Por Eduardo de Jesus*
Editoria Luciana Garcia-Waisberg
Para ver um filme ou vídeo por inteiro, deve-se ir ao cinema ou ficar diante de um computador. Todo o propósito de ver uma exposição de arte com base no tempo (time based art) é dar uma olhada nela e depois dar outra olhada e outra olhada – mas não a ver na sua totalidade. Aqui, pode-se dizer que o próprio ato da contemplação é colocado em loop. Boris Groys em “Camaradas do tempo”
A presença da imagem em movimento no circuito da arte contemporânea, não é uma novidade. Hoje em dia é quase ubíqua e apesar disso, ainda causa certa controvérsia sobretudo em relação à duração e aos modos de experimentar as obras. Existe uma dinâmica e um jogo entre a caixa preta, tradicional espaço para a exibição de filmes, e o cubo branco, forma mais sedimentada de constituição dos espaços expositivos para a arte. Essa forma, duramente criticada por Brian O´Doherty (A ideologia do cubo branco – a ideologia do espaço na arte), em uma série de ensaios publicados no meio da década de 1970, parece hoje se contrapor a outras espacialidades, ainda mais complexas.
Ao longo do tempo foram muitos os desenvolvimentos artísticos que reposicionaram e tensionaram o espaço expositivo. Obras de Marcel Duchamp como “1200 sacos de carvão” (1938), as ocupações de Kurt Schwitters, entre muitas outras obras e contribuições no contexto das vanguardas do início do século XX acabaram ativando outras potências do espaço expositivo. Posteriormente as instalações, performances e happenings abriram outras possibilidades trazendo o efêmero para o contexto expositivo da arte, que sempre privilegiou os tempos mais sedimentados típicos do museu, uma heterotopia de acumulação como apontou Foucault (“heterotopias nas quais o tempo não cessa de se acumular e de se encarapitar no cume de si mesmo”). O museu como o espaço que abriga obras prontas em exposições permanentes.
A produção artística entre as décadas de 1950 e 1960 gradativamente se encaminhou para a desmaterialização do objeto artístico, que já estava em tensão com as aproximações, ao longo do tempo, da arte com a fotografia e o cinema. O surgimento da pop art, do minimalismo, da land art e da arte conceitual, entre outros movimentos, foi de perto acompanhado por um intenso diálogo, primeiramente, com o cinema e logo depois com a recém descoberta imagem eletrônica do vídeo. Junto com isso é inevitável pensar nos desenvolvimentos do cinema experimental, não apenas do contexto das vanguardas, mas também entre as décadas de 1940 e 1960 que criaram diversas formas transversais de diálogo com a arte e seus espaços de exposição. Não se trata aqui de detalhar esse amplo e complexo trajeto histórico, mas apenas de mostrar uma passagem rápida para pensar que já constituímos uma história das relações entre a arte e a imagem em movimento que atravessa a difícil e ainda pesada discussão em torno dos meios e suas especificidades. No domínio pós-mídia, como aponta Rosalind Krauss, as especificidades dos meios tem distintas formas de operação nas obras. Não se trata de um jogo de cartas marcadas, já que as especificidades dos meios e suas questões servem a distintas apropriações e construções. Obras como “Film” (2011) de Tacita Dean ou “The Clock” (2010) de Christian Marclay, entre outras, apontam para novas e ainda mais complexas relações entre os meios e suas especificidades. Todos esses gestos, processos e procedimentos se colocam hoje na produção artística contemporânea acionando outros modos de concepção e ocupação dos espaços expositivos, que passaram a abrigar distintas relações espaço-temporais. Museus, galerias e centros culturais tornaram-se um continuum entre as heterotopias de acumulação e as de passagem, redesenhando as relações entre efêmero e permanente, abrindo outras possibilidades de experimentar as obras.
Nas elaborações filosóficas de Henri Bergson, posteriormente retomadas por Gilles Deleuze, especialmente em relação ao cinema, a duração, teve um lugar central para explicar o tempo e a memória. Aqui, nos perguntamos como a duração se efetiva em obras como “The empire” (1964) de Andy Warhol filme com cerca de oito horas de duração com uma mesma imagem, quase estática. A duração, nesses contextos, vem se tornando um importante vetor nos processos de redimensionando das formas de fruição. Há aquelas obras que, organizadas de forma mais narrativa e tradicional solicitam formas de exibição que trazem a caixa preta do cinema para dentro do espaço expositivo ou transformam todo o cubo branco em uma sala de cinema manejando com durações próximas do cinema tradicional. Há ainda aquelas que tomam o espaço do cinema – que tal qual o cubo branco nos isola dos embates da vida cotidiana – para toma-lo como modelo de uma certa prática social e artística, como em “Paradise Institute” (2001) de Janet Cardiff e Georde Bures Miller que com uso de imagens de um cinema vazio e uma potente edição de áudio constroem uma pequena instalação que simula uma grande e especular sala de cinema.
A imagem em movimento no domínio da arte, tensionando as durações, acaba por redimensionar os espaços expositivos que passaram a abrigar projetos como “The Clock” (2010) de Christian Marclay com duração de 24 horas exigindo, por isso, substanciais mudanças no espaço expositivo para permitir sua exibição. A duração menos padronizada das obras audiovisuais abre outras possibilidades de fruição para o espectador criando outras forma de contemplação e interação que se orientam pelo loop, pela repetição e pelos tempos mais longos – excedentes – que resistem a extrema velocidade e rapidez que caracteriza as temporalidades medidas pela eficiência e concorrência típicas das tecnologias do neoliberalismo, bem como suas expansões e coopções da produção de subjetividade. Com isso, a imagem em movimento com suas diversas formas de ocupar os espaços da arte acaba por redimensionar o cubo branco ao mesmo tempo que permite outras formas de experimentar o tempo. Pensar a natureza relacional do espaço expositivo – num jogo entre caixa preta e cubo branco –reposiciona a obra das questões do meio para o lugar, o território e todas as relações, encontros e passagens que podem ocorrer ali. Novos blocos de espaço-tempo que passam a ser ativados.
Mais recentemente, no contexto da 32ª Bienal de Arte de São Paulo a inclusão da trilogia “Cantos de trabalho” (1974 – 1976) de Leon Hirszman ativava, junto com outras obras, uma importante linha de força na curadoria da exposição trazendo as ideias ligadas ao trabalho coletivo, ao protagonismo do trabalhador e aos seus processos identitários, bem como as relações com a natureza. Além dessa meada de questões intrínsecas a obra, esses documentários produzidos para exibições mais tradicionais abriram outras dimensões ao se colocarem em diálogo com questões ativadas por outras obras. Neste potente gesto curatorial, mantem-se a mesma temporalidade mais estruturada do cinema, mas abre-se todo um campo de interação e diálogo entre a obra de Hirszman, as outras obras da exposição e as forças do tempo presente.
Como experimentamos contextos sociais e políticos fortemente mediados por imagens são inúmeros os jogos políticos, sociais, culturais e subjetivos que podem se dar entre as imagens, seus circuitos e formas de engajamento nos modos como são apropriadas, negociadas e reorganizadas no contexto da arte abrindo outros sentidos e formas de apreciação.
* Professor do Departamento de Comunicação da UFMG