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As coisas (em ruínas) falam

Editoria Lyslei Nascimento

As coisas falam e, ali, onde desemboca o silêncio, o mistério se manifesta. O livro Lição de coisas, de Carlos Drummond de Andrade, ilumina minha leitura dos romances Mameloshn: memória em carne viva (2004) e O padeiro polonês (2015), de Halina Grynberg.

O período de 11 anos que separa as duas narrativas não torna a leitura delas mais palatável. Ao contrário, a duplicação do número 1 aponta, simbolicamente, para a condição dúplice, ou gêmea, dos textos. Em ambos, “a memória em carne viva” traduz “a violência de ser um sobrevivente”, como afirma o rabino Nilton Bonder no posfácio ao primeiro romance. Nesse texto, ele também afirma que “somos todos resultado das mais diversas violências produzidas no passado. O Holocausto gera crueldade, exílio da terra natal e, principalmente, exílio do território humano, nossa mais primitiva linguagem”. Além disso, ele adverte o leitor para o fato de que Grynberg “segue a gramática dos sonhos e dos pesadelos”, daí que “em meio a tanta escuridão e desorientação, em meio a tanta perda e tanta inevitabilidade, rastejam dos escombros adjetivos suaves, sobreviventes”.

Em vez dos adjetivos, no entanto, proponho ler os dois romances de Grynberg à luz dos substantivos, das coisas referenciadas, citadas ou listadas. Mais do que os adjetivos – que qualificam os substantivos – estes põem em cena palavras que nomeiam seres, objetos, qualidades, ações, sentimentos. Desse modo, os objetos, em seu silêncio, adquirem uma importância ímpar e manifestam o romance como um fato cosmológico que tem como modelo o Gênesis bíblico, como queria Umberto Eco. Nesse sentido, as coisas, ou os substantivos, que aparecem em listas e enumerações, fazem parte de um mundo subjacente mobiliado pela escritora e por suas narradoras.

É também Eco que nos lembra que, na história da cultura ocidental, há listas de santos, elencos de soldados, enumerações de criaturas grotescas, inventários de plantas e relações de tesouros. À essas listas acrescento aquelas criadas por escritores que fazem das coisas perdidas ou das que restaram da grande catástrofe, seu mote para escrita.

Os dois romances – Mamelosh e O padeiro polonês – inscrevem-se, portanto, de forma peculiar, na literatura brasileira. Márcio Seligmann-Silva afirma que essa produção é “extremamente marginal” e que, por uma série de motivos, os sobreviventes que “acabaram aportando no Brasil, não encontraram”, aqui, “um público acolhedor aos seus testemunhos” (2007). Compõe-se, assim, para o crítico, um “panorama desolador”, apesar de considerar a importância desses textos.

Antes de Seligmann-Silva, Regina Igel trata do tema em Imigrantes judeus/escritores brasileiros em uma abordagem precursora (1997). Na parte intitulada “Memórias do Holocausto”, ela divide essa produção em: pedagógicos – de teor paradidático, de conteúdo autobiográfico e uma “mínima elaboração imaginativa; b) híbridos – marcados pela combinação de estilos, apresentando traços pedagógicos entrelaçados a descrições de vivências da guerra, reais ou imaginadas; e, por último, c) ficcionais, textos, cuja voz narradora é onisciente, analista ou intérprete das reações dos personagens, recriando, pela imaginação, eventos históricos a partir da Shoah.

Minha abordagem parte, assim, do olhar sensível desses estudiosos, mas à contrapelo delas, invisto numa leitura mais íntima e pessoal dos textos, considerando, sobretudo, o valor do pormenor como um rastro importante.1 Para além da explicitação do vazio, da falta e da lacuna apontados recorrentemente, nas listas e nas enumerações, as coisas que têm alma, que emergem das sombras, como podem ser vislumbradas nos romances de Grynberg, serão o fio condutor da leitura aqui empreendida.

Não afeitas à monumentalidade, Cíntia Moscovich, Giselda Leirner e Noemi Jaffe, só para citar algumas das escritoras que, no Brasil, junto a Halina Grynberg, têm a Shoah como tema, elegem o pequeno, o pormenor, para construir suas narrativas. O leitor não está, portanto, diante de um vazio, de uma página em branco, mas entre fragmentos, ruínas e cinzas, em estado de dicionário, como queria Drummond. Essas coisas, tal qual verbetes, em uma mínima compleição, parecem trazer de longe, ou de não tão longe na história, “entre o ser e as coisas”, vozes que não podem ser abafadas.

Viviana Bosi, no posfácio a Lição de coisas, afirma que há, nesse livro, um tom investigativo da memória. Para ela, o que se poderia tomar por simples catálogo de dicionário parece, antes, sintetizar a rememoração profunda de uma cultura, de um lugar, de um longo período. Adiante, irrompe, com essa rememoração, obsessões desdobradas que se configura como um trabalho incessante, mas que não cai, no entanto, em um vazio.

Essa perspectiva vai, assim, de encontro à sentença da crítica que insiste em tratar como mudez ou vazio a linguagem da literatura da Shoah. Ao contrário, a reflexão de Bosi põe em evidência que esses textos, sob um olhar atento, fazem falar pequenos objetos, em quase translúcidas listas. Neles, fazem-se ouvir coisas que anseiam sair do estado de dicionário, como queria Drummond, e vir habitar nossa memória.

No romance Mameloshn, a narradora, afirma:

Madureira era muito quente todos os meses do ano e eu estava só sobre o leito anônimo, precário. Todas as coisas habitavam o sem-lugar. E mal recordo de guarda-roupas ou prateleiras que ficassem no quarto de casal, um móvel qualquer a misturar roupas e identidades, as ausências mais do que as roupas, e as pessoas que estava ali mas que permaneciam sendo, melhor definidas do que eu ou meus vagos pertences (p. 12-13).

De suas parcas lembranças do quarto de dormir, ela passa, em primeira pessoa, à descrição do corpo no qual habita. Este, no entanto, não é referenciado com densidade e consistência. Diz a narradora:

Tateio a caligrafia do tempo que a evoca, um estremecimento inesperado nas marcas sobre a pele de meu braço, a leve aspereza das sardas, há uma dobra na carne da musculatura frouxa, os pigmentos em branco são epigrafia de sua ausência (p. 17).

A escrita do tempo traduz, no corpo fragmentado da filha, o corpo e a memória da mãe. Pele, braço, músculos aparecem como disjecta membra, ou seja, fragmentos dispersos. Nesse sentido, as marcas sobre a pele, a aspereza das sardas e até a dobra da carne da musculatura frouxa, deixam vislumbrar, como pigmentos, a escrita no corpo e o corpo na escrita, um palimpsesto.

Na sequência, a narradora reflete sobre uma vacinação contra a coqueluche a que foi submetida, quando criança, em sua escola de Paris, antes de a família embarcar para o Brasil:

Estofada de anticorpos, perseverei nos resquícios da epidemia agarrada à boneca nua que me amparava ao adormecer. Sugar o único tufo de cabelos que enfeitava o alto de sua cabeça era o quanto necessitava para encher-me de alento. Eu poderia renascer daí. Bastava como evidência: haveria um mundo onde bonecas teriam cabelo, roupa e sapato. E eu um nome para chamar (p. 39).

A boneca com um único tufo de cabelos é uma evidência e uma esperança. O renascimento da narradora, pela escrita, aparece, nesse momento, mesmo diante da ruína do brinquedo, ou do texto como ruína, porque, de alguma forma, vir para o Brasil significaria pode sonhar com um mundo “onde as bonecas teriam cabelo, roupa e sapato”. Se, por um lado, a criança é a mãe da boneca, como tradicionalmente se tem na brincadeira infantil; por outra, a menina suga o tufo de cabelo, como se a boneca, fosse o seio da mãe. Ambiguamente, a narradora, anônima que é, poderá, quem sabe, ter um nome para chamar ou, por extensão, ser chamada ou nomeada, resgatando, no corpo inerte da boneca, o seu nome próprio devastado pela guerra, pelas doenças, pelo desafeto.

Como a página do meio entre duas metades de um único livro, os dois romances se espelham. No primeiro, a imagem da mãe, sua condição de mulher abandonada pelo marido, em delírios sobre o período de prisioneira nos Campos, tem a desculpa da senilidade, da doença; no segundo, não há nenhuma justificativa minimamente aceita pela filha que, em meio a um rancor sublime, porque lírico e melancólico, a faça perdoar os deslizes do pai.

De acordo com narrativa da filha, a retórica do pai era arte de confeiteiro, ou seja, dom de iludir a quem dele se aproximava. Sendo assim, ela avalia:

Urdia uma epopeia, conjugando sem cuidado o iídiche ancestral ao polonês inculto: fraseado, abrupto, cadências hipnóticas, uma aura mítica emalhando os detalhes, adulterando suas desventuras dos anos de guerra. Fazia crer um profeta vergado sob o peso da revelação a arrastar os passos de sua paixão pela Europa dividida entre o nazismo e o comunismo (p. 22-23).

Expondo essa fala estropiada, a narradora, entre um vocábulo e outro, semeia dúvidas quanto a boa índole do pai.2 Ela conta com a cumplicidade do leitor que, se ele não se aperceber dessa “retórica”, não vai desconfiar do dúbio da filha.

Afinal, a narrativa em primeira pessoa expõe, mais do que encobre a narradora, que pode não merecer a plena confiança do leitor. Nesse sentido, os “ardis e truques” do pai também podem ser espelhados nas estratégias dela para seduzir quem a acompanha nas histórias que conta. Se a “máscara mal contida” do pai desfia um “lero-lero desabusado de artimanhas, excessos de redundância, sequências intermináveis de metáforas, exaurindo a atenção do ouvinte de maneira a encobrir versões divergentes das ‘verdades’ que difundia” (p. 23), a performance em que a narradora atua também é digna de nota.

Muito bem urdida, a narrativa íntima e pessoal da filha, se inscreve numa história ampla e coletiva:

A maioria dos sobreviventes do genocídio nazista preferia não recordar. Poupavam a si, poupavam seus filhos e netos, resmungavam. Enfeitiçada, agarrei-me aos livros, livros e mais livros, uma pesquisa frenética sobre a Shoah. Lia as memórias alheias. Qualquer autor, qualquer texto, desde que me permitisse ir um passo além dos enredos de meu pai, seguindo em frente pelo deserto do sem sentido, para além do abismo do esquecimento, para além dos becos sem saída onde pareceria soterrada nossa história (p. 24).

Não recordar não é, assim, uma opção. Por isso, o texto em forma de lamento, de cobrança, de falta de empatia para com o pai sobrevivente. A palavra-chave desse trecho é “enfeitiçada”, porque ela aponta para a busca frenética para dar sentido ao silêncio do pai. A cena da leitura de “livros, livros e mais livros” põe na ribalta “as memórias alheias” que são costuradas à própria vida, numa vertigem de livros invisíveis referenciados nessa repetição.

Os espaços labirínticos são, nesse texto à contraluz, listados: o deserto sem sentido, o abismo do esquecimento, os becos sem saída e, no holofote, o ato falho da narradora: “a nossa história”. Duplica-se, portanto, no corpo-texto da filha, os corpos emparedados dos pais. No corpo ficcional da mãe e do pai, a filha se inventa e se reinventa, também, ficcionalmente, a fim de suportar “o desterro e a perplexidade” da pátria da dor, do relâmpago, mas também do reflexo, territórios movediços da ficção.

Se, como queria Ricardo Piglia, para um escritor, a memória é a tradição, ou seja, uma memória impessoal, feita de citações, na qual todas as línguas são faladas (p. 60), nos romances de Halina Grynberg, a memória é íntima e pessoal, feita de retalhos, onde desemboca o silêncio e se manifesta o mistério de viver, na e pela linguagem, tanto dos filhos nos pais quanto dos pais nos filhos, tal qual uma rede ou uma renda feita de livros, de memórias alheias, de partes humanas.

Notas & Referências

1. Para o conhecimento de outros autores e obras, consulte-se o Dicionário de escritores judeus no Brasil, no site do Núcleo de Estudos Judaicos da UFMG, que possui cerca de duzentos autores referenciados em verbete. Ver: http://www.letras.ufmg.br/padrao_cms/index.php?web=nej&lang=1&page=1824&menu=1094&tipo=.

2. Ver alguns versos do poema “Daddy”, de Silvia Plath: “Eu tive de matar você, papai./ Você morreu antes que eu pudesse –/ Peso de mármore, saco repleto de Deus,/ Estátua medonha com um dedão gris/ Do tamanho de uma foca de Frisco”. (PLATH, 2006, p. 165-199).

ANDRADE, Carlos Drummond. Lição de coisas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

BONDER, Nilton. Posfácio. In: ______. GRYNBERG, Halina. Mameloshn: memória em carne viva. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 101-106.

DICIONÁRIO DE ESCRITORES JUDEUS BRASILEIROS: http://www.letras.ufmg.br/padrao_cms/index.php?web=nej&lang=1&page=1824&menu=1094&tipo=. Acesso em: 20 out. 2020.

ECO, Umberto. A vertigem das listas. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2010.

GRYNBERG, Halina. Mameloshn: memória em carne viva. Rio de Janeiro: Record, 2004.

GRYNBERG, Halina. O padeiro polonês. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015.

IGEL, Regina. Memórias do Holocausto. In: ______. Imigrantes judeus/escritores brasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1997. p. 211-247.

NASCIMENTO, Lyslei. Fascínio e obsessão: Momik e as listas em Ver: Amor, de David Grossman. Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG, 11(21), p. 151-163.

PIGLIA, Ricardo. Memoria y tradición. In: 2º. CONGRESSO ABRALIC: Literatura e memória cultural, 1., Belo Horizonte, 1991. Anais… Belo Horizonte: ABRALIC, 1991. p. 60-66.

PLATH, Sylvia. Daddy. In: VALLE, Mariana Della. Sylvia Plath: quatro “poemas-porrada”. Cadernos de Literatura em Tradução, n. 7, p. 165-199, 2006.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. Literatura da Shoah no Brasil. Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG, v. 1, n. 1, 2007. Belo Horizonte: UFMG, 2007.

WALDMAN, Berta. Uma história concisa do Holocausto na literatura brasileira. Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 9, n. 17, 2015.

Lyslei Nascimento é professora de Teoria da Literatura e Literatura Comparada na FALE/UFMG.

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