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Admiráveis vidas dissidentes

Por Luiz Morando
Editoria Felipe Cordeiro

Plano 1 – 1931
Quando Aldous Huxley publicou Admirável mundo novo, a Europa estava em processo de fermentação de nova guerra que engolfaria o mundo. Em meio aos reflexos da I Guerra Mundial, de profundas mudanças ético-culturais e das repercussões de uma quebra financeira que provocou grave crise no Ocidente, o autor vislumbrou um futuro no qual uma nova forma de organização social se sustentava sobre duas dimensões.

Uma delas caracterizava-se por uma sociedade evoluída. Esse ambiente, como Huxley esclareceu em um prefácio de 1946, estaria baseado na manutenção desta relação: redução da liberdade político-econômica e simultânea ampliação da liberdade sexual. A preservação dessa equação era necessária para manter um Estado no qual religião, família e função reprodutiva seriam totalmente eliminadas para dar lugar a um regime totalitário coordenado por administradores com poder de decisão sobre tudo e todos. O ser humano passou a ser produto absoluto do Estado – fertilizado, gestado, criado, educado e trabalhando para a continuidade desse processo. Existiriam, então, quatro pilares para manter essa estrutura em pé: um sistema infalível de eugenia para padronizar o ser humano; uma técnica de condicionamento sempre aperfeiçoada e aplicada desde a concepção; uma hierarquia socioeconômica fortemente observada; a ingestão de um produto que induz ao prazer quando qualquer adversidade surge no horizonte. Tudo coroado pelo desencargo de constituir família e o dever de gozar de uma literal promiscuidade sexual, tornada lei geral da espécie.

A outra dimensão, paralela ao novo Estado, referia-se a regiões rigidamente cercadas e isoladas, com a antiga forma de organização social vigente. Os seres humanos viviam em situação precária e rudimentar se comparada aos supostos avanços daquela outra dimensão. Ali, religião e formação familiar tradicional foram preservadas, mas todos ficam abandonados a toda espécie de debilidades e fraquezas, miséria e insalubridade. Desordem e desequilíbrio reinam nesses territórios, onde todos/as estão irmanados/as pela condição de animalidade e selvageria. Tais regiões são denominadas Reserva de Selvagens, estabelecendo assim o contraste absoluto entre um Velho (e ignominioso) e um Novo (e admirável) mundo.

No plano ficcional de Huxley, o Novo mundo se iniciaria logo após uma guerra mundial de nove anos desencadeada por situações semelhantes às que a Europa vivia quando seu romance foi publicado. Passados seis séculos para a concretização de sua fantasia premonitória, aquele futuro corresponderia aproximadamente à década de 2540…

Plano 2 – 1946
Laurence Dillon nasceu na Inglaterra, em 1915, em uma família nobre, constituída pelos pais e um irmão mais velho. Desde cedo, ele não se via nem se sentia adequado ao sexo feminino atribuído no seu nascimento.

Em 1939, Laurence iniciou tratamento experimental com aplicação de testosterona com o médico George Foss. Como era hipoglicêmico, viu-se obrigado a ser acompanhado também por outro médico. Este, ao saber de seu processo de transição, prontificou-se e realizou uma dupla mastectomia em Laurence, que, de posse de um atestado médico, requereu alteração com relação a seu sexo na certidão de nascimento.

Em 1942, o mesmo médico colocou Laurence em contato com Harold Gillies, cirurgião plástico pioneiro em reconstrução peniana em pessoas intersexo e soldados mutilados na II Guerra Mundial. Laurence e Gillies se acertaram a respeito dessa cirurgia. Enquanto aguardava ser chamado, face à prioridade dada à alta demanda de feridos de guerra, Laurence continuou a terapia hormonal e iniciou seus estudos em Medicina em Dublin.

Entre 1946 e 1949, Gillies realizou treze cirurgias em Laurence, finalizando seu processo de redesignação sexual e tornando-o o primeiro homem trans a se submeter a uma faloplastia. Em nenhum momento, os procedimentos vividos por Laurence foram divulgados pela imprensa, tendo se transcorrido em reserva, mas não na clandestinidade. Porém, em 1957-1958, durante o processo de inventário da família e de reivindicação do baronato, após o falecimento de seu irmão mais velho, Laurence precisou esclarecer sua situação, já que constava um nome feminino na genealogia da família. Daí sua história veio a público.

Laurence Dillon faleceu em 1962, na Índia.

Plano 3 – 1952
Em fins de junho de 1952, em Belo Horizonte, o Diário de Minas publicou esta notícia: um delegado de polícia recebeu em sua repartição um homem e ‘duas’ mulheres. O homem reclamava que sua esposa – que o havia trocado pela ‘outra mulher’, mas há pouco voltara a viver com ele – perseguia ‘a outra’, ameaçando-‘a’ de morte se não reatassem.

Quinze dias depois, o mesmo jornal reservou uma página para uma reportagem exclusiva sobre ‘a outra’, reportando seus hábitos, seu modo de vida, sua origem, e apresentando ao leitor o que hoje tratamos por identidade de gênero. Edmundo nascia aos olhos do público (sem ainda divulgar seu nome) e aceitou fazer fotos com roupas masculinas.

O Diário de Minas não noticiou mais nada sobre o caso, que ficou esquecido. Décadas depois, em agosto de 1981, jornais belo-horizontinos anunciaram com estardalhaço a morte de Edmundo de Oliveira, vigia de uma empresa de automóveis. Ele passou mal do coração no trabalho; foi levado ao Pronto-Socorro, mas não resistiu e faleceu. Durante a preparação de seu corpo, verificou-se que Edmundo tinha seios e vagina.
Durante uma semana, as investigações policiais rastrearam a vida de Edmundo. Ele nasceu em 1914, em Alto do Rio Doce (MG), filho de fazendeiros. Transferiu-se para Belo Horizonte em 1933, após desentendimentos com sua família. Em 1934, relatou a uma prima: “Quero ser homem e pobre, viver do meu trabalho; não quero ser mulher, quero ser homem de qualquer maneira e ainda vou conseguir isso.” Ele viveu na capital mineira até morrer. Após 1952, Edmundo começou a transicionar com mais efetividade. Casou-se com uma mulher em um cartório da cidade, em 1958! Ficou viúvo em 1976. Viveu como homem pobre e do seu trabalho até o momento de sua morte.

Foi sepultado no Cemitério da Paz com o nome de batismo que os pais lhe deram…

Panorâmica
Ao longo do século XX, diversos escritores criaram distopias, estabelecendo um diálogo entre o período em que viviam e um futuro deformado que se apresentava como provável consequência do momento presente. Se traçarmos uma linha entre Nós, do russo Ievguêni Zamiátin (1924), e O conto da aia, de Margaret Atwood (1985), por exemplo, observaremos que a acuidade perceptiva e o desencantamento com o presente geram cenários distópicos cujos desregramentos nos ameaçam com a premonição de perdas de direitos e conformismo com as desigualdades.

No entanto, ao mesmo tempo em que esse desconforto e descontentamento podem nos levar a ficcionalizar alegorias que potencializam a sensação de desamparo, há outra forma em que viver o presente causa tanto desprazer quanto aquele projetado para o futuro. Se narrativas distópicas nos metem medo por acenar com o que poderia nos esperar (ou às futuras gerações), a atopia mete tanto medo ou mais em quem vive no presente, mas não se sente ou não se vê reconhecido pelo coletivo.

Um espaço relativamente conhecido – onde as pessoas estabelecem relações em condições razoavelmente equilibradas, garantidas as condições mínimas de igualdade – pode induzir a uma sensação de segurança, bem-estar e prazer. Tal sensação tende a permanecer se a pessoa acolhida é respeitada pelo modo como age, se comporta, se manifesta. Uma percepção atópica se instaura quando determinado espaço é visto como não-próprio, estranho, inquietante. Ou seja, em situações em que as relações entre pessoas tendem a um desequilíbrio, o espaço onde elas se realizam pode gerar a sensação de hostilidade e sofrimento, bem como predispô-las a conflitos e disputas.

Uma vez que o sistema capitalista não se baseia sobre relações de igualdade, simetria ou equilíbrio entre pessoas, ele traz em seu bojo a atopia como uma das marcas mais comuns, com o risco de fazer com que seus efeitos se naturalizem. Certos grupos sociais – com recortes de raça, classe, gênero ou geração (e agravantes interseccionais desses marcadores) – tendem a perceber com maior força seu não pertencimento a um território, mobilizando-se e organizando-se para reduzir os impactos desse sentimento de estranhamento provocados pelas relações desenhadas nos locais de convívio, privados ou públicos.

O segmento LGBTQIA+ não fica alheio a essa realidade. Desde meados do século XIX, a dinâmica de construção e representação da sexualidade humana moderna-industrial passou a ser alvo de um processo constante de docilização pelo campo médico-psiquiátrico-sexológico. Tal dinâmica é sustentada por um sistema excludente cujo centro privilegia a função reprodutora praticada por indivíduos pertencentes a sexos opostos, que partilham de um modelo cisheteronormativo. Por sua vez, as margens são habitadas pelos dissidentes ao padrão central, que se organizam por referências diferentes àquele modelo. Dentro desse contexto, a atopia se tornou não apenas externa (marcando as relações interpessoais de rejeição), mas também interna (desencadeando reações intrassubjetivas de desconforto). O processo de reconhecer-se e ser reconhecido como dissidente ao sistema sexo/gênero pode gerar inúmeros incômodos públicos e privados. Valeria a pena desfiá-los aqui, pois nunca é demais repetir a lista de insanidades praticadas por aqueles/as que teimam em enquadrar pessoas que não se reconhecem no padrão cisheteronormativo, estabelecendo correlações obsessivas entre o genital e o gênero atribuído à pessoa.

Porém, prefiro tangenciar aquela lista para lembrar que, se a atopia causa dor, ela também pressiona para que o dissidente do sistema sexo/gênero busque pela materialização de sua própria diferença. Por isso, trouxe Laurence Dillon e Edmundo de Oliveira como rápidas referências de vidas atópicas: pessoas que se sentiram hostilizadas por não se verem pertencendo ao sistema sexo/gênero designado para si e tomaram em suas mãos os meios para tornar suas vidas mais vivíveis. São dois casos distantes no espaço e em termos de condições socioeconômicas, mas próximos no tempo e nos sentimentos/emoções que lhes perpassam. Casos isolados ou excepcionais? Não.

Há 30 anos, constituo um acervo de memória da cultura LGBTQIA+ belo-horizontina e suas reverberações na cultura brasileira daquele segmento. Há 18 anos, vou semanalmente à Hemeroteca Histórica da Biblioteca Pública Luiz de Bessa, bem como faço consultas regulares na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Até onde pude verificar, a imprensa brasileira do decênio de 1930 noticiou 74 casos de transgeneridade: 31 no Brasil e 43 no exterior. Entre os brasileiros, 11 foram descritos em Belo Horizonte. Vários foram veiculados após o seguinte circuito: pessoas eram denunciadas à polícia por alguém que desconfiava de alguma ‘anormalidade’ de conduta, comportamento, atitude ou aparência. Isso acarretava a detenção do/a envolvido/a, investigação sobre sua vida, acompanhamento por algum profissional médico-psiquiátrico e tentativa insistente de ‘recuperação’ do/a denunciado/a. Em geral, a informação chegava à imprensa por meio de um agente policial.

Essa breve visão denota que um número relativamente consistente de pessoas preferia afrontar um conjunto de normas sociossexuais e de gênero a fim de performar sua identidade de gênero e se desvincular dos desprazeres causados pela atopia. Isto é, conscientes da resistência da cultura do seu tempo, aqueles/as dissidentes optavam pelo enfrentamento e o direito de ser. Em decorrência disso, é possível depreender a existência de pessoas nessas condições em médios e pequenos centros urbanos. Isso permite também imaginar o grau da repercussão dos casos noticiados pela imprensa e a reação de recolhimento, intimidação e medo por parte daquele/as que pudessem desistir de enfrentar o contexto atópico, hostil.

No caso de Edmundo de Oliveira (com homofonia tão simbólica no nome: é do mundo), é possível perscrutar a opção pela imersão na vida cotidiana após se expor na imprensa em 1952. Ele escolhe palmilhar seu processo de forma mais segura, sondando com atenção o território por onde circula, as relações de sociabilidade que constrói, a rede de apoio que trança, a vida social que vai enredando. Ao longo de 29 anos, ele permaneceu na mesma cidade, sendo visto por um grupo de pessoas muito próximas que testemunhou seu processo continuamente, plasmando-se à vida comum, dando forma a seu projeto de vida: ser homem e pobre, viver de seu trabalho.

Sensibilizar-se com essas histórias inscritas em atopias – daqueles/as que se sentem marginalizados/as por performarem um modo de existência que escapa ao centro, que não quer se fazer centro, que quer ser visto na borda e da borda se fazer respeitado – nos faz mais previdentes a resistir a futuras distopias. Nesse sentido, recuperar nossas memórias se torna uma maneira de lastrear certa tradição de dissidentes que nos preexistiram (e que desconhecíamos). Isso dá certo alento e não nos deixa sentir sozinhos/as. Essas vidas dissidentes – e admiráveis pelas suas existências e resistências – ainda nos demonstram que as identidades de gênero e de sexo transcendem a individualidade e operam efeitos de sentido social. Dados atuais indicam que tais efeitos se revelam, sobretudo, nos crimes de LGBTfobia cometidos em elevados índices por aqueles/as que não aceitam o diferente. Nosso esforço constante deverá ser por buscar efeitos de sentido social que preservem vidas. Laurence e Edmundo nos mostram isso. E isso não deve ser visto como uma utopia.

Luiz Morando é Doutor em Literatura Comparada (UFMG). Pesquisador independente e autônomo sobre memória LGBTQIA+ de Belo Horizonte (MG). Autor de Paraíso das Maravilhas: uma história do Crime do Parque (2008) e Enverga, mas não quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte (2020), além de artigos em livros e periódicos acadêmicos.

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