Editoria Isabela Vecci
O Museu da Inocência está localizado em uma edificação residencial construída em 1897, na região central de Istambul e foi concebido pelo escritor turco Orhan Pamuk, laureado em 2006 com o prêmio Nobel de Literatura. Desde de 1999, Pamuk já vinha desenvolvendo um projeto ao qual poderíamos denominar de “obra multimídia” e, para esse objetivo, havia adquirido um imóvel no bairro de Çukurcuma. Alguns anos depois, utilizando o dinheiro recebido na ocasião do prêmio Nobel, Pamuk coordena as obras, dirige, cria, faz a curadoria, desenha e monta cada vitrine dessa intrigante obra – O “Museu da Inocência”, livro e museu homônimos. Uma das particularidades do projeto “Museu da Inocência” é que museu e livro foram criados simultaneamente a partir de objetos já colecionados por Pamuk e por outros adquiridos ao longo do processo de escrita. Objetos que já estavam em poder do escritor davam a materialidade para a paisagem visual da história, outros, necessários a partir do desenvolvimento da trama, foram perseguidos por Pamuk em brechós, antiquários e mercados. O livro foi lançado em 2008 e o Museu foi aberto 4 anos depois, em 2012 e são intrinsicamente relacionados.
Numa visita é possível “ler o museu”, ou seja, cada capítulo do livro está representado em uma vitrine. São oitenta e três capítulos e oitenta e três vitrines. O livro e o museu, somados ao catálogo, contam a história de dois amantes que se encontram na Istambul entre os anos 1970 e 1980, e através dessa história de amor somos levados a conhecer a cidade, também personagem do romance. É um museu muito impressionante também do ponto de vista visual e teve todo seu processo de formação e construção documentado minuciosamente por Pamuk no catálogo do museu, um livro chamado A Inocência dos Objetos. Nesse catálogo/livro Pamuk a certa altura propõe um manifesto em favor dos pequenos museus, que resumidamente pode ser entendido pela tabela criada por ele:
Nós Temos | Nós Precisamos Ter |
Épico Representação Monumentos Histórias Nações Grupos e times Grande e caro |
Novelas Expressão Lares Estórias Pessoas Indivíduos Pequeno e barato |
No item três do manifesto Pamuk sentencia:
Nós não precisamos mais de museus que tentam construir narrativas históricas da sociedade, da comunidade, da nação, do estado, da tribo, da companhia ou da espécie. Nós todos sabemos que o ordinário, que as estórias diárias dos indivíduos são mais ricas, mais humanas e muito mais alegres. (PAMUK, 2012, p.54 -Tradução da autora).
Ele propõe o “museu novela”, das pequenas narrativas cotidianas, para a compreensão mais ampla do humano. Ao conceber o projeto do Museu da Inocência Pamuk cria uma espécie de tríptico, pois livro, museu e catálogo são complementares, mas são também obras independentes. Quem visita o Museu em Istambul, sem ter lido o livro, provavelmente vai adentrar a essa espécie de “meta museu” e ser levado pela narrativa muito verossímil da história de amor impossível entre Kemal e Fusun, primos distantes que se apaixonam numa época em que a sociedade turca era muito mais tradicional e restritiva em relação às mulheres. Provavelmente essa pessoa vai se dirigir à recepção do Museu e perguntar: mas isso realmente aconteceu? Essas pessoas existiram? Esses objetos pertenceram a essas pessoas? E o escritor parece nos dizer: não teria a literatura essa função, de misturar o imaginário com o real? Esse projeto parece radicalizar essa ideia e nos questionar sobre os limites da memória como realidade histórica e memória ficcional, as reminiscências íntimas. Pamuk também teceu um tipo de obra onde o método obsessivo do colecionismo é parte importante na sua constituição. Ele não apenas colecionou os objetos de forma sistemática, como os catalogou, distribuiu em vitrines/capítulos, organizou seu posicionamento milimetricamente, dirigiu vídeos complementares às vitrines. Ele também organizou a história dessa mesma forma sistemática e a obsessão do personagem Kemal se confunde com a própria obsessão do autor em muitos momentos. Na novela, Pamuk escritor é também personagem e “aparece” em dois momentos da história. Esse jogo proposto pelo autor é constante e se estende também na quarta peça da obra, o filme Innocence of Memories, de 2015, sobre o qual falaremos a diante.
Pamuk parece querer provocar uma discussão sobre autenticidade, verossimilhança, ficção e ilusão, pois tanto o livro como o museu e o catálogo, se baseiam em personagens ficcionais confundidos com pessoas reais e tratam dos objetos como peças pertencentes a essas pessoas/personagens. É um jogo constante com o leitor/visitante. Essa obra abriu espaço para discutir várias categorias em literatura e em museologia.
Podemos afirmar que Pamuk também nos faz refletir sobre o conceito do museu como um local onde teoricamente uma narrativa real vai ser engendrada pelo testemunho dos objetos. Teoricamente porque há sempre uma disputa de narrativas, em todos esses espaços institucionais. Há sempre uma construção social de um “real”. No “Museu da Inocência” os objetos também são constituídos como testemunhos de fatos, mesmo que ficcionais, são um elo entre as histórias das personagens. É um museu que nos leva a uma vertigem, a transpor realidade e ficção, pois no fundo, os objetos a princípio pertencentes aos personagens, são também parte da história da cidade de Istambul onde a narrativa se desenvolve e cidade natal do escritor. A organização de objetos museais em vitrines expográficas é um recurso comum a museus. Os objetos ficam isolados do público por um vidro transparente, num tipo de microcosmos concebido pela equipe de museólogos da instituição, que delibera a posição, a quantidade e o tipo de objetos a serem expostos em cada seção, em cada eixo curatorial. Pamuk nesse caso, é curador, museólogo, designer, editor, arquiteto de cada vitrine. No catálogo do museu ele explica sua formação incompleta em arquitetura e seu trabalho como pintor na sua juventude, anterior ao ofício de escritor. Essa formação é percebida no rigor de composição de cada vitrine, na iluminação, nas noções de proporção de cheios e vazios, nas citações subliminares à algumas obras de arte. Há pequenos croquis de Pamuk impressos no catálogo representando desenhos técnicos das vitrines e fotografias do escritor supervisionando a montagem expositiva, escolhendo fotos, objetos e até mesmo dirigindo atores para alguns vídeos que complementam a expografia. O escritor se preocupou também em criar uma ambiência poética para os visitantes, seja pela iluminação controlada e direcionada aos objetos, seja por instalações sonoras que reproduzem a sonoridade de Istambul. Podemos escutar o som de uma torneira aberta diante da vitrine onde há uma pia e apetrechos para fazer a barba, representando o capítulo no qual o personagem se arruma para sair e pedir a mão da amada em casamento. Podemos ouvir os sons constantes dos apitos de navios presentes na atmosfera da cidade. Ou seja, há uma preocupação na criação de uma ambientação para a narrativa, contada pelos objetos, mas também sensorialmente.
O filme “documentário” sobre o Museu da Inocência e sua concepção, realizado pelo cineasta inglês Grant Gee, chamado Innocence of Memories (2015) tem o texto narrativo escrito por Orhan Pamuk. Observamos também no “documentário” a operação de diluição de fronteiras entre realidade e ficção. No filme há, por exemplo, o depoimento de uma suposta amiga da personagem Fusun, que conduz a um desdobramento da história sob outro ponto de vista. A ambiência do filme, realizado nas ruas de Istambul, tem correspondência com a ambiência descrita por Pamuk no livro. Uma certa melancolia, um olhar que deambula como um flâneur pela cidade à noite, observando os lugares onde os personagens viveram a história de amor. Essa cidade, também personagem do romance e cujos lugares e objetos materiais são repositórios das memórias dos habitantes.
No início do filme o escritor descreve o que seria o fio condutor da obra museu–novela:
Há uma história para contar toda vez que uma pessoa e um objeto se encontram. Histórias que existem no tempo.
O tempo em que comprei esta bolsa branca.
O tempo em que eu peguei este saleiro.
O tempo em que perdi este brinco.
O tempo em que li este jornal.
O tempo em que guardei esta bola vermelha.
O tempo em que destruí este relógio.
O tempo em que olhei para esta paisagem.
Há sempre uma história para contar.
Eu estava olhando através desta janela quando eu vi esse corvo.
Eu estava chorando quando eu lavei minhas mãos nesta pia.
Eu estava descendo pela rua quando escutei este rádio.
Eu estava pensando nela enquanto olhava para este barco.
Eu estava amando quando eu peguei esse cigarro.
A memória acionada pelos objetos, a cidade como museu das nossas memórias. Em uma entrevista de vídeo divulgada em fevereiro de 2015, Ohran Pamuk ao ser questionado sobre como o Museu da Inocência influenciaria as pessoas, responde:
Eu me preocupo com as memórias. Para mim como um novelista, não há um presente absoluto, todo momento tem uma natureza escorregadia. Nós vivemos o presente combinado com uma mistura do passado. Como não há presente absoluto é bom viver em cidades onde o passado nos é relembrado pelos elementos que vemos nessa cidade. Essa é a razão pela qual devemos ter o cuidado de preservar nossas praças, monumentos, edifícios, porque cada uma dessas coisas nos remetem às nossas memórias. Eu me preocupo com a preservação porque isso é uma forte demanda do ser humano. Reunir nossas memórias.
Museus deveriam focar em histórias pessoais em vez de histórias de nações, de companhias, porque museus, eu acredito, como eu fiz no museu da inocência, deveriam explorar para encontrar o sentido dos objetos na nossa vida cotidiana.
As três obras criadas por Pamuk, livro, museu e catálogo podem ser considerados obras artísticas relacionadas, mas independentes. Uma criação entendida como um tipo de literatura expandida. Com essa operação, Pamuk se inscreve na linhagem de artistas que dialogam com o sistema representativo dos museus, que utilizam o modus operandi do museu como parte constituinte de suas obras, como Mark Dion, Peter Blake e Damian Hirst. As práticas de representação presente nos museus, como enquadramento, montagem, trípticos e caixas de perspectivas por exemplo, são encontradas em vários trabalhos desses artistas. Há uma curiosa semelhança entre uma vitrine do Museu da Inocência, a primeira a ser vista, já no térreo da edificação, onde Pamuk expõe as 4213 pontas de cigarro atribuída aos personagens principais, obsessivamente catalogadas pela data dos encontros dos amantes, como uma linha do tempo de sua história de amor e um trabalho de Damien Hirsch, artista britânico, chamado “Dead ends died out” de 1993 onde ele também propõe uma coleção de pontas de cigarro sistematicamente organizadas em caixas.
Por fim podemos concluir que a obra múltipla, de grande fôlego criada por Pamuk proporciona ao espectador/leitor abordagens variadas, diferentes tipos de aproximação e leitura, expandindo a ideia de romance ao cruzar campos como a arte, a museologia, o patrimônio cultural e a história.
Referências:
PAMUK, Orhan. The innocence of Objects. Nova Iorque: Abrams, 2012. https://en.masumiyetmuzesi.org/
https://www.theguardian.com/film/2015/sep/10/innocence-of-memories-review-orhan-pamuk-istanbul-grant-gee-venice-festival
(https://www.youtube.com/watch?time_continue=730&v=MqxGPTMbwF4)
Isabela Vecci é arquiteta, mestre em educação pela UFMG, professora e sócia no escritório Vecci Lansky arquitetura.