Rio lama: o antes e o depois Edição 63 L de Literatura Infantil 23 Junho, 202223 Junho, 2022 Por Ana Clara Bastos Editoria Maria Thereza da Silva Pinel Um dia, um rio, publicado em 2016, nasce como uma homenagem ao Rio Doce após o crime ambiental ocorrido em 2015, com o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana. De forma densa e sensível, o autor Leo Cunha e o ilustrador André Neves mostram as camadas de vida de um rio, do qual também sobrevivem sociedades, a partir de seu ecossistema. Na história, o rio é o personagem. É também um menino, que brinca junto com seus amigos, o pescador, o mergulhador, o barquinho, representados por crianças com olhares melancólicos e inocentes. O rio é um órgão vivo e, quando morre, um mundo inteiro se vai com ele: comunidades, bichos e plantas que existem ao seu redor: “Minha dança colore os mapas/ meu canto refresca as matas/ minhas veias irrigam florestas/ alimentam o cerrado/ aliviam o sertão”. As ilustrações são expressivas e profundas — nos dois sentidos da palavra — e, mescladas com o poema, enchem as páginas de melancolia. Ao relembrarem cenas de infância que os fizeram compreender a importância de um ecossistema vivo, autor e ilustrador, se sensibilizam pessoalmente com o tema da obra, como relatam em suas apresentações, ao final do livro. Para eles, essa é uma forma de homenagem ao rio e às comunidades que dele se alimentavam, ao mesmo tempo que fazem uma denúncia e dão um grito tardio para que desastres semelhantes não voltem a acontecer: “Um dia eu fui um rio” Em certo momento, uma figura enorme de lata encara o menino, de uma página à outra, e a vontade é de querer entrar no livro para avisá-lo que fuja dali. A indiferença com a qual a lataria olha para o garoto e lança a lama por todos os cantos faz o leitor se sentir pequeno e injustiçado, tanto quanto o menino. A partir daí, é tudo marrom; o rio já não é mais. É tom de vermelho que se confunde com sangue e lama, deixando um rastro de humanóides com olhar de peixe, vidrado, vagando por um deserto sem vida: “Minha aldeia mora submersa dentro de mim”. Para quem acompanhou as notícias do ocorrido, a recepção chega de maneira diferente em relação à criança leitora, a qual será apresentada ao acontecimento por meio do livro: a expectativa sobre o final pode vir a ser diferente, mas um aperto atinge o peito tanto em nova quanto em antiga leitura. Autor e ilustrador buscam, na nossa memória de espectador da tragédia, imagens que ilustraram notícias do ocorrido na época, com casas destruídas e cachorros solitários à espera de seus humanos perdidos, no meio da lama, sem a vida que dá a eles movimento. Leo Cunha faz ainda uma referência à Guimarães Rosa, trazendo a terceira margem para dar nome a esse lugar angustiante de espera por algo que nunca retorna: onde o menino se encontra aos lamentos. Há quem questione os elementos visuais presentes na obra — desenhos com crânios e expressões tristes das personagens —, por trazerem melancolia e morbidade para um livro destinado ao público infantil. Em contrapartida a essa ideia, entende-se que as palavras e as imagens nele presentes são sinceras quando se trata de relatar um acontecimento que, inevitavelmente, aborda temas como morte, e não se abstém de responsabilizar os culpados pelo crime ambiental chamado também de tragédia ou desastre. O livro não esconde a realidade que deseja expor, revelando uma injustiça real do mundo no qual as crianças habitam. É preciso conhecer e compreender uma realidade para ser capaz de mudá-la. Um livro é uma ponte, pois nunca um ponto final, para diferentes perspectivas mundanas, assim como um patrimônio cultural vivo de uma comunidade e sua história que um dia foi banhada e alimentada pelo patrimônio natural chamado Rio Doce. Soterrada por lama tóxica, a comunidade de Barra Longa ainda vive na memória de sobreviventes que dividem o peso de carregar e preservar sua história. Uma memória coletiva submersa que dói quando vem à superfície para falar naqueles que ainda esperam alguma reparação judicial. Contar essa história eterniza os vários personagens envolvidos. Esse livro, junto com as pessoas sobreviventes deste desastre, mantém vivo o injustiçado Rio Doce e todos os vitimados, para que esse grito tardio seja também um grito de alerta e revolução para que essa realidade não vire constante. Construída a partir da recepção de quem lê, há esperança de renascer, um dia. Ana Clara Bastos é graduanda em Letras, na UFMG. Arte e literatura foram, desde sempre, um aconchego que germinaram hoje seus estudos literários. Acredita na potência da leitura crítica, e que ela é possível para leitores de todas as idades.