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Ainda que dura

Editoria Laura Barbi

A Serra do Curral faz parte da Serra do Espinhaço. Além de ser reconhecida pela Unesco (Organização das Nacões Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), desde 2005 é tombada como Reserva da Biosfera pelo Iphan (Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e pela Prefeitura de Belo Horizonte, na área de Jurisdição da capital.

Em meio às discussões sobre o tombamento estadual da Serra – bem como sobre a licença prévia de exploração concedida à Taquaril Mineração S.A. (Tamisa)
pelo Copam (Conselho Estadual de Política Ambiental) no dia 4 de maio de 2022 –, entrevistamos o artista Aruan Mattos sobre sua pesquisa entitulada Ainda Que Dura, desenvolvida em 2019 em parceria com a artista Flavia Regaldo e que relaciona a importância histórica da cidade com suas montanhas, pedreiras, morros e serras.

Na pesquisa, levantaram quais foram as primeiras pedreiras que alimentaram a construção da cidade. A partir daí, desdobraram uma série de trabalhos correlacionando a matéria e paisagem mineral da cidade. Percorreram as ruas da cidade planejada de Belo Horizonte e mapearam todos os pontos de onde se pode ter as vistas das montanhas, produzindo a partir daí uma série serigráfica a partir destas vistas. Ainda no trabalho, realizaram uma série de monotipias monocromáticas explorando a solidez da forma e da matéria. Outro desdobramento ainda importante para o trabalho foi a instalação de marcos topográficos ao sopé de cada uma das pedreiras da pesquisa. E, por fim, produziram uma publicação em 2 volumes. O primeiro funciona como um guia onde se tem o mapeamento das vistas e ainda acompanha um levantamento geográfico-histórico da Serra do Curral. Já o segundo volume possui um tom ensaístico, onde as monotipias assumem a frente.

Monotipias

Laura Barbi/ Letras: Onde surgiu a ideia para o projeto/pesquisa Ainda Que Dura?
Aruan Mattos: O primeiro desenho do projeto foi colocado no papel em 2017, mas não é exagero dizer que Ainda Que Dura é um trabalho que começou a ser feito desde sempre. Quem é de Belo Horizonte ou convive com a cidade pode entender isso com facilidade. A montanha está aqui, a Serra do Curral é vista por toda a cidade e, no entanto, há uma tensão. É de conhecimento geral a cava atrás da Serra perto das antenas. No Taquaril, seu perfil verde é interrompido por uma nesga bege, como um índice do que está ali por trás. Da Serra do Rola Moça, o buraco está ao lado, para quem quiser ver. E assim poderíamos seguir: no sentido Leste ou Oeste, no complexo montanhoso; e Norte ou Sul nas outras rochas, e a paisagem de buraco ainda é em eco. A retirada da montanha não é nova, o sentimento não é novo; está no convívio, é anestesiado.

Mineiro, palavra que acompanha quem nasceu aqui, antes de ser uma palavra gentílica, é uma palavra de cunho extrativista. Ou ainda, menor que a palavra, o sufixo -eiro, tão curto e tão determinante para a lógica do que viveríamos. Não há outro estado no país que acompanhe tal sufixo. Entre -enses e -anos, em sua maioria, estamos solos nesse quinhão, como se a atividade precedesse a região. E como um cruel e sagaz batismo, a palavra cumpre a sua função de forma estrita, já que uma vez sem mina, não há atividade para o mineiro. Outro nome mais próximo que encontramos é, sem surpresa, o brasileiro. É interessante lembrar que essa palavra antecede inclusive a nomeação do território como Brasil, já que brasileiros eram aqueles portugueses que comercializavam a madeira da árvore Pau-Brasil. Em triste ligação, mineiros e brasileiros cumprem sua sorte.

LB/ Letras: Porque o nome Ainda Que Dura?
AM: Ainda que Dura é um título que reverbera desse contexto. A começar por Dura, associada à duração ou à dureza. O desconforto da leitura parece vir ou de uma incompletude, ou de algo fora do lugar. Aberto, pretende indicar mais de uma leitura: a duração do advérbio como um eterno contínuo ou, de alguma maneira paradoxal, a transformação do estado apontando para uma reticência, apesar da dureza da matéria.

B/ Letras: Ao investigar a materialidade das pedras que são retiradas das montanhas, vocês se depararam com as quatro pedreiras que, inicialmente, forneceram os insumos para a construção de Belo Horizonte. Fale um pouco sobre elas e como essa parte do projeto se desdobrou.

AM: A primeira construção de Belo Horizonte está nesses termos. Cinco morros, aferidos como pedreiras, formavam um cinturão. No centro dele, foi construída uma cidade com a matéria desses morros. Hoje, essas pedreiras fazem parte de regiões que, em alguns casos, levam seus nomes como Acaba-Mundo, Prado Lopes e Morro das Pedras; e ainda há a Carapuça, no Aglomerado São Rafael no bairro Pompéia e a Lagoinha, que hoje pertence ao bairro Concórdia. Depois, vieram outras pedreiras, algumas já foram desativadas e outras seguem em extração mineral. Dessas primeiras, apenas a Acaba-Mundo está em atividade, de forma subterrânea, mas com a morte a céu aberto. No início, o nome Acaba-Mundo se deu pela associação a um limite da cidade. A pedreira é situada no sopé da Serra do Curral, uma fronteira bem marcada. Mas a leitura já não é outra? Se a montanha acaba, o mundo não acaba?

LB/ Letras: Para vocês, qual a relação entre BH e a paisagem montanhosa que circunda a cidade?

AM: Hoje, a subida até o alto da Serra do Curral é oficial, tem nome e o caminho foi traçado a máquina. Na entrada do parque homônimo há uma placa robusta de ferro oxidado com um trecho de Triste Horizonte, do Carlos Drummond de Andrade. Nós somos essa civilização que cria a mineração, lamenta a mineração e cria uma homenagem à extinta montanha com um pedaço de lamentação em um pedaço de extinção. Drummond, tocado para sempre pela brutalidade no Pico do Cauê, sempre escancarou essa marca. José Miguel Wisnik, no livro A Maquinação do Mundo, recorda de uma publicidade da até então Companhia Vale do Rio Doce, em contra-resposta ao poeta — uma imagem de um minério sobreposta pela seguinte frase: “Há uma pedra no caminho do desenvolvimento brasileiro”.

LB/ Letras: Como se deu o registro das 414 vistas encontradas dentro do perímetro da Av. do Contorno, onde ainda é possível se ver a Serra do Curral? Qual o resultado desses registros?

AM: Percorremos todas as ruas da primeira cidade planejada de Belo Horizonte e mapeamos onde se via as montanhas. Uma experiência singular estar entre vias retas, paredes longilíneas, rios retificados, sons em cadência maquinal, com as pernas e corpo em compasso orgânico, acidose láctica e com a mirada para a montanha na espreita, em jogos de cores entre o minério, as árvores, os raios do sol e as sombras projetadas. A ambivalência de dois mundos que se chocam. Repito: a montanha está logo ali, todos sabem, todos podem enxergar da cidade inteira, mas há uma certeza coletiva de uma construção de mundo em que ela estará sempre em segundo plano. Ela aparece em pontos, cortada por trás e pela frente. A frase vem natural, sem esforço: há um desenvolvimento no caminho da pedra mineira. Um destino talhado a ponta seca. Varando o ferro em galeria vertical, cavando minas em palavra abissal.

Laura Barbi é curadora e produtora cultural cujas áreas de pesquisa incluem arte contemporânea, identidade cultural e diplomacia cultural. Entre 2008 e 2015 trabalhou como gerente de projetos na Embaixada do Brasil em Londres, responsável pelas mostras e eventos realizados na Gallery 32 e Sala Brasil – ambos mantidos pela Embaixada como uma plataforma permanente para a cultura brasileira no Reino Unido. Mestre em Design Gráfico (University of Arts London) e especialista em Gestão Cultural (Birkbeck College – Londres) é doutoranda em artes visuais (EAU-UFMG) onde pesquisa arte contemporânea e identidade cultural. Em 2017, lançou GAL, um projeto independente de pesquisa e circulação da arte contemporânea brasileira que ocupa espaços vazios na cidade com exposições e eventos temporários.

Aruan Mattos (1985, Belo Horizonte – MG) vive e trabalha em Belo Horizonte. Se interessa por situações em que tensões se dão pelos limites do inútil e do absurdo; ora na cidade, ora na matéria e na natureza. Ultimamente, vem explorando em seus trabalhos as relações sociais e naturais das construções do ambiente comum, e como essas relações se entrelaçam na invenção do real. A Arte Gráfica assume um importante papel na sua obra, mas também o trabalho manual com a madeira, e a investigação musical e sonora são elementos de estudo e composição.

Flavia Regaldo (1984, Belo Horizonte – MG) vive e trabalha entre Brasil e Portugal. Seus trabalhos procuram dar forma a forças invisíveis, tensões comuns à matéria, pensando no ritmo e no caos através de um olhar que atravessa o micro e o macro e repensa dicotomias do natural/social. Atualmente, em sua pesquisa de mestrado, realiza animações erótico/pornô em aquarela, nas quais trabalha tensões do corpo, pensando as esferas deste como matéria e representação. Entre suas variadas atuações, estão a Bolsa Funarte de Estímulo à Produção em Artes Visuais; residências artísticas como no JA.CA (BH), Ateliê Aberto (Campinas) e La Ene (Buenos Aires); participação do Programa de Exposições CCSP – Centro Cultural São Paulo; participação de exposições em instituições como Palácio das Artes, Museu da Pampulha, Centro Cultural Dragão do Mar, entre outras; e colaboração com série de desenhos para as revistas Piauí e Piseagrama.

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