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Pandemia, cultura e suas emergências

Editoria José Marcio Barros

A pandemia de Covid-19 trouxe, para além da contabilização de mais de 1 milhão de mortos pelo mundo afora e cerca de 145 mil no Brasil – dados da primeira semana de outubro de 2020 – algumas evidências que se apresentam como grandes desafios. Essa combinação, entretanto, é de grande complexidade, na medida que associa aquilo que não dá margem à dúvida, em função de sua densidade como real compartilhado que se impõe à realidade de cada um, com a dimensão do enfrentamento com disposição e esforço convergente. “Evidência e desafio” parece ser a legenda mais adequada para a pandemia de 2020 que, para alguns historiadores das ideias, finaliza tardiamente o século XX. Se para muitos é uma inexorável prova de que colhemos hoje os efeitos dos paradoxos criados a partir da modernidade, a saída para esse real impositivo se curva às diferentes realidades políticas, econômicas, sanitárias e culturais. Tudo é tão evidente, mas ao mesmo tempo tão difícil de ser alterado.

Uma das dimensões evidentes e desafiadoras da atual conjuntura mundial, e em especial no Brasil, refere-se ao campo cultural, entendido aqui como um conjunto heterogêneo de sujeitos, práticas, instituições e representações simbólicas. A forma como a pandemia e seu enfrentamento – por meio do isolamento social – se impôs à cultura, consagrada pelo refrão “primeira a parar e última a voltar”, é emblemática: a necessidade de se reinventar o mercado cultural e a urgência em se recuperar e atualizar as políticas públicas de cultura.

O horizonte, para além de ações paliativas, aponta para o fato de que os trabalhadores e os negócios da cultura enfrentam hoje – e enfrentarão nos próximos anos – graves problemas em decorrência dos efeitos da necessária e inexorável medida de isolamento social, do controle de mobilidade social e mutabilidade viral. Realidade essa que ainda poderá ser pior, caso a busca pelo “novo normal”, outra expressão cunhada ao longo desses perversos meses de pandemia, se dê exclusivamente centrada na recuperação econômica, descomprometida com a questão da sustentabilidade, entendida aqui como um conjunto de representações e ações que assegurem a continuidade da vida. Sustentabilidade como aquilo que agencia passado e presente de forma a garantir a existência de um futuro com dignidade, participação, saúde e equidade, tanto na dimensão social quanto na dimensão natural da existência humana.

A mesma cultura abandonada à sua própria sorte no Brasil, e só recentemente acolhida por medidas emergenciais de distribuição de renda, é reconhecida universalmente como medida eficaz e necessária para o enfrentamento da pandemia de Covid-19 e seus desdobramentos psicossociais. Por meio dos milhares de conteúdos criativos disponíveis nas redes, o enfrentamento ao isolamento social e aos perigos de que novos e ampliados problemas de saúde emerjam vem demonstrando eficácia, mas também evidenciando desigualdades de acesso à cultura digital e riscos de esgotamento do modelo pandemônico das lives.

Somente a conexão, oportunizada aos que têm acesso à internet, não garante saúde mental em tempos de isolamento. Seja por meio de atividades presenciais, lúdicas, subjetivas e criativas, seja remotamente, por meio do consumo de bens e serviços culturais pela internet, o isolamento social ajuda a conter a propagação do vírus, mas abre as portas para outros adoecimentos. O psicólogo do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), Cristiano Nabuco, comenta em seu blog (https://cristianonabuco.blogosfera.uol.com.br/2020/03/24/os-impactos-psicologicos-da-quarentena-e-como-reduzi-lo/) várias pesquisas já realizadas que identificam os efeitos psicossociais da quarentena, produzindo um aumento dos níveis de sofrimento emocional, ansiedade e sintomas de transtornos de estresse pós-traumático (TEPT).

A cultura expressa duas necessidades e capacidades da condição humana: somos por excelência seres gregários, ou seja, necessitamos viver em grupo tanto para nossa sobrevivência física quanto subjetiva e espiritual. Mas somos também especialistas no cultivo, na criação, na inovação e na colheita daquilo que é produzido. A condição humana está intimamente ligada ao estar com o outro, a fazer do espaço público a extensão de sua morada e aspirar e necessitar de liberdade. E é justamente este modo – não exclusivo dos humanos, mas por excelência humano – que está em questão, na medida em que pode contribuir para o agravamento da situação.

A situação é de emergência! E quanto a isso parece não haver dúvidas. Mas é preciso ampliar o escopo dessa emergência. As medidas que estão sendo tomadas tanto na esfera do mercado cultural quanto na esfera das políticas culturais precisam, obviamente, enfrentar as ocorrências de perigo econômico ao campo da cultura. Mas não se pode desconsiderar a necessidade de se fazer emergir algo novo, que supere o estado de crise em que a cultura já se encontrava aqui no Brasil, antes mesmo da própria pandemia.

É da conjugação entre o enfrentamento do perigo imediato com a criação de novos horizontes é que poderemos fazer com que 2020 vire rapidamente uma página do passado.

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