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Garrafas ao mar da memória: palavras sobre patrimônio cultural, tempo e escrita

Liana Portilho
Alguém já confessou, do ponto alto de sua solidão, que escrever é como lançar mensagens numa garrafa ao mar. Nenhuma segurança sobre o paradeiro das palavras escritas, do seu destino, sequer certeza de um destino – de um receptor, de um leitor. Mesmo com fundada chance de viver um naufrágio infinito, a garrafa lançada ao mar ainda guardaria palavras, ainda guardaria sentidos, significantes e significados incontidos.
A palavra escrita pode resistir, então, até a um naufrágio nauseante, repetitivo e inconclusivo. Uma vez inscrita e guardada na cripta de vidro – imune a ventos, ondas e tempestades –, a palavra é um sentido em estado de potência permanente. Mas pode também não ser nada, pode ser um rien, um nothing; anything else.
A garrafa lançada ao mar é também um continuum de esperança de “um dia não ser mais sozinha, não”, parodiando Vinícius: a esperança de ser palavra lida, palavra recebida, feita viva, em que se declara “marido e mulher” escritura e leitura – faces de uma indissociável moeda. Nenhuma mensagem é enunciada para não chegar ao seu destino.
Do outro lado dessa banda infinita, a palavra em oralidade, a palavra (sub)escrita, pronunciada no compasso do vento e do tempo que mensura o vento, nunca é nada. É sempre um algo dito ou, por dito, ainda a dizer. É palavra encorpada pela voz, que ecoa ou que encerra assunto, quando não se tem mais nada a dizer, embora já se tenha dito.
Palavra é lavra, é erupção significante à espera de um farol a jogar-lhe luz, a dar-lhe potência. A palavra é sem tempo – ela escoa posto que ecoa. A palavra é a prova da verdade contida nos versos de Murilo Mendes – “não é o tempo que passa, é a gente que passa pelo tempo” – porque a palavra é assim, oralidade dissonante. Ainda que fechemos os ouvidos a ela, em algum lugar, ela ainda reside, resiste. Escrita, ela é potência latente ou faísca ateadora de múltiplas sinapses desencadeadas pela retina.
As palavras – em oralidade ou em escrita – resistem à implacável passagem do tempo. Ao revés, as palavras são o mais completo instrumento para a marcação do tempo da passagem. Com palavras, estabelecem-se a medida das horas, dos dias, das semanas, dos meses, dos anos. Com palavras, dá-se a vida, mas, também, declara-se a morte. Com palavras fixam-se costumes, estabelecem-se regras de convivência, sentenciam-se o bem e o mal. Com palavras, separam-se e unem-se pessoas. Com palavras, fere-se, mas é também com palavras que se tem a cura. Imunes ao tempo, as palavras o precedem e o marcam com precisão suíça.
Palavra e memória aqui se encontram – associação entre escrita/oralidade e patrimônio material/imaterial. A memória não é instrumento de se guardar palavras: palavras são o veículo por excelência da memória. Hábeis no domínio do tempo, podem empurrá-lo à frente, mas também podem registrá-lo para trás. Pode-se até ter memória que não seja de palavra (cheiros, amores, sensações, emoções, sentimentos, imagens, desencontros), mas não há palavra que se registre sem elo com alguma memória.
Derrida, em seu instigante “Che cos’è la poesia?”, aborda o poema e a palavra sob a perspectiva da economia da memória (“um poema deve ser breve, elíptico por vocação, qualquer que seja a sua extensão objectiva ou aparente”) e sob a perspectiva a do coração, assim entendida como “uma história de ‘coração’ poeticamente envolta no idioma ‘aprender de cor’”. To learn by heart, dar-se-ia “num trajecto único de múltiplas vias”, ou em outras palavras, num dois em um: “o poético, digamos, seria aquilo que desejas aprender, mas do outro, graças ao outro e sob ditado, de cor: imparare a memoria.”
A palavra em oralidade é um real-existente. A palavra escrita é um real-a-existir, à luz do arcabouço figural llansoliano, mensagem por vir sempre à espera de um outro a lhe conferir um sopro de vida. A palavra oral vive plenamente ainda que lançada ao vento e por ele embalada, solitariamente. Se diante de um outro prescinde de olhos, bastam-lhe ouvidos para ouvir. Já a palavra escrita tem que ser recolhida, cuidada, significada pelo olhar de um olho-outro para transcender-se além do sujeito que a enuncia. E caso condenada a um estágio de repouso, no suporte de alguma branca página, ainda produzirá ressonâncias, ecos no vácuo da garrafa-sujeito que, ao inscrevê-la, ressignifica a sua própria condição humana e a sua memória, no embalo.
Falada, a memória ensina, transmite-se e, ao mesmo tempo, guarda, retém. Escrita, a memória guarda e ao mesmo tempo cala: no silêncio se apreende a palavra escrita, quando lida.
Mas é na Poesia que se precisa a potência elíptica e paradoxal da palavra, que “liberta as almas”, “com letras se elabora” e “dos venenos humanos sois a mais fina retorta: frágil, frágil como o vidro e mais que o aço poderosa!”:
– e estais no bico das penas,
– e estais na tinta que as molha,
– e estais nas mãos dos juízes,
– e sois o ferro que arrocha,
– e sois barco para o exílio,
– e sois Moçambique e Angola!
Ai, palavras, ai, palavras,
ídeis pela estrada afora,
erguendo asas muito incertas,
entre verdade e galhofa,
desejos do tempo inquieto,
promessas que o mundo sopra…
E são a um só tempo phármakon e poison, como Ele desconfiou, o super-Outro, que intuiu, bem antes de Cazuza, que algumas vezes as ideias não correspondem aos fatos.
Nesse itinerário entre origem e destino, nesse ir-e-vir infinito, em elipse, a mensagem veiculada pela palavra transita, seja oral ou escrita, assim como o simbólico que nos constitui – veiculado entre o patrimônio material e imaterial –, modula-se. Seja qual for o itinerário, a origem ou o destino, haverá sempre a necessidade do verbo inicial, do impulso que desencadeará toda ação: o firmar o papel sobre a mesa, a aposição da pena sobre ele, a inscrição, a escrita, a garrafa, o vazio entre o papel e a rolha e, com alguma sorte, ao final, na areia de alguma praia, algum humano abrirá a garrafa, o seu papel e nascerá um jornal: uma mensagem e o desconhecido que simboliza.
Lança-se aqui o desafio: fazer da memória, palavra; da palavra, ação, construindo-se reflexões sobre os desvãos da memória, das letras, do patrimônio cultural e de sua preservação. Vida intensa ao novo Letras!
Referências
DERRIDA, Jacques. Che cos’è la poesia? Coimbra: Angelus Novus, 2003. [Trad. Osvaldo Manuel Silvestre]. pp. 2-10.
[1] MEIRELES, Cecília. Romance LIII ou Das Palavras Aéreas. In: Romanceiro da Inconfidência. São Paulo: Global Editora, 2013.
Sobre a autora
Liana Portilho é editora de Patrimônio Cultural do Letras. Foi Presidente do Instituto Estadual de Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais – IEPHA/MG (2007-2008), é mestre em Direito da Cidade (UERJ), doutoranda em Direito (UFMG), advogada e Procuradora do Estado de Minas Gerais.

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