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Rio lama: o antes e o depois

Por Ana Clara Bastos

Editoria Maria Thereza da Silva Pinel

Um dia, um rio, publicado em 2016, nasce como uma homenagem ao Rio Doce após o crime ambiental ocorrido em 2015, com o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana. De forma densa e sensível, o autor Leo Cunha e o ilustrador André Neves mostram as camadas de vida de um rio, do qual também sobrevivem sociedades, a partir de seu ecossistema.

Na história, o rio é o personagem. É também um menino, que brinca junto com seus amigos, o pescador, o mergulhador, o barquinho, representados por crianças com olhares melancólicos e inocentes. O rio é um órgão vivo e, quando morre, um mundo inteiro se vai com ele: comunidades, bichos e plantas que existem ao seu redor: “Minha dança colore os mapas/ meu canto refresca as matas/ minhas veias irrigam florestas/ alimentam o cerrado/ aliviam o sertão”.

As ilustrações são expressivas e profundas — nos dois sentidos da palavra — e, mescladas com o poema, enchem as páginas de melancolia. Ao relembrarem cenas de infância que os fizeram compreender a importância de um ecossistema vivo, autor e ilustrador, se sensibilizam pessoalmente com o tema da obra, como relatam em suas apresentações, ao final do livro. Para eles, essa é uma forma de homenagem ao rio e às comunidades que dele se alimentavam, ao mesmo tempo que fazem uma denúncia e dão um grito tardio para que desastres semelhantes não voltem a acontecer: “Um dia eu fui um rio”

Em certo momento, uma figura enorme de lata encara o menino, de uma página à outra, e a vontade é de querer entrar no livro para avisá-lo que fuja dali. A indiferença com a qual a lataria olha para o garoto e lança a lama por todos os cantos faz o leitor se sentir pequeno e injustiçado, tanto quanto o menino. A partir daí, é tudo marrom; o rio já não é mais. É tom de vermelho que se confunde com sangue e lama, deixando um rastro de humanóides com olhar de peixe, vidrado, vagando por um deserto sem vida: “Minha aldeia mora submersa dentro de mim”.

Para quem acompanhou as notícias do ocorrido, a recepção chega de maneira diferente em relação à criança leitora, a qual será apresentada ao acontecimento por meio do livro: a expectativa sobre o final pode vir a ser diferente, mas um aperto atinge o peito tanto em nova quanto em antiga leitura. Autor e ilustrador buscam, na nossa memória de espectador da tragédia, imagens que ilustraram notícias do ocorrido na época, com casas destruídas e cachorros solitários à espera de seus humanos perdidos, no meio da lama, sem a vida que dá a eles movimento. Leo Cunha faz ainda uma referência à Guimarães Rosa, trazendo a terceira margem para dar nome a esse lugar angustiante de espera por algo que nunca retorna: onde o menino se encontra aos lamentos.

Há quem questione os elementos visuais presentes na obra — desenhos com crânios e expressões tristes das personagens —, por trazerem melancolia e morbidade para um livro destinado ao público infantil. Em contrapartida a essa ideia, entende-se que as palavras e as imagens nele presentes são sinceras quando se trata de relatar um acontecimento que, inevitavelmente, aborda temas como morte, e não se abstém de responsabilizar os culpados pelo crime ambiental chamado também de tragédia ou desastre. O livro não esconde a realidade que deseja expor, revelando uma injustiça real do mundo no qual as crianças habitam. É preciso conhecer e compreender uma realidade para ser capaz de mudá-la.

Um livro é uma ponte, pois nunca um ponto final, para diferentes perspectivas mundanas, assim como um patrimônio cultural vivo de uma comunidade e sua história que um dia foi banhada e alimentada pelo patrimônio natural chamado Rio Doce. Soterrada por lama tóxica, a comunidade de Barra Longa ainda vive na memória de sobreviventes que dividem o peso de carregar e preservar sua história. Uma memória coletiva submersa que dói quando vem à superfície para falar naqueles que ainda esperam alguma reparação judicial.

Contar essa história eterniza os vários personagens envolvidos. Esse livro, junto com as pessoas sobreviventes deste desastre, mantém vivo o injustiçado Rio Doce e todos os vitimados, para que esse grito tardio seja também um grito de alerta e revolução para que essa realidade não vire constante. Construída a partir da recepção de quem lê, há esperança de renascer, um dia.

Ana Clara Bastos é graduanda em Letras, na UFMG. Arte e literatura foram, desde sempre, um aconchego que germinaram hoje seus estudos literários. Acredita na potência da leitura crítica, e que ela é possível para leitores de todas as idades.

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