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Entre ela, um filme e eu

Por Carmen Luz

No dia em que eu debatia com a plateia do curso de dança no auditório lotado de uma Universidade federal brasileira, logo após a exibição de Um Filme de Dança, o corpo de uma jovem negra de pele muito preta, desarranjado na poltrona, me comoveu.
A jovem estava sentada na segunda fileira do auditório e eu pude vê-la bem, quase como se lhe escaneasse o corpo e mais, os estados do seu corpo.  O corpo estava lá e era como um intervalo, contínuo e gentil, dentro do qual morte e vida circulavam e interseccionavam-se.  O corpo movia sutilmente: ela surgia, ela desaparecia, ela ressurgia, ela fenecia. E naquele presente: quanta temporalidade!

Antes da sessão começar, quando subi ao palco para apresentar o filme…, a segunda fileira… como não me chamaria à atenção?   De lá uma sonoridade se propagava me impedindo o exercício de qualquer indiferença. Sons longos e curtos, sincopados súbitos conformavam o espaço, operavam uma algazarra adolescente, uma excitação aguda de meninas — estilo “hora do recreio” — e Ela, a jovem negra de pele muito preta, sentada no canto esquerdo, animadíssima (alguém diria “bem neguinha”), dividia os seus ritmos entre estar com as outras e à disposição do celular, sofisticadíssimo, empunhado de maneira inconstante, talvez como arma, talvez como bandeira.

Do centro do palco, com uma expectativa sem nome aterrissada em meu corpo, eu olhava a plateia.  Impossível verificar precisamente o tão numeroso público que lá estava; facílimo, porém, contar a quantidade de pessoas negras. Alguém diria “é sempre assim”.  Enquanto a paisagem sonora se transformava e o silêncio que chegava aos poucos se instalava generosamente no ambiente forçando em mim tempos e espera, eu as contei, uma a uma, com as ferramentas convencionais e perversas do passado recente: Onze cabeças pretas no mapa da sala; duas de homens e nove de mulheres, seis jovens e três “maduras”.  De um lado, quatro negras e um negro sentados juntos; do outro, um negro e uma negra de mãos dadas; por fim, quatro, sentadas separadas em poltronas diversas, dentre as quais Ela, a jovem negra estudante de dança sentada na segunda fileira, única entre as amigas.

Durante noventa minutos o filme dançou na tela.  Depois dos créditos, depois do fim, as luzes acesas, eu subindo de volta ao palco e o corpo d’Ela desabado na poltrona, sequestrado da farra, sem celular, a cabeça para frente e os olhos detrás dos óculos, lindos, escuros, esbugalhados, admirados, surpresos, satisfeitos? Talvez.  Ali, espaço, corpo, tempo, objetos, pessoas, imagens…, nenhum vegetal…, implicavam multiplicidade de textos, me convocavam devaneios… um século — talvez dois — de matéria invisível, para tantos, desfilavam em meus olhos: Vitoria Santa Cruz chegou para enunciar o instante, trouxe palmas, trouxe letras, trouxe recado e foi-se.  Depois chegaram as outras…águas, ventos, areias e lamas, novas e velhas: Luciane Luli Ramos, Katherine Dunham, Marlene Silva, Valeria Monã, Inacyra Falcão, Germaine Acogny, Rosangela Silvestre, Jawole Willa Jo Zollar, Pearl Primus, Regina Advento, Carmen Dellamare, Nadir Nobrega, Nora Chipaumire, Michelle Mattiuzzi, Béatrice Kombé, Nildinha Fonseca, Raven Wilkinson, Mercedes menina…, Mercedes gira. Onírico o espaço formou-se de movimento, de danças, de encruzilhadas e aves.  Saartjie“Sarah”Baartman dissecada, remanescente, voltando para casa.  Voltando…voltando…voltando…

Quando findou seu tempo o invisível deixou aos poucos os meus olhos. Da interação palco-plateia desembarcaram ágeis perguntas, longas respostas. O corpo desarranjado, impassível d’Ela – a jovem negra estudante do curso de dança – seguia lá, desabado, já ultrapassado pelo dinâmico jogo de um debate sedutor sobre dança, sobre cinema, sobre educação. Quando acabou o tempo, o tempo das perguntas, o tempo das respostas, quando todos se levantaram e Ela, a jovem negra de pele muito preta também se foi… “levantando a poeira”… “dando a volta por cima”? Qual História continuaria naquele corpo?  Huuum…Um devir de gente velha circulou naquele instante: contar, cantar, dançar, divagar devagar, semear.

O presente inteiro estica a sua lança de duas pontas, de dupla seta; vê para o passado, vê para o futuro. Entre o corpo d’Ela e meu filme-corpo, entre a sua biografia e as vidas ali no filme reveladas, entre o rebaixamento do visível e a invisibilidade reconhecida, rearticulada, um link, um enunciado, desabado, desarrumado, inquietante.  O vestígio paradoxal de um corpo atingido, eis a deriva.

1 Documentário de longa-metragem, lançado em 2013, de forma independente; concebido produzido e dirigido por mim durante os anos 2012 e 2013. Segue a sinopse: “E os negros? Onde estão os negros? – Eis a pergunta que os brasileiros deveriam se fazer uns aos outros –“. A pergunta de Jean-Paul Sarte e a constatação de Nelson Rodrigues nos anos 1960 do século passado ainda ressoa no Brasil do século XXI principalmente quando o assunto é a TV, o Teatro e a Dança Cênica. O eco desta pergunta na dança cênica brasileira foi o ponto de partida para a realização de Um Filme de Dança. O filme foi ao encontro de alguns dos mais atuantes criadores e criadoras negras e negros de dança de diferentes gerações e nos mostra a trajetória, o pensamento, o belo e contundente trabalho desses e dessas artistas. Por sua abrangência o filme é um documento pioneiro na História da Dança brasileira. O filme é uma homenagem à perseverança de bailarinas e bailarinos, coreógrafos e coreógrafas. Um tributo ao corpo negro, dono de sua própria dança.

CARMEN LUZ
é Mestre em Artes e Cultura Contemporânea pelo PPG da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) ; pós-graduada em Teatro pela UFRJ, onde também concluiu bacharelado e licenciatura em Língua Portuguesa e Literaturas. É pós-graduada em Cinema-Documentário pela Fundação Getulio Vargas/RJ e diretora de cinema formada pelo Instituto Brasileiro do Audiovisual/Escola de Cinema Darcy Ribeiro.  Nasceu, vive e trabalha na cidade do Rio de Janeiro. É artista transdisciplinar. Compõe, atua e dirige obras cênicas presenciais (dança, teatro e performance) e realizações audiovisuais (cinema-documentário, vídeos de dança e instalação). Pesquisa os sujeitos afrodescendentes, seus corpos, seus pensamentos, suas manifestações culturais e artísticas, abordando, com especial interesse, as memórias de mulheres negras das Américas e o cotidiano de jovens moradores dos grandes centros urbanos e suas periferias, conectando-os aos processos políticos.

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