Com o passaporte carimbado em 59 países dos cinco continentes, casal de repórteres mineiros lança segundo livro com fotos e relatos das aventuras
Por Glória Tupinambás • Fotos Renato Weil
Nômade. Para povos primitivos, migrar em nome da subsistência. Para almas inquietas, vagar pelo mundo em busca do novo, de experiências, sentimentos e sensações que só uma viagem é capaz de despertar. Sem grandes projetos e pretensões, foi com esse espírito que colocamos o pé na estrada. Repórteres por profissão, levamos na bagagem uma câmera fotográfica, um diário de anotações e a vontade de conhecer cada canto deste planeta. Ainda falta muito, mas em doze anos de andanças percorremos juntos 59 países dos cinco continentes.
Mochilões, expedições de jipe, de moto, de barco, de bicicleta e a pé se transformaram em nossa razão de viver e saímos pelo mundo a carimbar nossos passaportes pelas Américas, Europa, África, Ásia e Oceania. Mas, de repente, as férias começaram a ficar pequenas para abrigar uma imensa paixão por viajar. Tiramos um ano sabático para experimentar o gosto da vida na estrada. Adoramos, mas ainda achamos pouco! E aí chegou a hora de enfrentar decisões difíceis: pedir demissão de antigos empregos (Renato era repórter fotográfico do Jornal Estado de Minas e eu, Glória, jornalista da Revista Veja BH), alugar nosso apartamento em Belo Horizonte e nosso sítio na Serra do Cipó, deixar amigos e familiares para trás, rever valores, projetos e desejos, e nos abrirmos para uma experiência única.
As viagens se transformaram em profissão e, assim, nasceu A Casa Nômade. Na carroceria de um caminhão Mercedes-Benz Sprinter 515, montamos o nosso lar. Lá dentro, cama, banheiro, cozinha, escritório, armários, ar-condicionado, máquina de lavar roupas, uma moto e duas bicicletas. Uma lição de desapego para levarmos conosco somente o essencial, tudo bem apertadinho em uma casa pequena, mas cujo quintal é o mundo. Patrocinadores e parceiros comerciais se somaram ao nosso projeto e, desde 2015, percorremos, com A Casa Nômade, 21 estados brasileiros, Uruguai, Argentina, Chile e Bolívia. E ainda falta muita estrada pela frente: os planos para 2018 são cruzar da América do Sul para a América Central com a nossa casa sobre rodas, percorrer Estados Unidos e Canadá no ano seguinte, com a meta de chegar ao Alasca, em 2020.
Para vivermos como turistas profissionais, nos reinventamos como repórteres. A rotina de um jornal diário ficou para trás. Notícias de política, economia, educação, esportes e cultura foram substituídas por dicas de viagem e relatos de aventuras. Plantões, longas jornadas de trabalho e chefes exigentes cederam lugar a uma total liberdade de horários, linha editorial e criação de produtos. As redes sociais (Facebook, Instagram e YouTube) viraram a nossa vitrine, onde anunciamos todo o conteúdo publicado no site d’A Casa Nômade. Aos poucos, o trabalho deixou de ser um fardo, o prazer em dar vida a textos e fotos sobre a nossa maior paixão nos trouxe leveza e, hoje, temos o privilégio de viver a vida, e não apenas cumprir uma agenda de compromissos.
Desapegamos de muito (ou de quase tudo) para viver na estrada, a bordo de um motorhome, como turistas profissionais. Mas, sem desmerecer o poder da internet e das novas tecnologias digitais, jamais abrimos mão do desejo de ver o nosso trabalho impresso no bom e velho papel. Aí entram em cena os livros, uma forma de eternizar nossas experiências e, à moda antiga, contar histórias e compartilhar experiências.
O nosso primeiro livro, O Mundo em Minas, nasceu de um encontro casual. Em 2013, entre uma viagem e outra, estávamos visitando família e amigos em Itaúna (no Centro-Oeste de Minas), nossa cidade natal, quando o produtor cultural Dalton Miranda cruzou o nosso caminho com a proposta de transformar nossas aventuras em um livro. Pelo olhar do Dalton, percebemos que as imagens, flagrantes e instantes captados pelas lentes do Renato em lugares remotos do planeta nos remetiam ao que há de mais arraigado na cultura de Minas Gerais. Um paralelo entre o local e o universal que se faz presente em ofícios, crenças, folclores, retratos, transações, ruínas, horizontes… Em busca dessas semelhanças, desbravamos o nosso estado de Norte a Sul, de Leste a Oeste, e a cada parada em uma grande cidade ou em um vilarejo, descobrimos um equilíbrio perfeito entre esse mundo de meu Deus e as Minas Gerais de todos nós.
Na cor das paisagens, no brilho dos olhares e em cada textura das vestimentas conhecemos sobre culturas que, se à primeira vista pareciam completamente distantes de nós, foram, aos poucos, nos aproximando de universos com impressionantes afinidades. Surpresas existem e nada tão bom quanto mergulhar no inesperado. Abrimos nossos olhos para a fé tão evidente nos monges do Laos e nas mulheres rezando o terço nas cidades coloniais de Minas. O perfume vem dos incensos aromáticos do Oriente e das flores dos andores dos santos nas procissões seculares. As águas brotam das montanhas na Serra da Canastra e nos grotões da Rússia.
À medida que o livro foi ganhando forma, notamos claramente que tudo, no planeta, é só uma questão de ponto de vista: a diversidade se completa. E em páginas recheadas de fotos e textos, fizemos um convite aos leitores a viajarem conosco pelas belezas da Terra e pelos confins de Minas. Foram dois anos de produção e pesquisa e, em 2015, lançamos O Mundo em Minas com apoio da Lei Estadual de Incentivo à Cultura e toda a tiragem foi distribuída gratuitamente em escolas, bibliotecas e espaços culturais.
Dois anos se passaram, continuamos firmes e fortes no propósito de desbravar cada canto deste planeta a bordo d’A Casa Nômade e, em meados deste ano, a ideia de publicar um segundo livro sobre as nossas viagens voltou a bater à nossa porta. Desta vez, nada de incentivo público. Apostamos em uma plataforma de financiamento coletivo, o Catarse, fizemos uma “vaquinha virtual”, vendemos quase 1.000 livros antecipadamente (via Catarse e também batendo de porta em porta em empresas parceiras do nosso projeto) e agora estamos prestes a lançar, em uma edição bilíngue (português e inglês), A Casa Nômade pelo Mundo – Uma Viagem pelos Cinco Continentes.
Se no primeiro livro fomos em busca do paralelo das viagens com as nossas raízes mineiras, neste segundo abrimos espaço para relatos e experiências vividas ao redor do mundo e que, de alguma forma, transformaram a nossa essência. Aventuras, apertos, maravilhas e uma descoberta: a de que entre o ponto de partida e o destino final, há um infinito de possibilidades. É tudo tão remoto, tão distante… que constatamos que, quanto mais se viaja pelo mundo, menor a gente se sente. Realmente não passamos de um grãozinho de areia nesse universo e é preciso se sentir pequeno para ter a humildade de reconhecer que cada lugar é especial, de uma beleza ímpar e de uma simbologia imensa.
Paisagens nos deslumbram sempre. Mas são as pessoas, com suas diferentes culturas, que fazem valer qualquer viagem. Depois de cruzar a fronteira da Índia para o Nepal de bicicleta e de encarar uma caminhada de 30 quilômetros no Monte Annapurna para chegar aos pés do Himalaia, experimentamos a sensação de estar bem perto do céu, não apenas pela grandeza da maior montanha do mundo. Ali, fomos tocados pela pureza das crianças que, em aldeias e campos de refugiados do Tibet, dão significado real ao “namastê”. A palavra mágica é pronunciada pelos pequenos nepaleses que saúdam os viajantes com as mãos juntas na altura do peito e o corpo ligeiramente curvado, como quem traduz em gestos a hospitalidade de um “seja bem-vindo”. O sorriso dos camponeses que vivem no Vale de Katmandu nos dá a certeza de que o Nepal oferece o seu melhor aos visitantes. E para nós, que viajamos o mundo para pisar nessa terra sagrada para os budistas, fica a missão de só fazer o bem e, assim, jamais decepcionar o seu povo.
Em Myanmar (antiga Birmânia), uma viagem pelo túnel do tempo. Carroções de boi cortam a paisagem e, com o ranger de suas rodas empenadas, ditam a trilha sonora. No rosto, mulheres, homens e crianças desconhecem outra maquiagem ou protetor solar a não ser a tanaka, um pó dourado extraído da casca de árvores. Anéis de metais são colocados no pescoço das integrantes da tribo Padaung e as transformam em “mulheres-girafa”, eternamente condenadas a viver em campos de refugiados no Sudeste da Ásia.
Sob as mãos de ferro de uma ditadura militar, Myanmar condenou seu povo a quase meio século de isolamento e falta de liberdade. Uma triste história que deixou marcas profundas entre os birmaneses, mas também foi capaz de fazê-los mestres em lições de generosidade. Foi ali, às margens do Lago Inle que, sem hotel ou um lugar minimamente abrigado para dormir, nós passamos uma noite inteira na rua, debaixo de uma marquise, deitados sobre as nossas mochilas. E dormimos! Para sermos despertados por uma moradora que, mesmo sem entender as motivações de dois nômades mochileiros pelo mundo, abriu as portas de casa e dividiu conosco a humilde sopa feita para uma família numerosa.
Já no Egito, em plena Primavera Árabe, a paisagem era desoladora: carros incendiados na Praça El-Tahrir, prédios depredados e isolados com tapumes por todo o Centro, barricadas e inúmeras pichações exigindo a queda do regime de Mubarak. Nenhum turista à vista. E nós ali, no Cairo, para sermos testemunhas de que são as pessoas que realmente deixam suas marcas em nossas viagens.
Em uma visita à Esfinge e às Pirâmides de Gizé, rodeados apenas pela imensidão do deserto e por alguns camelos, uma surpresa: duas mulheres vestidas de burcas negras caminharam em nossa direção e, através do véu a cobrir seus rostos, percebemos a rápida movimentação de olhares. Demos um sorriso tímido, sem entender a aproximação. Elas sacaram uma câmera da bolsa e, em um inglês pouco claro, pediram para tirar fotos conosco. Como assim? O que poderia haver de diferente ou exótico em dois ocidentais, ali parados de calça jeans, camiseta de malha, cabelos soltos e óculos escuros que merecesse uma foto?
Aos olhos de duas jovens muçulmanas nascidas no Iêmem, éramos verdadeiros extra-terrestres, figuras vestidas em um estilo nunca antes visto por elas nem mesmo em filmes hollywoodianos, que raramente chegam aos países árabes mais radicais. Fizeram pose ao nosso lado e partiram, deixando no ar uma reflexão. Véus e burcas que, para nós ocidentais, simbolizam o machismo e a opressão feminina podem não ser tão distintos da ditadura da beleza que, na nossa cultura, faz do corpo da mulher um mero objeto.
Nas 172 horas que passamos dentro de um trem para viajar de Moscou a Pequim, na incrível aventura da Transiberiana, vivenciamos uma infinidade de histórias e paisagens. Pescadores ávidos por tirar o sustento dos lagos congelados da Sibéria, homens e mulheres montados a cavalo sob o sol escaldante do Deserto de Gobi, na Mongólia, e as Muralhas da China ali ao alcance dos nossos olhos. Mas viajar por 7.663 quilômetros de trem e cruzar oito fusos horários foi muito mais que contemplar cartões-postais pela janela. Os sete dias dentro de um vagão de segunda classe para cruzar a Rússia, Mongólia e China foram de choques culturais intensos, de improvisos diante da barreira do idioma e de muito autoconhecimento.
A cada nova aventura, reforçamos a constatação de que viajar é abrir parênteses na vida, buscar novos sentidos para a nossa existência. Uma lição de desapego, longe de familiares e amigos, fora de uma zona de conforto, sem rotina, estabilidade ou certezas. É estar aberto ao novo, ao inesperado e, a cada surpresa, agradecer pela magia de estar vivo. É valorizar as nossas raízes, nossos portos seguros, mas não fazer deles uma prisão. É encontrar paz e coragem para renovar os votos de seguir sempre em frente, sem temer distância, desafios e obstáculos. Receios ficam para trás e só o que nos move é o anseio de sermos feliz em qualquer canto deste planeta!