.

Guto: Sim, e isso influencia inclusive o meu modo de registrar. Quando vou fotografar um trabalho que já foi fotografado por outras pessoas eu não gosto de ver fotos que já foram feitas antes. Não gosto de ver vídeos daquele trabalho. Eu gosto de saber a história da companhia, dos seus espetáculos anteriores, gosto de ler a respeito deles, de ter acesso às informações textuais para criar na minha mente uma construção imagética daquilo. Mas gosto de chegar no teatro e ver o que esse trabalho me entrega. Porque se eu vejo antes as imagens do trabalho, já fico esperando elas aparecerem. E eu não quero esperar imagem nenhuma. Quero que o trabalho me entregue algo naquele momento. E que eu, com o que estudei dele, possa estar razoavelmente pronto para registrar.

JG/ Letras: Queria que você contasse mais do seu projeto, o Foco in Cena. Você diz no site que o foco é a cena e não necessariamente a fotografia. Queria entender quais são as concepções para o olhar da cena que estão lá e como você organizou o trabalho.

Guto: A ideia do projeto surge mais ou menos em 2010, de tanto as pessoas me perguntarem se eu não ia lançar nenhum livro com o meu trabalho. Mas eu sempre pensei que essa proposta de livro era algo muito incompleto. Porque eu já tinha um acervo muito grande naquele momento, ficava pensando em quanta coisa ia ficar de fora. E pensava também que, mesmo que eu fizesse um livro, quantas pessoas teriam acesso, teriam o livro em mãos para poder ver essas imagens? A internet me pareceu sempre um lugar muito mais democrático para isso. Apesar de todos os problemas que a gente ainda tem em relação ao acesso à internet, com certeza o acesso seria muito mais fácil por ali e o limite seria muito mais alto em relação à quantidade de imagens que eu poderia colocar. Então por isso eu pensei numa forma de disponibilizar a partir da internet. E aí entendi que não poderia ser só a fotografia. Não adiantava eu colocar a foto de um espetáculo lá e as pessoas não saberem do que se tratava. A fotografia é uma linguagem muito aberta. Se eu deixo a foto sem muita informação, aí eu abro demais e daí a questão da pesquisa se perde. Então pensei que teria de incluir um texto, uma sinopse desses trabalhos e que seria importante ter as fichas técnicas também, porque esses trabalhos foram construídos por um monte de pessoas que às vezes não estão na cena que eu representei, mas estão por trás, é o cenógrafo, é a figurinista, o pessoal da luz e tudo mais. Aí eu entrei com o projeto em 2011, no Fundo de Projetos Culturais da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, só que fui aprovado apenas com a metade da verba que precisava para fazer o site e colocar todo o meu acervo lá. Priorizei obviamente a estrutura do site e o material digital que eu já tinha, porque um custo alto que eu teria seria exatamente o de digitalização do acervo em filme. Aí criei o Foco in Cena mais voltado para o período digital. E assim ele ficou durante esses 10 anos, basicamente. Eu ficava doido de vontade de colocar as fotos antigas, mas isso sempre me tomava muito tempo. Então surgiu, recentemente, a possibilidade de digitalização desse acervo, com esse novo projeto, também do Fundo Municipal de Cultura. Desde março, esse período de fotografia em filme está todo digitalizado e entrou no site. O que falta, agora, são alguns espetáculos mais recentes do período digital.

JG/ Letras: Junto com essa digitalização do seu acervo em filme, surgiu também o projeto “Memórias da Cena”, no qual você realizou conversas públicas  com elencos de espetáculos que fotografou nesse período. Pode me contar um pouco mais sobre o projeto?

Guto: O “Memórias da cena” veio da vontade de entrevistar algumas pessoas desse período meu em filme, para colocar no site, principalmente de trabalhos sobre os quais eu não tinha muitos dados. Aí, quando eu comecei a receber as fotos antigas digitalizadas, passei a colocar alguns desses arquivos no Facebook e pedir para as pessoas me ajudarem a conseguir os dados daquele espetáculo. Então começou a aparecer um monte de gente para ajudar. E aí os meus posts viraram lugares de encontros, de bate-papo daqueles elencos que não se viam há anos. Então pensei que seria legal trazer essas pessoas para realmente conversarem. E daí surgiu a ideia do “Memórias da Cena”, de fazer esses encontros com elencos de alguns espetáculos que marcaram aquele período. A princípio eu fiz quatro encontros, dentro do projeto, mas já estou pensando em fazer outros, porque foi muito gostoso. Se aquela energia do reencontro já era prazerosa no período normal, nesse período de pandemia em que a gente está agora, é um momento mágico.

JG/ Letras: Sim, esses encontros colocam a fotografia como um dispositivo para ativar memórias, para continuar falando sobre essas obras. É interessante essa imagem: em torno das fotos se criou uma comunidade de pessoas que queriam relembrar espetáculos.

Guto: Sim, e a memória visual da gente é muito curta, principalmente por causa desse bombardeio de imagens que a gente tem hoje. Antes a fotografia era algo quase cultuado, aquela coisa do álbum de família, de se lembrar do que aconteceu a partir das fotografias. Hoje, é tanta imagem que a gente não guarda muito essa memória. E aí, no “Memórias da Cena”, foi muito interessante observar a expressão das pessoas do elenco olhando as fotos. Parecia que era a primeira vez que eles viam cada uma delas, porque talvez também o ato de ver em conjunto seja uma outra coisa, são muitas relações que acontecem em torno de uma imagem.

JG/ Letras: Se a memória teatral já é algo frágil por si só, pela sua efemeridade, a memória do teatro de Belo Horizonte é ainda mais. Temos poucos livros e acervos sobre essa história, então ver os registros desses espetáculos dos anos 1980 e 1990 foi bem importante para conhecer uma parte dessa história. Além disso, você também teve o privilégio de acompanhar a trajetória de grupos muito importantes de Belo Horizonte, como o Galpão e o Primeiro Ato. Como percebe essas transformações dos grupos e da cena artística de Belo Horizonte nesse período todo?

Guto: Eu dei uma certa sorte. Comecei a fotografar em um momento muito bom – tanto o Galpão quanto o Primeiro Ato tinham começado há cinco anos, por exemplo. Naquela época era muito pouca gente que fotografava, porque tinha a história do filme, que era caro para revelar, era um acesso muito limitado mesmo. Eu conheci o Galpão dentro da Faculdade de Comunicação da PUC-MG. O primeiro espetáculo que me convidaram para fotografar foi “Álbum de Família”. Eu tinha acabado de chegar em São Paulo para comprar material de fotografia. Ia passar uma semana lá quando recebi uma ligação da Wanda (Fernandes, atriz do Grupo Galpão que faleceu em 1994). Ela queria que eu fotografasse o “Álbum de Família” (1991), que tinham acabado de estrear. Mas eles tinham urgência. Aí ela me perguntou: “quando você volta de São Paulo?”. E eu respondi: “Hoje”. Desliguei o telefone, retornei para a rodoviária e comprei a passagem de volta. No dia seguinte já estava no teatro fotografando o espetáculo. É muito bonito ver as histórias dessas companhias acontecendo. Da mesma forma que é muito especial ver os grupos mais novos nascendo. Tive a oportunidade de ver o Grupo Espanca! nascer, com a cena curta de “Por Elise” (2004). Vi o Quatroloscinco nascendo também, os dois dentro do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto. Parece que você cresce junto, vai vendo a evolução, vai vendo o grupo tomar forma, encontrar uma estética, um caminho de criação. Eu acompanhei muito isso dentro do Galpão também, todas as mudanças. E eu não vi nenhum grupo experimentar tanto como o Galpão nesse período de pandemia. Então, ver essas buscas é muito legal, você se sente fazendo parte disso. Para mim é um privilégio enorme.

JG/ Letras: Você pretende realizar alguma exposição das fotos desse período em filme? Pensa em abrigar seu acervo em alguma instituição?

Guto: Eu tenho essa intenção, mas ainda não coloquei em prática, pela incompletude atual do Foco in Cena. Eu quero primeiro completar a inclusão das fotos digitais, o que pretendo fazer até o fim do ano. Depois que estiver lá, já tendo passado pela minha edição, aí eu entro nesse processo de procurar uma guarda para esse material. Porque eu também entendo que ele não pode ficar comigo, pois eu sou finito e não tenho, a princípio, alguém que possa herdar e preservar isso depois. Então, tenho sim que passar esse material para alguma instituição que queira e possa cuidar dele. É um plano para o futuro, assim como a exposição.

JG/ Letras: Por fim, queria te pedir para relembrar alguma boa história de uma foto sua, pode nos contar?

Guto: Tem uma história que eu gosto, mas que nem é de foto do espetáculo em si, mas foto de público. Na primeira edição do Festival Internacional de Teatro de Bonecos, em 2000, estava tendo, no Parque Municipal, a apresentação do espetáculo “Gigantes de Ar”, da Cia. Pia Fraus (SP). Eu estava lá fotografando, sentado no chão, no meio do público. Daí, quando olhei para o lado, tinham dois garotinhos sentados na primeira fila. Eles estavam com uma cara de êxtase vendo o espetáculo, aquilo era contagiante, como se fosse a coisa mais linda que já viram na vida. Eu parei de fotografar o espetáculo e fiz uma foto deles. Dali eu saí correndo até o laboratório para revelar o filme. Aí quando vi essa foto, fiz algumas cópias a mais dela e enviei para a imprensa. E quando começaram a sair as reportagens do festival, muitos jornais utilizaram justamente aquela imagem. Isso tem a ver com o que falei no início, de uma foto que revela algo que está além dela. O que estavam vendo de tão maravilhoso com aquela cara? Era uma foto que ajudava a chamar o público para o festival. Então essa foi uma imagem muito marcante.

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