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A luta do samba como patrimônio imaterial de BH

Por Marcos Maia
Editoria Nísio Teixeira

Vou te provar que meu samba é social/ quando desce lá do morro/ minha raça vem legal. Nestes versos de Eu fiz um samba assim a mineira Lourdes Maria dava o recado a uma cidade que pouco reconhece o valor dos detentores e detentoras desse bem cultural que Lourdes constrói desde 1946, quando, logo depois da Segunda Guerra Mundial, ajudou a fundar a escola de samba Unidos de Monte Castelo na capital mineira.

Na década anterior, o historiador Abílio Barreto publicava o artigo O Carnaval de outrora e de hoje em Belo Horizonte no jornal Estado de Minas de 8 de março de 1936, onde assim descrevia a participação dos cordões carnavalescos e blocos daquele ano que se preparavam para o carnaval: com precedencia de um mez e às vezes mais em relação a aquelles tres dias classicos, animado pelo enthusiasmo, bom gosto dos cordões e blocos musicaes, nos quaes sempre se salientam particularmente os carnavalescos morenos e pretos[optamos por manter a ortografia original das fontes]. No ano seguinte, em 19 de janeiro de 1937, o mesmo jornal noticiava Desceu a escola de samba da Pedreira e alcançou sucesso no centro da cidade, ante-hontem. Referia-se à escola de samba Pedreira Unida, a mais antiga escola de samba de Belo Horizonte que se tem registro, fundada na favela da Pedreira Prado Lopes, comunidade que até hoje tem inúmeros grupos de samba e conta com a escola de samba Unidos Guarani, fundada em 1964.

Centenas de grupos de samba e de pagode, dezenas de blocos caricatos e escolas de samba continuam mobilizando e agregando sambistas e apreciadores nas rodas de samba, nos bares e nos carnavais dos últimos anos. São atos coletivos de alegria e lazer, mas principalmente ferramentas que tecem laços comunitários e maneiras de fomentar uma economia criativa que tem o potencial de movimentar e sustentar, através da geração de emprego e renda, milhares de pessoas nas favelas e periferias da cidade. Indo ao encontro e defesa dessa rica constelação de arte e cultura, surge em plena pandemia de Covid-19 o Coletivo de Sambistas Mestre Conga (instagram: @sambistasmestreconga). Mais precisamente, em plenária virtual de agosto de 2020 funda-se o Coletivo cujo primeiro objetivo é o reconhecimento do samba como patrimônio imaterial da cidade de Belo Horizonte. Meses depois, no dia 5 de abril de 2021, é realizada a live Samba de Belo Horizonte: memória, história e patrimônio cultural (disponível no YouTube), com centenas de participantes e a presença convidada do historiador e escritor carioca Luiz Antônio Simas. Nesse abre alas do Coletivo, firmou-se uma parceria entre o samba belo-horizontino e a universidade, através do Projeto República (Fafich-UFMG), dirigido pela professora Heloisa Starling, representada na live pelo historiador Bruno Viveiros.

Como resultado da luta do Coletivo, apoiada pela UFMG e proposta pela vereadora Macaé Evaristo, aprova-se por unanimidade na Câmara Municipal de Belo Horizonte, no final de 2021, uma Emenda Impositiva direcionada ao Projeto República da UFMG e ao Coletivo de Sambistas Mestre Conga. A Emenda provê recursos para a produção de um inventário com o objetivo final de conquistar o registro do samba como patrimônio imaterial da cidade. Os desdobramentos da emenda acontecerão nos anos de 2022 e 2023.

A Emenda propiciará um Inventário Participativo inédito sobre o samba de Belo Horizonte. Um Inventário – pois nele serão levantadas informações sobre as escolas de samba, blocos, rodas de samba, territórios, personagens, sambas antigos e atuais, pesquisa em acervos públicos e privados. Mas para além disso, como bem lembrou e sugeriu Luiz Antônio Simas, serão identificados e registrados gestos corporais, modos de falar, expressões, culinária, ritos de morte e de vida, entre outras expressões da imaterialidade do samba. E participativo, conforme determinam as mais modernas legislações e os pactos políticos sobre o patrimônio cultural. Desde o Decreto-lei 25, de 30 de novembro de 1937, que propõe organizar “a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional”, as discussões e ações sobre o patrimônio cultural têm avançado para, no caso do patrimônio imaterial, a democratização e a participação daqueles que por décadas e mesmo séculos foram os que garantiram a salvaguarda desses bens culturais. Essa forma de ver o patrimônio imaterial é reconhecida pela própria Constituição Federal que, no artigo 216, define os bens de natureza material e imaterial, e por acordos internacionais, como a Convenção de Paris para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, de 17 de outubro de 2003, que reconhece os saberes locais e seus protagonistas nos processos de inventariação do patrimônio imaterial.

E aqui, quem são esses protagonistas? Os próprios criadores das referências culturais do nosso patrimônio, os sambistas e as sambistas de Belo Horizonte. Por isso, a proposta do projeto Inventário para o Registro do samba como patrimônio cultural imaterial de Belo Horizonte, Coletivo de Sambistas Mestre Conga e Projeto República da UFMG, dispõe que todas as etapas de construção do inventário (planejamento, orçamento, pesquisa, ações e produtos finais) contarão com participação dos sambistas. O projeto também contará com um Conselho de Mestres e Mestras do samba, todas e todos remunerados pela emenda.

O Inventário será um passo decisivo para orientar políticas de salvaguarda para o samba em Belo Horizonte. Para além de um lugar de memória, o samba é fonte de renda e emprego para as comunidades envolvidas. Inventariar essa manifestação e sua história será passo fundamental para fortalecer o espírito inclusivo, democrático e diverso nas metrópoles brasileiras.

Reconhecer o samba de Belo Horizonte como patrimônio imaterial, através de um inventário participativo e democrático, pode ser um passo importante do poder público e da população belo-horizontina de combate às centenárias injustiças sociais e raciais – especialmente as heranças da escravidão – sofridas até os dias de hoje pelo povo que foi ator mais importante na criação do samba.

Marcos Maia é historiador, produtor cultural e atualmente é um dos coordenadores do Coletivo de Sambistas Mestre Conga. Foi curador de exposições e mostras de cinema sobre samba e Carnaval e produtor do documentário “Roda”, com a velha guarda do samba de Belo Horizonte. Ouça algumas das histórias do samba de Belo Horizonte produzidas pelo Coletivo Mestre Conga aos sábados, das 13 às 14 horas, na parceria com o programa Batuque na Cozinha: acesse 104,5 FM no seu rádio ou www.ufmg.br/radio. Conheça as lives do Coletivo de Sambistas Mestre Conga, com nossos mestres e mestras, todas as segundas-feiras, às 20 horas, no Instagram do Coletivo: @sambistasmestreconga

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