Por Fernando Rabelo
Editoria Marcia Charnizon
Neste artigo eu gostaria de fazer uma abordagem sobre os registros do cotidiano de qualquer um de nós que, nos dias de hoje, podem ser vistos nas redes sociais ou podem ficar armazenados em excesso nos nossos computadores, smartphones e tablets. A nossa maneira de nos relacionarmos com nossas imagens mudou. E o procedimento de arquivamento digital também diz muito de como olhamos para nossas fotografias. Que necessidade temos delas? O que elas são? Memórias? Ainda temos tempo para recordações?
Os álbuns de família tradicionais funcionam como criadores de narrativas de escritas de si. As fotografias existentes nos álbuns instigam a narração de histórias. Um álbum é um espaço de arquivo e compartilhamento. Historicamente era mostrado para nossos amigos à medida que chegavam a nossas casas. É importante lembrar que, com o auge do analógico, os laboratórios entregavam as cópias em papel e pequenos álbuns com folhas plásticas, do tamanho das imagens, para serem montados pelos clientes. As fotos sempre vinham soltas e o ato de montar era e é uma tarefa do cliente. Mostrar as fotos sempre esteve na natureza dos álbuns, na sua função de existência, que o mundo virtual só potencializou. Se antes mostrávamos para alguém específico, presencialmente, hoje, com a publicação destas imagens nas redes sociais, este gesto ficou despersonalizado. Não temos controle de quem nos vê. A não ser pelas curtidas.
O escritor norte-americano Paul Auster, no livro intitulado “O Inventor da Solidão”, recorda, analisa e narra histórias. É interessante observar que na primeira página do livro encontramos uma fotografia: um retrato familiar, sem legenda, nem explicações. Registramos a imagem e damos início à leitura. No primeiro instante não temos informações a seu respeito. No decorrer da narrativa, ela revela segredos. “De volta para minha casa, examinei aquelas fotografias com uma fascinação que beirava a mania. Achei-as irresistíveis, preciosas, o equivalente de relíquias sagradas. Parecia que elas poderiam me dizer coisas que eu nunca havia sabido, me revelar alguma preciosa verdade oculta, e estudei cada uma delas com toda a atenção, assimilando os menores detalhes, a sombra mais insignificante, até que todas as imagens se tornassem parte de mim. Eu não queria que nada fosse perdido”, escreveu Auster.
A minha grande preocupação é que as fotografias digitais de família estão se perdendo, as pessoas não fazem mais cópias em papel, tudo fica guardado nos computadores, milhares delas desaparecem para sempre quando algum problema surge no armazenamento. É urgente que preservemos nossas imagens “nas nuvens”, ou acabaremos perdendo cada vez mais os registros familiares, tão importantes para nossas histórias. A fotografia contribui na nossa construção biográfica.
Algumas fotografias preservadas pela minha família me marcaram muito, como a da partida do meu pai para um longo exílio de quinze anos. O pesquisador iconográfico Vladimir Sacchetta resumiu assim essa foto. “Essa imagem, clicada por Kaoru Higuchi, fotógrafo do Jornal do Brasil, registra o momento da partida para o exílio de José Maria Rabêlo, no Aeroporto Santos Dumont, no Rio, cercado pela companheira Thereza e a penca de filhos, todos com a expressão de tristeza e medo. Na minha longa trajetória de pesquisador e editor de fotografia, a considero uma das mais reveladoras e icônicas, entre as milhares que passaram pelas minhas mãos. Começava ali uma longa noite que durou vinte e um anos”, escreveu Vladimir Sacchetta. As memórias da minha tenra infância são fragmentos de luz que me acompanham pela vida, e estão registradas no que eu costumo chamar de “película do cérebro”. Fui testemunha ocular de dois golpes militares, no Brasil, em 1964 e no Chile, em 1973 quando, do telhado da minha casa, presenciei o bombardeio do Palácio de la Moneda. Em 1976, aos 14 anos de idade, eu ganhei da minha mãe a minha câmera fotográfica, quando a minha família vivia exilada na França. A partir daí eu nunca mais parei de fotografar. Em 1979, com a anistia política, eu retornei ao Brasil, já quase adulto.
Foto: © Kaoru Higuchi/JB. Eu, no colo do meu pai, o abraçava, não querendo que ele partisse para o exílio. Rio de Janeiro, 1964.