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O abismo e a massa vazia

Por Luís Morici
Editoria Cláudio Santos Rodrigues e Sérgio Antônio Silva

A angústia da criação por vezes encarna na página em branco, real e concreta demais para ser atravessada. O vazio assombra – é fácil esquecer que ele não apenas se opõe à obra, mas a compõe. A escrita deixa isso evidente, mais que em outros modos de criação, já que a forma como os vazios operam nela dizem mais a seu respeito que a sua própria ligação com a palavra.

Essa ligação não deve ser ignorada, mas sabe-se que a escrita não é só um signo da fala. É um sistema construído a partir da imagem, e se a mesma escrita se dedica a significar o verbo, pode realizar também várias outras tarefas para gerar sentidos. Mesmo para ser verbal, a escrita precisa partir da imagem, por meio de uma série de sinais gráficos que se referem à fala. A depender do tipo de escrita, cada sinal pode significar uma palavra, uma sílaba, ou – como no caso do alfabeto – um som, sem prejuízo de mais uma gama de possibilidades reais e potenciais que vêm do universo das escritas da humanidade.

Voltemos, porém, a atenção para o alfabeto, aquela espécie de escrita que nos é mais familiar. As formas da tipografia têm significado na medida em que recitam os sinais do sistema de escrita com sua voz particular, cada tipo tem seu timbre e sotaque. E a escrita por sua vez contém em si signos do verbo. A relação aqui é particularmente clara, porque as letras do alfabeto têm em geral aquele significado fonético. Todo exemplo concreto de escrita alfabética deve guardar vínculo com o verbo, um nexo fundado na adequação das formas tipográficas, seja com ideais de caracteres individuais, seja com estruturas alfabéticas como um todo.

Ser signo do verbo é essência da escrita, mas se a escrita vai além deste signo, há ainda mais a compor essa essência. Escrita é imagem, mas observada sua plástica própria, não se trata de qualquer imagem. Há que se perguntar o que há de comum em cada exemplar de manifestação alfabética aplicada, além da referência óbvia ao próprio alfabeto.

Para procurar essa resposta, é preciso primeiro notar que a escrita se faz pelo duto. É o caminho da pena, que ao guiar a tinta preta sobre o fundo branco, cria a expressão. Entre esses opostos não há meio termo, assim como em uma escultura de mármore, em que só existe a pedra da obra criada e as lascas no chão. Escrever e inscrever não apenas aparentam, mas são palavras de mesma origem. A inscrição é o arranhar de uma superfície, que mostra a quem observa o que faz parte da figura – os sulcos – e o que não faz – a superfície que resta intacta. E toda forma escrita construída sem um duto real manteve também essa ideia. É o caso dos tipos móveis e das fontes digitais, que não vêm de um traço da mão – ainda que a maioria desses caracteres herdem tantos vestígios e façam tantas referências à caligrafia. A ideia de contraste absoluto está lá, entre pixels pretos e brancos e entre altos e baixos relevos dos tipos metálicos. Se há tantas técnicas e meios para se escrever – inscrições esculpidas, caligrafia, prensa e composição digital, para citar algumas – há um elemento em comum que ultrapassa todas elas. Esse comum é o preto sobre branco.

A mera intenção de escrita faz da superfície um vazio. O objetivo nunca é preenchê-lo, mas, sim, costurá-lo. É fundamental que o vazio se mantenha lá, mas que seja condicionado. A tipografia, que torna visível o sistema de escrita, é o nome desse condicionamento. Ela opera em todos os níveis da informação gráfica, desde a forma dos caracteres à configuração de uma página. E a ausência, o branco, é também matéria que compõe esse fazer. Assim, para se desenhar um tipo, pensar a contraforma é tão importante quanto pensar a forma. O olho do ‘O’ ou a abertura do ‘C’ são vazios e ao mesmo tempo são formas a moldar. À medida em que se amplia o âmbito da nossa visão, novas ausências essenciais vão surgindo. As formas entre as letras, que variam diante de uma numerosa possibilidade de combinação de caracteres, devem sempre ser planejadas. Assim como espaços entre palavras e entrelinhas, espaços e recuos dos parágrafos, até que se chegue às margens da página.

A escrita se vale do ritmo para expressar o discurso, e esse ritmo não se produz sem as devidas pausas. Elas estão por todo espaço escrito. Nem o duto das letras mais cursivas é contínuo, não é possível escrever sem que se tire a pena do papel por diversas vezes. Na escrita, o vazio da pausa, em seu devido lugar, é parte do sintagma, muito mais que na fala. Ritmo e pausa na fala são importantes, e em muitos casos têm valor e significado linguísticos. Mas, quando falamos, raramente deixamos evidente a separação entre palavras, e não podemos sequer relacionar à fala todos aqueles vazios visuais da escrita, a exemplo da contraforma das letras ou o hiato das margens, por não haver neles qualquer paralelo na voz.

A escrita e a tipografia, por sua própria natureza, demonstram de modo visível e esquemático o que é necessário para se criar qualquer tipo de informação: só se produz um texto, um discurso em público, uma célula viva ou uma galáxia quando se resiste à entropia. Existe em todo caso um sistema de signos possíveis, que podem ser entendidos como diferentes entre si e que obedecem a um padrão mínimo na sua estruturação. Caso contrário, há apenas caos.

Mas a própria informação, mesmo que ordenada, é desequilíbrio. O jogo dinâmico entre o preto e branco precisa vencer o seu oposto, seja ele o equilíbrio inerte ou o desequilíbrio aleatório. Não importa se no início era o nada, ou se era a desordem de tudo, nosso viver começa e é inteligível pelos signos. Ainda que se queira que no início fosse o Verbo, no início sequer era o nosso verbo. Este que é o nosso é necessariamente desequilibrado, ainda que nele floresça por vezes a harmonia. Basta pensar na beleza da página bem diagramada, ou a complexidade afinada que percebemos e interpretamos ao observar o funcionamento de um organismo vivo.

Já o vácuo penoso da página em branco, enquanto intocada, não comporta harmonia. Não há cosmos no caos. É que esse branco-tela, sobre o qual se cria, não é o mesmo que o branco-massa, que é matéria de criação. São sempre vazios, mas que mudam em toda sua essência, a depender do quando e de onde se encontram. Ainda assim, a matéria de ambos continua a mesma. É a superfície branca visível, não coberta pelo traço da escrita. Para se escrever não se foge do vazio. Ele é domado e moldado, o quanto possível, pela intenção daquele que cria.

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