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O estrangulamento das instituições democráticas pelo governo federal como estratégia de esvaziamento cultural

Editoria Stefano Ragonezzi

Os direitos culturais são parte inerente aos direitos humanos e estão elencados no artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, de onde se extrai que “toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de gozar das artes e de aproveitar-se dos progressos científicos e dos benefícios que deles resultam”. O Brasil, como signatário desse e de outros importantes instrumentos internacionais que contemplaram os direitos culturais, os assegura como garantia fundamental na Constituição da República: o direito à liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (artigos 5º, IX, e 215, §3º, II); o direito à preservação do patrimônio histórico e cultural (art. 5º, LXXIII, e 215, §3º, inciso I); o direito à diversidade e identidade cultural (art. 215, caput, § 1º, 2º, 3º, V, 242, § 1º); o direito de acesso à cultura e o Sistema Nacional de Cultura (artigos 215, §3º, II e IV, 216 e 216-A).

O Estado tem, portanto, verdadeiro dever de garantir o pleno exercício dos direitos culturais, restando evidente que se incluem entre esses o acesso às fontes da cultura nacional e a proteção às manifestações culturais. Apesar da preocupação do legislador constituinte em garantir esses direitos, é público e notório que o setor cultural vem sofrendo ataques de toda ordem pelo governo federal desde a última eleição presidencial.

O desmonte da cultura perpassa especialmente pela falsa narrativa de que os projetos culturais calcados na Lei Rouanet teriam como objetivo atividades imorais ou criminosas, sendo muito comum hoje em dia a proposital morosidade na análise desses projetos pela Secretaria Especial de Cultura. Além disso, sob a falsa pretensão de se criar uma “meta” para aprovação de novas propostas, o Governo Federal, por meio do Ministério do Turismo, editou a Portaria nº 24 de 22 de Dezembro de 2020. Contudo, essa norma representa, na verdade, um “teto” com expressiva redução na análise mensal de propostas culturais, que estaria limitada a 1.440 por ano, montante bem menor do que aqueles 4.492 projetos aprovados em 2020. Essa questionável medida afeta especialmente o regime de mecenato, mecanismo mais utilizado pelo setor e que concede a pessoas físicas e jurídicas a opção pela aplicação de parcelas do imposto de renda em projetos culturais previamente aprovados pela referida Secretaria Especial de Cultura.

E a desidratação do fomento cultural não se limita à redução sistemática de projetos. O governo federal também vem intervindo no mérito cultural do fomento, inclusive extinguindo editais a cargo da Agência Nacional do Cinema, a Ancine, por serem relacionados à diversidade de gênero. Ao tomar conhecimento de um desses abusos, o Ministério Público Federal conseguiu judicialmente, ainda em 2019, que o edital fosse retomado. Em razão desse episódio, o ex-ministro da Cidadania e deputado federal Osmar Terra atualmente é réu em ação de improbidade administrativa.

Nota-se também que há um explícito beneficiamento de setores alinhados com a ideologia do atual governo e uma declarada repulsa aos projetos ditos “de esquerda”. No início deste ano, por exemplo, a Secretaria Especial de Cultura reprovou o projeto de “Plano Anual de Atividades” do importante Instituto Vladimir Herzog, que leva o nome do jornalista assassinado na prisão durante a ditadura militar. Segundo o Secretário Especial de Cultura André Porciúncula, o projeto foi indeferido porque “a Lei de Incentivo à Cultura destina-se apenas ao financiamento de ações culturais ou planos anuais de instituições culturais”. Ainda segundo o secretário, “como o instituto não abarca apenas atividades culturais e também desempenha papel jornalístico, ele não poderia ser aprovado”. Ocorre que este mesmo projeto já vem sendo aprovado nos últimos dez anos, tendo como missão o resgate da história brasileira – especialmente da mais recente, ocultada pela censura da ditadura. Tal indeferimento, a propósito, se assemelha muito à diretriz imposta pelo nefasto Ato Institucional nº 5, que foi usado no regime militar para asfixiar movimentos e instituições culturais há 50 anos.

Esse mosaico de afrontas do governo envolve ainda a contínua indicação de nomes ideológicos e sem qualquer perfil técnico a cargos estratégicos nos órgãos que cuidam da política pública de cultura no Brasil. Chegou-se ao ponto de nomear um Secretário de Cultura (Roberto Alvim) que fez vídeo com referências explícitas a Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda da Alemanha Nazista de Adolf Hitler, antissemita e um dos idealizadores do nazismo. A postagem teve o objetivo de divulgar o Prêmio Nacional das Artes, que foi lançado horas antes da chocante declaração, por meio de uma live com a participação do presidente da República.

De outro lado, a desídia do governo na adoção de uma equilibrada política nacional de cultura foi tamanha que levou o Poder Legislativo, capitaneado por parlamentares de oposição, a entrar na roda para aprovar o projeto da Lei Aldir Blanc, destinando a Estados e Municípios recursos para serem usados em ações de socorro ao setor durante o caos instalado pela pandemia.

Fica evidente, portanto, que o modus operandi do governo federal vem a cada dia estrangulando as instituições democráticas e as políticas públicas de cultura, gerando um esvaziamento do fomento e do acesso à cultura no Brasil. Essa situação causa ainda mais prejuízos à sociedade durante este tenebroso período de pandemia, que deveria ter na cultura sua válvula de escape. E diante desse cenário de exaustão e desamparo governamental, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB – ingressou no dia 11/05/2021 com ação civil pública no Distrito Federal, questionando o Poder Executivo sobre danos ao patrimônio público e social, violação de garantias fundamentais do cidadão e acesso à cultura. 

Fato é que o setor cultural segue vivo, ainda que respirando por aparelhos e cercado por um turbilhão de fake news disseminadas a torto e a direito por todo o país. Resta torcer para que a balança da justiça continue a pender para a Democracia, este admirável regime que garante liberdade de expressão até mesmo aos seus críticos mais ferrenhos, permitindo inclusive a obscura crença em terraplanismo, vacinas com chip e transformação de humanos em jacarés.   

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