Por Gabriel Borges Vaz de Melo*
As artes performáticas, assim como outras práticas artístico-culturais, existem como forma de comunicação, expressão e valorização cultural há milhares de anos. A música é umas das mais primitivas dessas práticas. Particularmente, porém, ela começou a ser comercializada como bem de consumo somente a partir do século XX. Desde então, o mercado musical vem se transformando rapidamente. Somente no terceiro milênio, é possível apontar episódios marcantes e sucessivos em relação à fruição da música, a saber: o surgimento dos programas de compartilhamento e downloads de arquivos, a crise nas vendas de álbuns, a violação de direitos autorais, a digitalização dos catálogos de músicas das grandes produtoras e corporações e, mais recentemente, a ascensão das plataformas de streaming e assinaturas.
A criação do Napster, em 1999, representa um marco dessas mudanças e da digitalização do consumo de música. Ele incentivou o avanço de outros serviços de downloads em rede P2P (peer-to-peer) que permitiram o compartilhamento massivo de músicas entre usuários. Esse fato marca um importante período no qual se agravaram os problemas da indústria fonográfica, como os retornos financeiros dos artistas e o que se considera “pirataria”. Porém, outras hipóteses sugerem que a crise, supostamente provocada por essa última, foi, na verdade, uma queda de faturamento e importância das grandes produtoras ou majors. Desse modo, as plataformas streaming surgem, nesse contexto de crise, como alternativas tanto aos serviços de compartilhamento ilegais como de downloads e compras legais.
Um dessas plataformas, o Spotify, lançado em 2008, tem se destacado por conquistar, em curto espaço de tempo, uma significativa parcela do mercado mundial, inclusive no Brasil, disponível desde 2014. Num contexto de escassas fontes de dados sobre o consumo de bens culturais no Brasil, o uso de mídias e plataformas digitais torna-se uma oportunidade para os estudos de Economia da Cultura. Especificamente em relação à música, o Spotify é um dos serviços cuja análise dos dados pode trazer importantes dimensões sobre o consumo desse segmento, assim como uma amostra para o consumo digital no Brasil, ainda que esse ainda seja recente e restrito à pequena parcela da sociedade.
A partir de duas fontes principais de playlists do Spotify, uma de nível nacional e outra municipal, analisei o consumo de música na plataforma por gêneros musicais. A primeira fonte considerou as “paradas” ou top 200 músicas mais reproduzidas no Brasil disponível no domínio Spotify Charts. A segunda considerou playlists do domínio Every Place at Once, desenvolvido por Glenn McDonald conjuntamente com o Spotify (MCDONALD, 2013). Em geral, a página conta com cerca de 100 listas de cidades brasileiras, variando de acordo com o nível de atividade ou usuários do Spotify em cada local. As playlists contêm músicas bastante reproduzidas em cada local, mas que, em algum nível, apresentam distinção em relação àquelas reproduzidas em outras cidades.
Assim, o processo de estruturação dos dados passou por uma primeira etapa de construção de um script ou código de leitura dessas playlists para uma posterior busca de informações sobre os artistas e músicas na API do Spotify, a Spotify Web API (SPOTIFY, 2014). APIs (Application Programming Interface ou Interface de Programação de Aplicativos) são rotinas de programações estabelecidas pelos serviços que possibilitam a extração de seus dados e de determinadas atividades dos usuários. Entre diversas informações disponíveis, aquelas mais consideradas foram: total de seguidores e popularidade dos artistas, gêneros e popularidade das faixas.
Para o Brasil, destacou-se a preponderância dos gêneros pop e sertanejo universitário, sendo grande parte das músicas do primeiro estilo de origem internacional. Além desses, a Figura 1 apresenta outros gêneros menores, que indica que há um consumo expressivo destes também, ainda que distante do nível de consumo do pop e sertanejo. Pelas playlists municipais, observei que esses padrões de gêneros diferem para as cidades brasileiras.
Nos meses recentes, nota-se ascensão do número de streamings de funk, quase chegando a níveis do sertanejo e do pop. Esse comportamento pode estar associado à produtora de audiovisual KondZilla, responsável por lançar diversos videoclipes de MCs mensalmente e com grande alcance de visualizações no YouTube. Inscrito, desde 2012, no YouTube, o canal acumula mais de 13 milhões de inscritos e mais de 6 bilhões de visualizações (valores de maio de 2017).
Através das músicas mais escutadas no Brasil, em nível nacional, seria razoável supor que os usuários do Spotify seriam predominantemente ouvintes de pop, principalmente internacional, sertanejo universitário e funk, sendo os dois primeiros historicamente de produção em massa e com maior apelo comercial. A plataforma digital facilita ainda mais a inserção desses gêneros que já possuem maior espaço nos meios tradicionais de consumo de música tais como rádio, televisão e formatos físicos. Porém, a mesma facilidade de acesso pode ser conquistada por artistas de outros estilos e, pela evidente diversidade da produção musical do país, obviamente, suspeita-se que o nível nacional não reflete o consumo digital como um todo. As informações obtidas e desagregadas para algumas cidades comprovam isso.
Observa-se que determinadas capitais possuem um gosto específico para um ou dois gêneros, enquanto outras consomem músicas de estilos variados. Assim, elas se dividem em dois grupos de padrões de consumo. Aquelas de padrão diversificado, tais como: São Paulo (SP), Belo Horizonte (MG), Manaus (AM), Belém (PA), Florianópolis (SC) e Brasília (DF). E, de consumo gêneros específicos: Rio de Janeiro (RJ), Recife (PE), Porto Alegre (RS), Salvador (BA), Fortaleza (CE), Goiânia (GO).
Analisando-se as playlists das outras cidades, confirma-se que, além da prevalência do sertanejo, existe uma forte proximidade e correlação espacial de gêneros. Dentre as 108 cidades coletadas em novembro de 2016, em 86 predominam músicas do sertanejo universitário, em sua maioria, cidades das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, onde o funk também possui um consumo considerável. No Sul, excetuam-se as capitais Porto Alegre e Florianópolis. No Sudeste, o sertanejo é menos escutado nas cidades dos estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo. No Nordeste e nas maiores capitais do Norte, seu alcance mostra-se limitado. Nas cidades do Nordeste é onde menos se consome sertanejo e funk. Nessas, principalmente, o axé, o forró e a MPB dividem o consumo do público ouvinte.
O consumo de música digital descrito pelas playlists do Spotify apresenta modelos tanto de sustentação do tradicional quanto de substituição deste pelo massivo. O massivo seria representado pelos gêneros tipicamente com maior apelo mercadológico como o sertanejo universitário, o pop, e mais recentemente, o funk. De maneira geral, contempla-se todo o universo multiculturalista presente na música brasileira, com influências e histórias diversas. Sendo assim, é possível dizer que existe uma regionalização dos gostos no território brasileiro, confirmando que existem relações próximas de alguns gêneros com a identidade cultural das cidades onde são consumidos, enquanto outros parecem se associar a processos de produção massificados e com maior ênfase mercadológica.
Por fim, ressalta-se a possibilidade de se construir outros indicadores robustos com os dados disponibilizados pela API do Spotify (Spotify Web API). O acesso a eles garante a elaboração de indicadores a um baixo custo e com representatividade amostral apenas verificada em coletas censitárias. Assim sendo, no campo da Economia da Cultura, onde as mudanças têm ocorrido de forma vertiginosa em virtude do processo de digitalização e, onde não há abrangência nem periodicidade na construção de bancos de dados secundários, o acesso às APIs deve se tornar uma importante ferramenta de dados.
* Mestre em Economia – CEDEPLAR/UFMG. E-mail: gabrielvazdemelo@gmail.com
Referências Bibliográficas
MCDONALD, G. Every Place at Once. 2013. Acesso em 8 de nov. 2016. Disponível em: <http://everynoise.com/everyplace.cgi>.
SPOTIFY. Spotify Web API: Version 2.1. Effective as of 16 December 2014. 2014. Acesso em 24 de ago. 2016. Disponível em: <https://developer.spotify.com/web-api/>.
SPOTIFY. Spotify Charts. 2016b. Acesso em 23 de ago. 2016. Disponível em: <https:/-
/spotifycharts.com/regional>.