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O Vídeo de Benny e os Deslocamentos de Michael Haneke

Por Rafael Ciccarini
O cineasta Michael Haneke nasceu em 1942, Munique, na Alemanha, porém, trabalha e reside em Viena, na Áustria, desde a sua infância – daí ser considerado pela mídia, com frequência, um diretor austríaco. Sua obra compreende um extenso trabalho para a televisão (totalizando oito filmes e dois episódios de uma minissérie) ao longo de quase vinte anos, e a partir do ano de 1989, o diretor passou a produzir para o cinema, onde dirigiu e roteirizou, até o presente momento, doze filmes.
É frequente no meio acadêmico e crítico a abordagem do cinema de Michael Haneke pelo viés dos estudos da comunicação, em especial a relação que o diretor estabelece com o universo midiático ou do cinema Hollywoodiano “de entretenimento”, conforme suas palavras. Especialmente em seus primeiros filmes, a relação – em geral acrítica – da sociedade capitalista com as imagens provenientes do universo de consumo eram seu pano de fundo (essas questões sempre estiveram aliadas ao seu olhar crítico para a sociedade austríaca do pós-Primeira Guerra Mundial).
Haneke frequentemente convoca o fora de campo, desloca ou interrompe a catarse em seus filmes. Em uma primeira instância, podemos dizer se tratar de um artifício típico da narrativa moderna. É constante a denominação de seu cinema como uma obra composta por uma “estética da crueldade” (CAPISTRANO, Tadeu, 2011, p. 9), na qual a violência está frequentemente no centro da questão. No entanto, após mergulhar e revisitar seus filmes, constatou-se que, sim, é evidente que a temática da violência é uma constante, porém, por sucessivas vezes, os eventos mais traumáticos (podemos chamar de catarses na narrativa) ocorrem no extracampo.
Ao afirmar que Haneke convoca o extracampo, a intenção é inferir que esse deslocamento de um evento catártico para fora do campo tradicional onde tais ações tendem a acontecer leva o espectador a uma espécie de desvio, ou seja, seu centro de atenção é movido para outro espaço (onde ele não terá acesso visual ao acontecimento).
Uma das explicações possíveis para esse artifício diz respeito à intenção de Haneke de despertar a consciência crítica do espectador através de um recurso de afastamento, podemos dizer, brechtiano, no qual o autor leva a ação violenta de seus personagens a um território externo ao tradicional espetacular. Na ocasião da primeira exibição de seu filme mais recente, Happy End (2017), Haneke afirmou: “Nos meus filmes sempre há tomadas longas. Não gosto de mostrar a violência em primeiro plano. Para mim, a distância é a maneira mais correta de mostrá-la”.
Uma das cenas mais marcantes de ápices de violência ganharem o fora de campo está no filme O Vídeo de Benny (Benny´s Video, 1992). A obra retrata um jovem de cerca de quinze anos obcecado pelo universo das imagens. Em seu arsenal (ele possui uma série de câmeras que registram sua janela e seu quarto, além de vídeos-cassete e uma ilha de edição) assiste constantemente às imagens da morte de um porco por uma arma de pressão filmadas por ele na fazenda de sua família. Um dia Benny leva uma jovem que acabou de conhecer para sua casa e, após discutirem acerca da morte a partir dessas imagens, ele mostra a arma para ela e acaba atirando na garota. Do primeiro tiro ouvimos apenas o barulho e a jovem cai imediatamente fora do espectro da câmera do filme e passa a ser registrada pela câmera do personagem. Agonizando, ela se arrasta para o fora de campo, onde receberá mais dois tiros, sendo o último fatal.
Apesar desse filme ter sido feito há vinte e cinco anos atrás, é espantosa sua atualidade. Ao abordar o fascínio desse personagem pelas imagens, Haneke parecia prenunciar o futuro de nossa sociedade, hoje totalmente mediada – e dependente – por esse universo. Em entrevista concedida ao crítico francês, Serge Toubiana2, o diretor diz: “Nós vemos o mundo através da mídia, logo, corremos o risco de acreditar que somente existe uma realidade pela via midiática”.
O Vídeo de Benny expõe essa relação de subversão da realidade de forma bastante pungente. Apesar de não haver uma preocupação em nos nortear acerca das intenções do personagem, é possível concluirmos que ao desviar a morte para o fora de campo, Haneke não só provoca o espectador habituado à espetacularização desse tipo de evento, como sugere que, ao tornar o ato imagem (ela cai dentro da filmagem de Benny), ou sua morte ganha uma conotação mais realística, ou ela perde sua força, visto que adentra o território cinematográfico da ilusão. Cabe ao espectador tirar sua conclusão.
O filme termina de forma obscura, como havia começado. Inicia-se em um vídeo de Benny (a cena da morte do porco) e termina em uma câmera de vigilância que registra o protagonista e seus pais no corredor de um distrito policial. Fica para o espectador o sentimento de um mundo assolado por imagens e o desafio de compreender se tratam de uma diegese (universo compreendido pelo filme) ou da realidade, ou, quem sabe, da terrível fusão desses dois universos.
 
Referências:
1. “O campo definido por um plano de filme é delimitado pelo quadro, mas acontece, frequentemente,
que elementos não vistos (situados fora do quadro) estejam, imaginariamente, ligados ao campo, por um vínculo sonoro, narrativo e até mesmo visual” (AUMONT, Jacques e MARIE, Michel, 2003, p. 132).
2. Disponível em http://brasil.elpais.com/brasil/ 2017/05/22/cultura/1495453383_017719.html.

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