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Sobre Diários públicos, de Leila Danziger

Por Késia Oliveira
Editora Lyslei Nascimento
Em Diários públicos: sobre memória e mídia2, Leila Danzinger cria um apagamento seletivo de jornais impressos. Publicada em 2013, a obra se divide em duas partes e contempla produções artísticas e literárias, fotografias das instalações e reproduções de ensaios da artista. A primeira parte, “Para pensar o apagamento”, trata da exposição homônima ao livro, trabalho que vem sendo desenvolvido desde 2001. A mostra compreende uma coleção de jornais dividida em extensas séries como “Para Irineu Funes”, “Resistir-por-ninguém-e-por-nada”, “Para-ninguém-e-nada-estar” e “O que desaparece, o que resiste”. Nesses trabalhos, a artista se apropria de trechos literários, como versos de Paul Celan, Carlos Drummond de Andrade e Cecília Meireles, reinscrevendo-os sobre páginas de jornais que foram anteriormente raspadas.
Os jornais selecionados possuem parte das informações das páginas apagadas, sendo submetidos a um processo que a artista chama de “depilação”: eles são descascados, expostos ao sol, dobrados e carimbados. Para apagar as páginas, Danziger retira, com uma fita adesiva, a primeira camada de tinta, deixando apenas vestígios da impressão e, sobre essa página, inscreve um fragmento literário – como o verso “Não volto às letras, que doem como uma catástrofe”, de Ana Cristina César –, uma palavra ou uma expressão – como os verbos “lembrar” e “esquecer” – que são, ali, carimbados.
Esse trabalho de esfolar e reescrever evidencia um tipo de resgate de memória que visa, no processo de fazer desaparecer quase totalmente a linguagem jornalística, deixar latentes imagens contemporâneas de tragédias e de abandono. Na série “Para-ninguém-e-nada-estar”, por exemplo, a poética de Danziger dá-se a partir do poema “Stehen”, [De pé] de Paul Celan:
Resistir, à sombra
da ferida aberta
Resistir-por-ninguém-e-por-nada.
Irreconhecido,
para ti
somente
Com tudo o que aí tem lugar,
Mesmo sem linguagem.
O verso é deslocado do contexto da Shoah (Holocausto) e “enxertado”, no contexto brasileiro, em imagens que parecem remeter à morte, ainda que metaforicamente, como fotografias de jovens mascarados (Figura 1). A relação metafórica pode ser vislumbrada levando-se em conta o sofrimento que as imagens sugerem:

Série “Para-ninguém-e-nada-estar”, 2002. Carimbo sobre jornais apagados e encadernação.
A imagem desfocada, extraída levemente pela fita adesiva, e a evidência, na fotografia, de uma possível exploração do trabalho infantil apontam para uma poética que denúncia tanto a perda, ou a morte da infância, quanto a violência anônima. Se se considerar que o excesso de notícias, “nos submerge sob uma torrente de imagens […] tornando-nos insensíveis à realidade banalizada dos horrores”, esse trabalho pretende tirar o leitor/espectador de uma condição de anestesia, promovendo, com sua arte, um retorno à sensibilização.
As séries originadas do verso “Resistir-por-ninguém-e-por-nada” e “Para-ninguém-e-nada-estar”, trazem fragmentos carimbados ao lado de imagens que, possivelmente, sem a intervenção de Danziger, seriam esquecidas para sempre devido ao envelhecimento acelerado da informação. Ao explicar a presença de Celan em sua obra, a artista afirma que “a vocação de sua poesia é atualizar-se continuamente, deslocar-se do contexto original da memória dos crimes nazistas e informar nossas pequenas e grandes catástrofes de cada dia (o estado de exceção, o abandono, a vida nua)”.
Raspar e carimbar fazem parte da criação de Diários públicos. A noção de corte é emblemática na obra, pois efetua tanto o recorte do jornal quanto do texto literário. Esse duplo gesto parece aproximá-la ao “homem da tesoura”, proposto por Antoine Compagnon em O trabalho da citação. Para o crítico, o escritor é alguém que corta tudo o que lhe agrada e cola onde lhe convém. Esse gesto arcaico do recortar-colar pertence tanto ao escritor quanto ao artista. Assim, a intervenção nos jornais que compõem Diários públicos traz a transformação do texto jornalístico em objeto artístico por meio de uma decisão acerca do que deve permanecer e do que deve ser apagado da página.
 
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Notas
1 Késia Oliveira é Mestre em Estudos Literários pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UFMG.
2 DANZIGER, Leila (Org.). Diários públicos: sobre memória e mídia. Rio de Janeiro: Contracapa/FAPERJ, 2013.
3 CELAN, Paul. Stehe. Trad. Raquel Abi-Sâmara. In: GADAMER, Hans-Georg. Quem sou eu, quem és tu? Trad. Raquel Abi-Sâmara. Rio de Janeiro: UERJ, 2005. Disponível em: <http://antoniocicero.blogspot.com.br/2010/05/paul-celan-stehen-trad-raquel-abi.html>. Acesso em: 13 fev. 2016.
4 Disponível em: <http://www.leiladanziger.com/works.html>. Acesso em: 07 jun. 2014.
5 RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Trad. José Miranda Justo. Lisboa: Orfeu Negro, 2010. p. 141.
6 Este verso é usado também em uma tradução feita por Leila Danziger que diz “para-ninguém-e-nada-estar”, título de outra s
7 DANZIGER, Leila. Apresentação. In: DANZIGER, Leila (Org.). Diários públicos: sobre memória e mídia. Rio de Janeiro: Contracapa/FAPERJ, 2013. p. 22.
8 COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Trad. Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
9 COMPAGNON, 2007, p. 14.
10 DANZIGER, Leila. Mercúrio e jornais. Disponível em: <http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/entrelugares/leiladanziger.htm>. Acesso em: 13 fev. 2016. IMPRESSÃO. In: HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
11 IMPRESSÃO. In: HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

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