Por Solanda Steckelberg
Falar de gestão cultural é um grande desafio. E o Letras se propõe a isso no seu relançamento. Tema perturbador, para não dizer chato, pois bate de frente e se desajeita com a irreverência e transgressão da arte e se estranha com a cultura (ainda bem), mas também oportuno e indispensável para quem atua na área ou curioso para quem gosta dos bastidores ou simplesmente tem interesse em saber como funcionam as políticas públicas. Nesta edição, vamos tocar em feridas para uns e em conquistas para outros, iremos abordar a Lei Rouanet; um assunto que é impossível falar bem sem falar mal e vice-versa.
A Lei Federal de Incentivo à Cultura, chamada comumente de Lei Rouanet, está sob os holofotes da mídia e investigativos da Polícia Federal e do Congresso Nacional, por meio de uma CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito. Sancionada em 1991, há 25 anos, trata-se do mais importante mecanismo de viabilização da cultura no Brasil, responsável por injetar em cinco anos, entre 2010-2014, R$ 7,52 bilhões de recursos em segmentos culturais, sendo R$ 6,36 bilhões de patrocínios ou doações de empresas e pessoas físicas que se utilizam de isenções fiscais previstas em seu estatuto.
A lei foi concebida com base em três pilares: (1) o Fundo Nacional de Cultura – FNC, com orçamento direto do governo federal, que já chegou a representar 30,9% do seu montante, mas em 2015, minguou para 2,2%; (2) o Fundo de Investimento Cultural e Artístico – FICART, nunca utilizado, pensado para a aquisição de cotas em projetos e a obtenção de retorno sobre os lucros e (3) o Mecenato, que garante a captação de recursos com isenção fiscal.
A Rouanet é gerida pela Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura – Sefic, órgão do Ministério da Cultura do Governo Federal – que, entre outras competências, se ocupa do planejamento e da coordenação, supervisão e operacionalização do Programa Nacional de Apoio à Cultura – o Pronac. Este programa foi criado pela lei com a missão de dar eficiência e materialidade aos direitos e deveres previstos em seu texto. Seu formato jurídico e organizacional é absolutamente complexo e um dos mais pujantes do país.
Com uma estrutura regulada e especializada de gestão, monitoramento, fiscalização e avaliação, a lei funciona com dinamismo e assertividade em seu conceito, processos, fluxos, definição de papéis, responsabilizações, entregas objetivas, articulação para promoção social e parcerias qualificadas. Isso não quer dizer que a lei não sofra com problemas de variadas ordens e distorções, no entanto, é importante destacar que se tornou um potente instrumento de estímulo à produção cultural.
Potente, porque fomenta a criatividade, a crítica, a inovação e a educação, e também negócios, tecnologias, emprego, renda e desenvolvimento para as cidades. Deveria ser um grande exemplo nacional, reconhecida pela sua capacidade inventiva e libertadora, capaz de ofertar bens e serviços estruturadores e variados, além de estimular a consciência, a diversidade, a inclusão, a autoestima, o conhecimento, a autonomia, a sustentabilidade e a soberania de um povo. Esta última indiscutivelmente dependente de valores culturais, solidários e compartilhados socialmente.
Por meio da Rouanet, subsidia-se a preservação e manutenção de instituições culturais, museus, acervos, escolas de arte, festivais, companhias artísticas, criações autorais e tantas outras atividades que ocupariam todo este universo. Coerentes com o dinamismo da vida cultural, tais ações estariam fadadas à estagnação se caminhassem no ritmo exclusivamente estatal. Quando bem executada, é notória a transparência de todo e longo procedimento a qual é submetida. Além disso, é fácil perceber e seguro observar seu alcance, desempenho, resultados e principalmente, sua capacidade estratégica na transformação social.
Para que a autorização de busca de financiamento respaldada no Mecenato ocorra, é preciso que agentes culturais aprovem um projeto no Ministério da Cultura, com sua devida divulgação no Diário Oficial da União, submetendo-o a diversificadas e exigentes instâncias e entidades especializadas (como a Fundação Nacional de Artes – Funarte, o Instituto do Patrimônio, Histórico e Artístico Nacional – Iphan, o Instituto Brasileiro de Museus – Ibram, a Fundação Biblioteca Nacional, entre outras), sob a cobrança, o comprometimento e a obrigação de precisão do seu resumo, objetivos geral e específicos, justificativa, detalhamento dos atos necessários para atingir os objetivos pretendidos, etapas do trabalho, planejamento financeiro, planilha orçamentária minudenciada com cronograma físico-financeiro, plano de distribuição de seu produto cultural, plano de democratização de acesso, plano de acessibilidade, ficha técnica, currículos dos profissionais envolvidos etc, sempre alinhados com as políticas públicas promulgadas na forma da Lei. Fora isso, é desclassificado.
Para ser analisado pelo poder público, é necessário inscrever o projeto em um sistema público on-line – o Salic. Após seu registro, ele passa por etapas de admissibilidade, onde é estudada a documentação do proponente, o histórico de desenvolvimento de atividades culturais nos últimos dois anos e demais documentos obrigatórios, que variam conforme perfil da proposta. Se aceita, é transformada em projeto cultural e enviada a uma ou mais unidades de análises técnicas, conforme área ou áreas culturais e artísticas do projeto. Na unidade de análise técnica o projeto é submetido ao exame de um parecerista externo, membro da sociedade civil e especialista comprovado na área do projeto. Após emissão do parecer, o projeto é avaliado e julgado pela Comissão Nacional de Incentivo à Cultura – CNIC, que é composta por 21 membros da sociedade civil e do poder público. O grupo se encontra uma vez por mês e realiza sessões abertas à participação pública e, algumas vezes, transmitidos ao vivo via internet. Se aprovado, o projeto torna-se apto a buscar captação junto às empresas e pessoas físicas, dentro de prazo de 12 meses, podendo ser prorrogado por até 24 meses.
Para que um projeto seja aprovado, é preciso responder positivamente a cinco perguntas:
– Trata-se de um projeto cultural? É de interesse público? Em que área cultural ele é enquadrado?
– O proponente tem capacidade de executar o projeto?
– Os custos do projeto estão condizentes com o mercado?
Ressalta-se que são proibidos critérios subjetivos e/ou políticos para determinar a aprovação de um projeto cultural.
Após seu cumprimento, o projeto deve documentar e entregar uma detalhada prestação de contas que ratifique sua efetivação, colocando-se à disposição do Estado por dez anos, com a garantia e a guarda de todas as informações sobre seu implemento, para o caso de alguma dúvida sobre sua concretização, tendo sanções e penalidades no caso de desvios. O Ministério também pode providenciar visitas presenciais a qualquer momento para averiguação in loco do bom andamento das ações e do uso correto do recurso autorizado para captação.
Entre os projetos que receberam a aprovação do Ministério, os incentivadores podem escolher qual deles patrocinar. Ou seja, após a aprovação, a definição de quais projetos serão executados cabe, exclusivamente, aos patrocinadores ou doadores. Podem participar as empresas que recolhem seu imposto baseado no regime tributário de lucro real (não são permitidas empresas enquadradas no lucro presumido e no simples) e pessoas físicas que declaram seu imposto de renda no formulário modelo completo (estão impedidas as que declaram no formulário simplificado). Ambas podem empregar parte do imposto de renda devido em projetos culturais aprovados por meio dos procedimentos previstos na Lei Rouanet, seus derivados decreto, normativas e súmulas vinculantes.
O valor a ser incentivado vai até o limite de 4% do imposto devido para pessoa jurídica ou até 6% para pessoa física, que neste caso particular, disputa o mesmo direito com a Lei do Esporte, Fundo da Infância e Adolescência- FIA, Lei do Audiovisual e/ou Fundo do Idoso, podendo ser este teto (o de 6%) rateado entre todos.
Evidentemente, a Lei Rouanet é um mecanismo que precisa de aprimoramento e carece de constantes observações, discussões, monitoramento, avaliação, controle e evolução. Deve se promover, dialogar, conviver e se completar com outras formas de incremento, desenvolvimento, fomento e proteção cultural e intelectual. No entanto, é essencial destacar – especialmente neste momento de duros ataques, que a Lei impactou de forma prática o crescimento da nossa consciência cultural e deu início a uma maior profissionalização do campo e da formação técnica da gestão cultural no país, frente de atuação que impreterivelmente lida dia e noite com os desafios da construção de uma nação mais justa, igualitária, livre, aberta e fraterna. Espera-se que os ajustes imprescindíveis para seu aperfeiçoamento sejam urgentemente providenciados, suas dificuldades e desvirtuamentos sanados e que sua dinâmica seja cada vez mais eficiente, ampla e benéfica para os brasileiros.
Bibliografia
MENEZES, Henilton. A lei Rouanet muito além dos (f)atos. São Paulo: Distribuidora Loyola, 2016.
*Solanda Steckelberg é gestora cultural e contou com a colaboração da gestora cultural, militante e fera em planejamento Júlia Mesquita.