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Contornando os vazios do fracasso

Por Bruna Vilela
Editoria Thiago Pereira

Avenida do Contorno.

Sábado.22h.

Vazio.

Não havia uma pessoa na rua. Que bom sinal era aquele quando eu estava em uma semana de contenção das notícias da pandemia. Ali eu não veria aglomerações.

O que poderia sinalizar alívio, para quem carrega um demarcador de gênero tão visível mostrou-se o oposto ao pensar em andar uns 10 quarteirões completamente vazios e levemente escuros, entre a Contorno e suas ruas periféricas. Já conhecemos a historinha. Antes de sair do prédio da minha namorada para ir à Araújo comprar remédio, fui avisada no portão que deveria tomar cuidado com o celular.

Interrompi a playlist.

Entre um quarteirão e outro, houve vazio para outras coisas também.

Em algum dia do passado recente, estava assistindo a um professor vocal no YouTube comentar uma performance ao vivo de FKA Twigs, em que ela cantava “Cellophane”, um dos singles do seu último e precioso álbum, “Magdalene”.

Uma faixa explicitamente íntima e vulnerável. Ao longo dos comentários pontuais e pertinentes do professor youtuber, as escolhas vocais estéticas de Twigs ficam evidentes: “Ela está procurando por uma instabilidade vocal porque isto é lido como vulnerável”, ele pontua. Ela transita entre o “forte – ‘eu sei como cantar’” (referindo-se aqui à impostação da voz) e o “eu sou vulnerável, eu sou breathy” (referindo-se à escolha de cantar com uma voz soprosa, carregada de ar, sem tanta impostação). Mesmo para aqueles que não possuem algum conhecimento de música, é natural a percepção de uma estética da vulnerabilidade no uso de voz propositadamente instável, como o faz eficientemente, Twigs.

“Magdalene”, o último disco da cantora, foi sucesso de crítica e, também, como amplamente comentado nos meios digitais, uma obra que abordava o seu término amoroso com o ator Robert Pattinson. A trajetória de intensa exposição midiática do casal, com a compositora britânica negra recebendo frequentes ataques racistas dos fãs do ator, virou pauta frequente nos comentários de clipes do YouTube que compõem o álbum, principalmente no clipe de “Cellophane”.

No entanto, para além disto, é interessante lembrar que se trata de um álbum conceitual em cima da ideia mítica de Maria Madalena, discorrendo por inquietações feministas e que a sua composição também é marcada por outros atravessamentos pessoais da cantora, como o de passar por uma cirurgia para retirar seis tumores de seu útero.

“Robert Pattinson fudeu o rolê mesmo, né?” (tradução livre minha) – é a tônica de muitas falas do público virtual de Twigs, que inclusive denunciam a falta de posicionamento do ator em relação aos múltiplos ataques racistas que sua parceira recebia. Além disso, claro, encontramos muitas análises sobre a genialidade artística de FKA Twigs em transformar experiências pessoais profundamente dolorosas em um prisma de produtos artísticos absurdamente criativos.

Partindo de uma exposição midiática brutalmente intensa e cruel, um racismo escancarado à luz branca – além dos outros atravessamentos que impactam diretamente e não metaforicamente em seu corpo – a compositora parece alcançar um espaço de esvaziamento de todas as dores em um confessionalismo de versos com linguagem universal.

Uma ferramenta que talvez se explique por alguma lógica como: se já estamos tão vulneráveis por que, então, não agir nestes termos? Porque, afinal, infelizmente, estamos falando de condições inescapáveis – e aqui não falo da trajetória pessoal de Twigs, mas, talvez, de seus marcadores de raça e gênero. Uma ferramenta, talvez inconsciente, que tem lastro com a velha história de Kris Kristofferson falando com Joni Mitchell após ouvir seu álbum “Blue”: “Joni! Guarde algo para você!”

E quando se pesquisa “vazio” no Google, a primeira definição que encontramos é: “que não contém nada (ou contém apenas ar) ou quase nada”.

O que sobra quando se esvazia-se? A voz soprosa – cheia de ar e pouca impostação – que vemos em Twigs frequentemente, apesar de sua técnica vocal altamente avançada.

“Eu não servi para você?”, ela questiona repetidas vezes em Cellophane.

Não é só Lacan que entendeu que “A mulher não existe” (atenção para o artigo definido. Esta não é minha polêmica do dia).  A produtora belo-horizontina de funk DJ Ray Lais, em um feat com a cantora MC Dricka, utiliza um áudio de um garoto que a crítica, para inseri-lo como elemento sonoro no meio do hit (com mais de 23 milhões de visualizações no YouTube) “De 38 Carregado”.

“Quem que é essa muié aí, sô? Essa muié aí é outra, que nem produz… Ela só coloca o nome na música lá e compra a música aí…”

A fala incrementada em meio aos vazios sonoros cheios de reverb – característicos do funk mineiro atual – é seguida pelo sample do som da risada Pica-Pau (personagem de desenho animado). Não é a Ray Lais que produz seus beats. Ela nem existe enquanto beatmaker/produtora, segundo a lógica da voz masculina citada. No entanto, Rai Lays se utiliza deste discurso justamente para performar de forma irônica – presentificar seu corpo, sua atuação como produtora – na colagem eletrônica da música.

Jack Halberstam, em seu livro “A Arte Queer do Fracasso” coloca que “do ponto de vista do feminismo, apostar no fracasso tem sido melhor do que apostar no sucesso. No contexto em que o sucesso da mulher é sempre medido a partir de padrões para o homem, e o fracasso do gênero com frequência significa estar livre da pressão de se igualar aos ideais patriarcais, não ser bem-sucedida na mulheridade pode oferecer prazeres inesperados.”

Talvez seja por isso que o Riot Grrrl e alguns outros movimentos artivistas de gênero/queer, preocupavam-se pouco com a capacidade técnica musical e instrumental de suas atuações, ou então, preocupavam-se mais com suas expressões artísticas e seu exercício de fala, de registro, do que com seu domínio técnico. Não precisamos exibir este falo, balançá-lo na cara do público, quando já aprendemos que somos o Outro faltante, esburacado. E que nossa potência se encontra nisso também.

E, ainda assim, Kathleen Hannah, convocava às mulheres em seus shows a ocuparem o espaço logo à frente do palco. “All girls to the front”: esvaziar o fundo para ocupar o espaço masculino vazio em frente ao palco, próximo delas.

Contrariando Tony Parsons, em seu “Disparos Contra O Front da Cultura Pop”, dizendo que o underground é para perdedores – ao se referir à vontade de uma certa cena punk rock inicial de Londres em pertencer ao mainstream – acho que de alguma forma podemos nos questionar se o mainstream queer e feminino também seja para perdedores. Que, vira e mexe, nos apresentam confessionalismos vulneráveis como conduta de um fracasso redentor, que utiliza a si mesmo como ferramenta para as vitórias que são possíveis (apenas as que são possíveis, por enquanto).

Após passar em duas farmácias na noite em busca do remédio, fazia meu caminho de volta à casa de minha companheira, e um carro com som alto, cheio de homens brancos histéricos e falantes, veio passando logo atrás de mim, enunciado coisas que eu, obsessiva, não entendia. Até que, reduzindo a velocidade perto de mim, o grito: “Ô BIXAAAAAA, VAI PRA CASA!”.

Meu fracasso com a mulheridade, minha performatividade sapatão, me redimiu, me colocou em Contorno, de forma que eu não esperava desta vez. Uma vulnerabilidade fantasiada, ao mesmo tempo que real, reveladora de tantas dimensões e recortes, concedendo uma vitória improvável e vários fracassos já constatados (não só para mim).

Peguei a rua de casa, periférica à Contorno, já como uma Pequena Miss Sunshine, revigorada por tantos fracassos e vulnerabilidades, retornando de uma competição pelo sucesso invencível, e cantarolando Fiona Apple mentalmente: “Ladies, ladies, ladies, ladies… It would be insane to make it a competition”. Se existe alguma competição, nós já estamos, sem qualquer escolha, do lado dos perdedores. Portanto, que saibamos nos reconhecer nele e utilizá-lo.

No quarto, um dildo na cabeceira, com a camisinha frouxa pulando de sua extremidade superior. Conferindo as avaliações do produto no site de compras do sex shop, um comentário que dizia algo como: “Tem cheiro de tutti-frutti e não parece um pau – o que pra mim é bem legal”.

Humildemente, também acho, querida avaliadora.

Bruna Vilela é mestranda em Estéticas e Culturas da Imagem e do Som (UFPE), jornalista e musicista independente, integrando e colaborando com diversas bandas e projetos como guitarrista/compositora/vocalista em Belo Horizonte (Ginge, Náusea, Sessões Incógnitas, Ablusadas)

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