Nesta edição apresentamos a gestora cultural Suely Machado, que entre outras importantes funções artísticas, desdobra-se na administração de seus empreendimentos. Com vocês um case de sucesso, muito amor, luta, aprendizados e resultados. Vale a pena conhecer.
Por Suely Machado
Editoria Solanda Steckelberg
Escrever tem sido um modo de refletir sobre o fazer alucinante em busca de condições para exercitar o prazer de criar.
Ideias e assuntos não têm hora nem lugar para brotar, ou você registra, ou escapam. Assim como as ideias, atitudes e decisões definem vida, mudam percursos, transformam realidades. Foi assim quando, no desejo de ser bailarina, unido ao ideal de transformar vidas e colaborar com o desenvolvimento humano através da educação do corpo, me tornei empresária e gestora num caminho inusitado, jamais imaginado, mas com uma força avassaladora, que definiu minha vida.
O convite para escrever sobre o desafio da gestão cultural me obriga a revisitar essa trajetória, contando minha experiência como Gestora de um empreendimento que inclui: um Centro de Formação em Dança (Primeiro Ato Centro de Dança), um grupo profissional com linguagem híbrida e contemporânea (Grupo de Dança Primeiro Ato), um projeto artístico/social (Projeto Dançando na Escola) – realizado nos Municípios de Belo Horizonte e Nova Lima –, e o Espaço de Acervo e Criação Compartilhada, um espaço multiuso que abriga projetos como o “Garimpo das Artes” e o “Tecendo Encontros”.
Intitulei essa Experiência de “Aventura Planificada”.
Uma aventura, porque o caminho é inusitado, sem receita, com uma surpresa a cada passo; e planificada, porque exige dinamismo e prática da presença, ou seja, estar em si e consigo, aqui e agora, com foco e atenção, gerando concentração e objetividade.
Trabalhar ao mesmo tempo em todas essas áreas afins é formar uma rede de ações que se completam e, paradoxalmente, exigem pensamentos diversos, distintos e, às vezes, até antagônicos.
Criar, produzir, diversificar e permanecer, uma ambiguidade constante. Abrir e fechar.
Estar atento aos caminhos, sem perder o foco, sem se deixar levar pelas novidades.
Criar estilo e não seguir tendências.
Acreditar e seguir pela vertente do essencial.
Recolher sempre que necessário, mas sem isolamento. Sem se desconectar do seu tempo e lugar. É preciso estar atento aos sinais que vêm de dentro. Exercer a capacidade de sintetizar e de ter fidelidade ao objetivo proposto.
Na gestão de um Centro de Formação, o desejo de dançar está imbricado à paixão pela educação, pelo desenvolvimento emocional, corporal e artístico, o que me levou à constatação de ser uma educadora.
O amor insaciável pela oportunidade de participar, por meio da dança, da transformação de crianças e adolescentes, praticando a consciência de si e do outro, com foco, disciplina, harmonia e prazer, incentivando o pensamento crítico, estruturado pelos conhecimentos da história do mundo, da dança e da arte, trazendo consciência do seu tempo e lugar. O objetivo é acolher o conflito saudável e natural desses jovens em constante transformação, valorizando suas características individuais, suas potencialidades, reconhecendo suas qualidades e colaborando na autoaceitação de suas dificuldades. Incentivar o exercício da técnica como ferramenta para a liberdade de criar, com segurança e autonomia, com a coragem e a inquietude necessárias para evoluir na formação do artista cidadão.
Mesmo que essas ações sejam construtivas e a dinâmica flua bem com os alunos, elas incluem direta ou indiretamente todo o núcleo familiar. Deparei-me, ao longo dos anos, com as consequências, nem sempre simples e harmoniosas, causada por essas transformações. O que transforma uma pessoa traz um efeito dominó para os outros. Às vezes extremamente positivo, outras vezes mexe com a estrutura familiar, abalando a zona de conforto de certos comportamentos, atingindo princípios e valores. Nesse caso, exige-se calma e elegância para estarmos preparados para conciliar pontos de vista, na certeza de que não estamos isolados em nossas intenções.
Trabalhar crianças e adolescentes é uma tarefa conjunta com a família, a escola, a cidade, o país, com suas inseguranças e incertezas, seus altos e baixos, incluindo economia e política. Afinal, arte e educação não são consideradas prioridades, apesar de serem essenciais. Uma criança que cresce consciente de seu corpo, com disciplina, prazer e harmonia, será com certeza um adulto mais saudável, feliz e produtivo.
Dança é arte, educação, saúde, direito, economia, oportunidade e comunicação.
Já a direção e gestão de um Grupo Profissional de Dança, além de contraditório, é um mergulho no mistério e na singularidade de cada ser humano. Nesse caso, o desafio é reunir condições para a formação do bailarino, no caso do Primeiro Ato, que será, além de intérprete, também criador. Abrir espaço para a prática de processos colaborativos que apresentem resultados, mesmo que, a princípio imaturos, com propriedade, trazendo consigo marcas de bagagens pessoais e artísticas, criando assinaturas e fortalecendo estilos.
Criação gera realização que transforma, reinventa, evolui. Conduz novamente para o vazio, de onde se constrói, e nos atrai para o abismo, o salto no escuro, a folha em branco que preenchemos sem nunca saber aonde vamos chegar. É aí que está o desafio, a adrenalina, o prazer de ultrapassarmos os limites e vencermos os obstáculos. Um exercício que exige coragem, determinação e clareza de objetivos.
Tudo isso somado a incertezas políticas, econômicas e sociais, em um país de dimensões continentais, que lida com as desigualdades como um detalhe, sem se dar conta das consequências violentas, causando uma anestesia em nossas percepções.
Não conquistamos ainda, com toda a competência dos artistas no Brasil, uma legitimidade da profissão, um reconhecimento como empreendedores de um setor que gera renda e empregos, que qualifica trabalhadores, criando oportunidades e uma economia realmente criativa.
Com essas constatações, reflexões e sentimentos de dever de cidadã, e por minhas convicções, me veio a necessidade e oportunidade de gerir e criar o projeto “Dançando na Escola”. A iniciativa partiu da diretora da Escola Estadual D. Augusta, no Aglomerado da Barragem de Santa Lúcia (Morro do Papagaio), que posteriormente expandimos para o Bairro Jardim Canadá, em Nova Lima (MG). Nesse caso, além de todos os desafios anteriores, o deste empreendimento foi o de aprofundar na descoberta de como sensibilizar, tocar, acolher e tornar possível outro resultado além da indignação e da violência.
Ter a dança como opção de vida, como possibilidade de futuro, de vir a ser aceito e ser considerado, por si mesmo e pelos outros, um cidadão, com direitos e deveres. Ser reconhecido como semelhante independente das suas condições. Na dança o desafio é de se superar a cada dia. As conquistas dependem única e exclusivamente do desejo de vencer limites, que são o próprio corpo e que nunca se repetem, numa sucessão de novas descobertas e de novos desafios a vencer, formando assim uma dinâmica constante de movimento, silêncio, reflexão e ação, como em todo processo que gera crescimento e autonomia.
Na dança, não interessa de quem você é filho, sua etnia, suas condições financeiras. É você com suas conquistas e desafios, que são o próprio corpo. Um trabalho solitário e, por isso mesmo, essencial e meditativo.
Nesse caso, o desafio é ainda maior no que concerne aos preconceitos. Com as meninas, OK, mas os meninos são perseguidos pelos mais velhos, na própria comunidade, com o ainda jurássico preconceito de que homem que dança é homossexual, que dança é arte para as meninas, que não tem como sobreviver de arte e etc. Já conhecemos essa ladainha.
Mas felizmente, também aqui, já fechamos a cadeia de produção. Temos exemplos de meninos e meninas saídos do projeto “Dançando na Escola” que se tornaram bailarinos profissionais, professores de dança, inclusive do próprio projeto, e também profissionais de outras áreas artísticas, de comunicação, gestores de outros projetos e ideias criativas.
Por último, e não menos importante, a gestão do “Espaço de Acervo e Criação Compartilhada”, que abriga nosso patrimônio dos 35 anos de história na arte brasileira.
Figurinos, cenários, objetos de cena, material de iluminação e sonorização, biblioteca, cozinha e um espaço de cena, onde acolhemos 90 crianças do Bairro, (um braço do “Projeto Dançando na Escola”, como já citei acima). Esse espaço, um galpão alugado no Bairro Jardim Canadá, em Nova Lima (MG), é aberto para residências artísticas, espetáculos de dança, música, teatro, oficinas, eventos e projetos, como o “Garimpo das Artes” – um encontro de músicos, bailarinos, artesãos, escultores, artistas plásticos, ceramistas, gourmets e comunidade do bairro – e o projeto “Tecendo Encontros”, que propõe encontros com artistas de outras áreas, cidades, estados e países, para uma troca de informações e construções colaborativas.
A paixão pelo homem e suas contradições, o amor pela vida e a crença de que o olhar e a delicadeza nos salvam da loucura geraram, em mim, uma dança que chegou harmonizando meus conhecimentos de música, canto, literatura, poesia e a adolescente atleta que fui.
Minha formação em Psicologia (Bacharelado e Licenciatura) e Pedagogia do Movimento para o Ensino da Dança, aliada aos cursos de direção teatral, gestão e economia criativa, me deram as ferramentas para seguir nesse caminho sem volta, me reinventando num eterno recomeço, na certeza de nada saber, porque a vida segue nos surpreendendo a cada passo.
A arte é a saúde da alma, o alimento do espírito e a educação do corpo que pensa e atua, colaborando para o desenvolvimento humano.
Um movimento em processo e em progresso na certeza de sua simplicidade e, paradoxalmente, de sua complexidade. Sem linearidade e, ao mesmo tempo, traçando um caminho, construindo uma linguagem, aceitando desafios e procurando ultrapassá-los.
Gestão cultural é gerir dúvidas e incertezas.
Quanto mais realizações, mais perguntas. Não somos nunca os mesmos. Modificamos e somos modificados a cada ação e a cada um que interage nesse jogo.
Apesar da clareza desses princípios, da missão, dos objetivos e do desejo, não existe receita, não existe um caminho previamente traçado. O traçado se constrói no dia a dia, com traço firme, confiando na intuição e nos sinais que se apresentam e na necessidade de estarmos atentos ao mundo que nos rodeia, ao tempo que se vive e ao modo de vida que se escolhe.
Tudo pode ser. É o “como” que fará a diferença.
Nascer e morrer a cada projeto, a cada nova tentativa de existir num País que não reconhece a arte e o artista como essenciais.
Hoje estamos vivendo uma mudança radical de valores, costumes e crenças, num grande salto para o desconhecido. A velocidade e a constante renovação das ferramentas de comunicação nos exigem um mergulho no universo da infância. Somos todos crianças diante do desconhecido. Precisamos de referências e apoios para seguir cambaleantes no passo inseguro desse novo pensamento. Faço parte de uma geração migratória da era analógica para a era digital e só muita observação e aprendizado com as crianças podem me levar aos valores essenciais da contemporaneidade. Desapegar sem pudor dos métodos e maneiras de construir, conhecidas, que nos parecem óbvias. Abrir os canais da percepção para receber novas maneiras de atuar e observar, sem cessar, no entorno, sem perder os princípios, atentos à ética, à educação, à delicadeza e à elegância emocional. Escolhas de que não abro mão.
Agradeço de coração à Solanda Steckelberg por esta oportunidade de escrever sobre meu ofício e, assim, revisitar meus porões, abrindo janelas, arejando as ideias.
A todos que, por acaso, tiveram a paciência de ler e têm a tão rara capacidade da escuta, saibam que esse foi apenas “um caminho” e não “o caminho”. Uma maneira de conseguir, ao mesmo tempo, me desafiar, criar meus filhos, viver junto a alguém que aprendi a amar, cultivar boas relações por onde passei e exercer meu ofício. Afinal, a vida é pra ser vivida com prazer. Temos a obrigação de tentar ser felizes neste mundo tão diverso e às vezes tão cruel. Aceitar, confiar, entregar e agradecer.