Editoria Laura Barbi
Laura Barbi/ Letras: Como surgiu o CURA?
Juliana Flores: O CURA surgiu do desejo da Priscila (Amoni) e do Thiago Mazza de pintarem um prédio em BH. Ainda em 2015 comecei a pensar na ideia de um festival de empenas para que Thiago pintasse um prédio e na mesma época a Priscila, sabendo que eu estava começando a desenvolver esse projeto, me procurou dizendo que também pensava em criar um festival. Decidimos então convidar a Janaína (Macruz) para criar esse projeto com a gente por ser uma das produtoras culturais mais criativas e experientes de BH. Claro que o festival que criamos ficou muito maior que o sonho de 2 artistas de pintarem prédios na sua cidade. Começamos a idealizar um festival que chamasse atenção do mundo todo, ajudasse a colocar Belo Horizonte no mapa mundial da streetart e ajudasse a projetar e fomentar a cena local. Na época que estávamos mapeando as empenas no centro de BH, tivemos a ideia de criar um mirante de arte urbana, algo único no mundo todo. Dois anos depois da 1ª reunião conseguimos realizar a 1ª edição do CURA em julho de 2017.
LB/ Letras: Fale um pouco sobre as últimas edições do CURA, incluindo o que mudou de uma edição para outra.
JF: Talvez as edições que mais apresentaram mudanças foram as de 2019 e 2020. 2019 porque mudamos de bairro e fomos criar um mirante de arte na rua Diamantina, na Lagoinha. 2020 porque foi marcado pela entrada de curadoras convidadas, pela convocatória para selecionar um dos artistas, pela presença indígena e pela pandemia.
Em 2019, já provocadas por 2 moradores da Lagoinha – Filipe Thales, coordenador do Viva Lagoinha e Daniel Queiroga, do blog Casas da Lagoinha – a realizar uma edição do festival naquele bairro, tivemos a oportunidade de um dos nossos patrocinadores desejar uma edição do CURA na Lagoinha. Juntou a fome com a vontade de comer ou como diz o Filipe, a sede com a vontade de beber. Decidimos então mergulhar nesse território e realizar uma edição do CURA lá, dessa vez tendo a Lagoinha como inspiração para o line-up, mesas de debates, oficinas e programação de rua. Como no mirante da rua Diamantina não tinham muitas empenas visíveis, decidimos por pintar vários muros e fachadas de locais importantes para o bairro que não necessariamente são contempladas do mirante. Nesta edição tivemos uma maior presença de artistas da cidade, das 11 obras, 9 foram realizadas por artistas locais.
Em 2020, ainda no início do ano e antes mesmo do isolamento, decidimos que era hora de trazer novas perspectivas para a curadoria, espaço onde são tomadas as principais decisões criativas do festival. Para nós não bastava mais ampliarmos nosso olhar pensando em contemplar ao máximo a diversidade e sim colocarmos outras vozes para tomar essas decisões conosco. Convidamos as artistas Domitila de Paulo (Belo Horizonte, MG) e Arissana Pataxó (Coroa Vermelha, BA). Foi uma troca rica e muito importante que garantiu esse festival que todos puderem ver: potente, com uma presença artística 100% afro-indígena e uma programação de debates e aulões que tratasse de temas urgentes do nosso tempo. Como uma forma de compensar a ausência da programação presencial e das festas no mirante Sapucaí, trouxemos novas linguagens artísticas para o festival concebendo duas instalações: a Bandeiras na Janela que trouxe 5 obras de 5 artistas e a escultura inflável nos arcos, em que convidamos o artista Jaider Esbell que criou a obra Entidades. Certamente essa ampliação de linguagem artística na arte pública veio para ficar e o CURA nunca mais vai realizar apenas obras de graffiti e arte mural.
LB/ Letras: Essas mudanças/evolução são fruto das conversas e debates que acontecem durante o festival? Retorno do público/artistas?
JF: Essas mudanças são fruto de uma escuta muito ativa que temos desde a 1ª edição em 2017. Estamos sempre escutando atentamente as críticas, todas elas, para acolhermos para dentro do festival e continuarmos evoluindo. O CURA é um festival marcado pelo dissenso, e a gente sempre busca trazer para a edição seguinte as críticas que ouvimos na edição anterior. As mudanças não marcam só a programação artística mas também a estrutura do festival. Em 2020 por exemplo pela 1ª vez o festival foi lixo zero e teve a equipe formada por maioria negra, inclusive nos cargos de liderança como gestão e coordenação de infraestrutura. A gente sempre se preocupou em ser de verdade, que o nosso line-up representasse quem o festival é na essência e nesse trabalho invisível que não é visto nas ruas e nas redes sociais. Essa evolução também é fruto da evolução das próprias realizadoras, certamente não somos as mesmas que éramos em 2015 quando nos reunimos para imaginar o festival.
LB/ Letras: Por se tratar de um festival de arte urbana, a relação entre arte e cidade é intrínseca. Qual a relação de vocês com as cidades / ambiente urbano, em especial Belo Horizonte?
JF: Nossa relação com a cidade é de amor. Somos filhas da Praia da Estação, criadoras de blocos de carnaval, vivemos intensamente a cena cultural e política da cidade. Sempre frequentamos eventos de rua, festivais de arte, duelo de MCs no viaduto Santa Tereza….O CURA sempre foi uma declaração de amor por BH, fruto de um desejo de que a cidade fosse notada para além das montanhas como essa cidade criativa e linda que é, sonhávamos que as pessoas vissem BH sob os nossos olhos, olhos de quem ama e admira a cidade, seus artistas, suas pessoas e sua cena cultural.
LB/ Letras: Vocês lançaram o CURA em 2017, no mesmo ano em que o Doria apagava os murais na Av. 23 de Maio em São Paulo. O quão importante foi (e é) o apoio da Prefeitura de BH/ Secretaria de Cultura/ Belotur para que o CURA aconteça? Pois grande parte, senão todas os edifícios estão localizados no hipercentro de BH em áreas tombadas pelo patrimônio cultural.
JF: No início de 2017 entreguei nas mãos do prefeito Kalil um guia da Lonely Planets chamado Streetart, mostrando para ele que pela 1ª vez na história a maior editora de guias turísticos do mundo tinha publicado um guia só para os amantes de arte urbana e que a única cidade brasileira que figurava nesse guia era São Paulo – e que meu sonho na reedição prevista pra 2023 era BH estar nesse guia também. Na ocasião notei que o prefeito, além de apreciar muito arte urbana (sei que sua esposa Ana Laender também é grande fã de arte de rua), tinha um desejo de se contrapor a gestão de Doria em SP.
Por mais que o apoio da prefeitura ao CURA sempre tenha sido importante, especialmente no que diz respeito a abertura de diálogo e facilidade em conversar e obter informações, nunca foi fundamental para a realização do festival, mas claro, foi um facilitador não ter a Prefeitura como obstáculo para realizar um projeto tão complexo. O patrocínio do CURA sempre foi pelas leis de incentivo ou patrocínio direto junto à iniciativa privada.
Em relação à Diretoria de Patrimônio, fizemos o caminho das pedras normal, como qualquer pessoa. Buscamos orientação junto aos técnicos da Diretoria sobre como montar a documentação para autorizar as pinturas no hipercentro, área tombada (aliás, toda a área dentro da Av. do Contorno é tombada, bem como a Lagoinha). Protocolamos a documentação e uns 2 meses depois fomos convidadas para fazer a defesa da nossa proposta durante a reunião do Conselho de Patrimônio, que é formado por representantes da sociedade civil e poder público. Na reunião aprovamos por unanimidade e sob aplausos a pintura dos prédios. Isso não é mérito apenas do festival, mas também do Conselho que é formado por pessoas que apreciam arte e tem uma visão atual sobre conservação do patrimônio público e relação entre arte e espaço público. Mas sim, tivemos apoio da Prefeitura em todas as 5 edições realizadas, seja na facilitação de diálogo junto a órgãos como a Secretaria de Regulação Urbana e BHTrans, seja no apoio de limpeza do mirante pela SLU.
LB/ Letras: Qual a relação com os moradores/proprietários dos prédios/apartamentos etc. onde as empenas são pintadas?
JF: Para pintar os prédios, o CURA precisa ter a autorização formal de todos. E cada caso é um caso. Temos que “vender” o projeto e mostrar sua relevância. Para a edição de 2017 foi mais complicada porque eu, que cuido dessa relação com os prédios, percebi que a arte urbana era estigmatizada, muita gente tinha medo do prédio ficar “feio”. Foi necessário muito diálogo, participar de assembleias… depois desta edição ficou mais fácil falar do festival porque estava falando de algo que as pessoas já conheciam, não era mais sobre uma intervenção desconhecida. É importante considerar que até 2017, a única pessoa que tinha pintado empenas em BH tinha sido um artista francês chamado Hughes Desmazières, que na década de 90 pintou 10 prédios junto com um assistente belo-horizontino no melhor estilo “na tora”, usando cadeirinha e contando com o apoio de tinta de alguns fabricantes. Até fizemos um minidoc chamado Quem se lembra do Tiradentes? recuperando esta história. Então não tínhamos memória de produção para consultar e a própria prefeitura teve que lidar com uma situação até então inédita.
LB/ Letras: Como é o processo de pré produção/ produção do CURA, no sentido não só da curadoria em si, como também se há uma seleção de um tema central a ser trabalhado em cada edição? Há a participação/ aprovação das propostas artísticas com os moradores dos prédios que serão pintados?
JF: Importante ressaltar que o CURA nunca submeteu proposta artística do mural ou graffiti para obter autorização, nem junto à Diretoria de Patrimônio e nem junto aos prédios. Essa sempre foi uma luta nossa e nunca admitimos que a autorização dependesse da aprovação de um esboço justamente por entender que nem o Patrimônio, nem os prédios e até mesmo nós temos “autoridade” para dizer que aquela proposta pode ser pintada ou não. O que a gente estabeleceu junto a prefeitura, prédios e artistas foi a única regra: é proibido pintar obra que traga propaganda político-partidária ou que seja ofensiva a qualquer gênero, raça, orientação sexual e credo/ religião. Respeitando essa regra, tudo pode. A exceção foi a pintura de um mural abstrato pela artista argentino Elian Chali no prédio do SENAI Lagoinha que está em processo de tombamento. Foi uma condição para que fosse autorizada a pintura, criada na reunião do Conselho de Patrimônio em que foram aprovadas todas as intervenções do CURA Lagoinha com exceção do SENAI, quando foi decidido que na reunião do mês seguinte deveríamos apresentar o layout da obra uma vez. O interessante dessa reunião foi que, por 6 votos a 4 nos autorizaram pintar sob o argumento de que aquele conselho não tem capacidade técnica de dizer se aquela imagem é ou não adequada ao edifício, que já havia o precedente de autorizar a pintura, então não tinha sentido condicionar a submissão de um layout da obra.
Sobre tema central do festival a gente nunca define um tema específico, mas contemplamos alguns assuntos mais sensíveis para aquela edição que desejamos falar. Na edição de 2018, por exemplo, queríamos honrar a origem do graffiti que é a arte da caligrafia e fizemos uma Empena de Letras, trazendo 21 artistas de caligrafia urbana para criar essa obra e ao lado desse imenso painel de letras convidamos um artista que também já foi pixador a criar uma obra que retrata um jeguerê, que é essa torre humana que os pixadores e artistas vandal fazem para pintar. O graffiti nasceu ilegalmente na década de 80 no Bronx, e como festival de arte urbana quisemos homenagear as origens dessa arte.
Na Lagoinha pensamos muito no território como tema para todo o festival e nesse ano alguns assuntos atravessaram a curadoria como o afeto entre negros e a arte indígena contemporânea. Talvez um dia o CURA amadureça para ser um festival com um tema específico, como tantos festivais de arte pelo mundo, mas por enquanto preferimos não definir tema para que possamos falar de assuntos diversos e sensíveis para nós naquele momento.
LB/ Letras: Há um contrato com o poder público/privado sobre a duração/manutenção/conservação das pinturas?
JF: Há um contrato com os prédios em que está acordado que eles podem repintar as empenas após 5 anos e há uma recomendação da Diretoria de Patrimônio para repintar os prédios muito danificados. Paralelamente, fizemos um termo com a prefeitura em que o festival estabelece que as obras do CURA são obras de arte pública que pertencem à cidade, mas fizemos esse termo apenas das 6 primeiras empenas e temos desejo de fazer das outras 8. Achamos importante que seja esse o entendimento jurídico das obras, elas têm autor, mas são obras públicas. Em relação ao festival temos desejo de apenas repintar uma obra que se danificou muito rápido porque fizemos um mau trabalho de preparo da empena (todas as empenas são reparadas antes da pintura, justamente para garantir uma maior durabilidade).
LB/ Letras: Pra mim, o CURA não é só um Festival de Arte Urbana mas também um olhar generoso sobre a nossa relação com a arquitetura, a arte, a cidade e uns com os outros. Em 5 edições vocês pintaram 28 painéis, sendo 18 empenas de prédios, maior número já pintado por um único festival, além das duas instalações artísticas. É um feito que muda não só a paisagem de uma cidade como também a relação de todos nós que vivem e se locomovem pela cidade. Para muitos é o primeiro contato que terão com artes visuais. O quão importante é para vocês esse alcance e o poder de ampliação e transformação da arte?
JF: A proposta do festival, e acredito que de todos os festivais de arte urbana/arte pública, é justamente promover o encontro entre pessoas e arte, colocar a arte no dia a dia das pessoas, interromper o cotidiano da população com as obras. Mas a gente não quer apenas colocar arte no dia a dia das pessoas, mas também contribuir para a ampliação da percepção estética de quem passa pela obra e, por que não, fomentar debates e provocar. Não é só colorir o cinza, como muitos falam, mas criar questionamentos e reflexões. E claro, mudar a percepção que temos sobre a arquitetura que vemos sempre com o mesmo olhar e talvez por causa de uma nova obra vamos perceber aquele espaço de forma diferente. Uma obra em que tivemos a intenção clara de “renovar” o olhar sobre um ícone da arquitetura de BH foi a instalação Entidades de Jaider Esbell. Concebemos uma escultura inflável nos arcos, o convite para o artista foi esse: criar uma escultura inflável nos arcos, o que ele iria propor sairia 100% da cabeça dele, mas ele tinha que criar sua obra que funcionasse num suporte inflável e que fosse instalada nos arcos.
LB/ Letras: Acredito que a arte e a cultura devem ser acessíveis por todos e feita para todos. O CURA amplia questões latentes como a descolonização, a resistência artística, o racismo, a mulher/ mãe e o feminino, a negritude, a comunidade LGBTQIA+ etc. Torna o invisível visível, super visível. E o mais interessante, de forma colaborativa e inclusiva. Fale um pouco sobre esse lado do CURA que nasce da diversidade e da colaboração, movimentando toda uma cadeia produtiva artística local/nacional/internacional.
JF: Sei que pode parecer preciosismo, mas aprendi ao longo das edições que o CURA não torna o invisível visível, porque os artistas negros, indígenas e periféricos são visíveis, o que acontece é que o mercado quase sempre não os notam, mas eles estão lá muito visíveis e resistentes. O que o festival faz talvez é potencializar essa cena, amplificar essas vozes. O que percebo também que não é um movimento só nosso, mas da cena. Artistas e curadores negros, indígenas e LGBTQ reivindicaram seus espaços, ocuparam esses espaços, lutaram para serem reconhecidos como autor dessas narrativas e não como “objeto” de estudos como aconteceu ao longo da história da arte. Então se um festival de arte pública contemporânea não está atento a este movimento ele consequentemente vai ficar velho e pouco interessante. Se a gente almeja uma relevância mínima dentro da cena artística, temos que entender/perceber esses movimentos e acolher toda essa diversidade. O CURA começou como um festival feminista dentro de uma cena muito machista e dominada pelos homens, que é a cena da arte urbana. Logo na 1a edição já vimos que isso era pouco, muito pouco, tivemos um line-up de empenas 100% branco mesmo com maioria feminina e nenhum artista do eixo Rio/SP. Ou seja: já começamos fazendo algo que até então nenhum festival de arte urbana no Brasil tinha feito (nem no mundo ainda tinha festival com line-up de maioria feminina), mas percebemos que estávamos atrasadas, isso não era suficiente. Era necessário ter o protagonismo negro, especialmente da mulher negra. Como disse anteriormente, nossa escuta ativa nos ajudou a evoluir. Ao longo das edições essa forma colaborativa se deu mais por termos esta escuta sensível e atenta, depois vimos que a colaboração tinha que acontecer na curadoria. Acredito que por ser um festival muito difícil de ser realizado, que exige uma luta grande e muito trabalho, éramos apegadas a esse lugar de decisão criativa: ralamos pra caramba e não vamos poder fazer o trabalho mais divertido e compensador que é justamente o de pensar artisticamente o festival? Mas fez parte do nosso amadurecimento perceber que trocar com outras curadoras seria ainda mais interessante, especialmente do ponto de vista criativo, como foi nessa edição de 2020. Desde a 1ª edição não queríamos ser feministas ou diversas apenas na seleção dos artistas, mas também em toda a estrutura e equipe e isso também foi evoluindo e hoje estamos mais diversas e inclusivas do que em 2017.
LB/ Letras: Vejo com grande alegria que este é o primeiro ano que são 3 mães produzindo o CURA. Fale um pouco sobre esse lugar da maternidade e da feminilidade no mercado da produção cultural e se já sentiram preconceito ao longo desses anos por serem mulheres…
JF: Sempre fizemos questão de mostrar que o festival é realizado por 3 mulheres que são mães. Na 1ª edição eu já tinha tido um filho (perdi com 9 meses de gestação) e Jana estava grávida. Na edição especial 120 anos de BH eu estava grávida novamente e Jana em licença maternidade. Na edição de 2018 estávamos as duas com bebês e levando eles pra base de produção. Na edição da Lagoinha, foi a Priscila quem engravidou. A gente não apenas manifesta publicamente isso como colocamos nossos filhos “na roda” em pleno CURA, às vezes não tem uma cuidadora por perto, ou os pais, então os nossos amigos que trabalham conosco também se revezam para cuidar e vamos administrando.
Acreditamos que o mercado de trabalho já faz muito bem seu papel de invisibilizar as mães. Estatisticamente falando (pesquisa da FGV), metade das mães são demitidas em até um 1 ano após retornar da licença maternidade. A sociedade espera que as mães criem e eduquem as crianças, mas não ampara essas mães. Não existe flexibilidade no trabalho, é como se tivéssemos que fingir que não temos filhos, que temos que ser exatamente a mulher que éramos antes de parir, com a mesma disponibilidade. Isso não existe! Então para nós a maternidade também é um local de militância. E acreditamos ser importante enfatizar que um festival complexo e grande como o CURA é realizado por 3 mulheres mães, justamente para mostrar que somos tão capazes de realizar como qualquer homem.
LB/ Letras: Como foi a decisão de manter o festival neste ano tão inesperado e de convidar duas novas curadoras para fazer parte do CURA 2020? E também de ampliar as ações e incluir intervenções urbanas e uma chamada aberta na programação?
JF: A princípio confesso que pensamos em adiar o festival para 2021, por vários motivos: empatia pela tragédia que vivemos, a impossibilidade de realizar a programação presencial e as festas no mirante e até o risco que as equipes que realizam as obras poderiam correr. Mas após o baque inicial, começamos a pensar sob outras perspectivas como entender que 2021 também é um ano que pode ser que não tenha eventos com aglomeração. Já havíamos captado os recursos para executar o festival e a pandemia provocou uma crise forte na economia, especialmente no segmento da cultura. Então num ano tão difícil para a economia criativa, era importante colocar esse dinheiro para circular. Para você ter uma ideia, o CURA contrata mais de 70 pessoas diretamente, além dos nossos fornecedores e parceiros. O carro chefe do CURA são as obras de arte pública e era permitido pela legislação da cidade realizar as obras durante a pandemia, então depois de todas essas ponderações decidimos seguir adiante e realizar o festival sob forte esquema de segurança sanitária para as equipes.
As curadoras foram convidadas no final de 2019, já havíamos decidido que precisávamos colaborar com mulheres de visões e vivências diversas das nossas. Mas claro que a pandemia nos afetou na hora de pensar o festival, pensar os temas que queríamos discutir, artistas que queríamos trazer. Mas sempre com a intenção de apontar caminhos e não falar de doença porque o ano já era muito trágico. Inclusive pela 1ª vez decidimos nos apropriar da palavra CURA, que sempre tratamos como a sigla para Circuito Urbano de Arte que de fato é, e deixamos para outras pessoas significar ou não o termo cura para o que fazemos. A gente sempre entendeu que um festival não tem capacidade de curar ninguém ou algo, que essa experiência é muito subjetiva, mas num ano de doença e morte não tinha como fugir do nosso próprio nome.
Sobre a chamada aberta para selecionar um artista também já era uma decisão que tínhamos tomado ainda em 2019, sabíamos que era a hora de abrirmos para essa ação. Como sempre pintamos poucos prédios porque é uma ação que custa muito, e tem dezenas de artistas que gostaríamos de trabalhar, adiamos por muito tempo essa convocatória. Mas sentimos que o festival precisava ampliar sua escuta, inclusive na seleção dos artistas das empenas. As instalações começaram a ser pensadas como uma forma de compensar a falta da programação presencial, a ideia inicial foi bem simples, usar a verba que tínhamos para a programação do mirante e entregarmos mais obras de arte. Mas foi uma ação que nos deu tanto prazer, criativamente falando, e repercutiu tão bem, que não vejo mais o CURA sendo realizado sem pensar em novas linguagens e suportes. Além disso, por causa da pandemia a nossa programação de debates e aulões foi virtual e hoje segue disponível no nosso canal de youtube (www.youtube.com/CuraCircuitoUrbanodeArte). Também sempre fizemos uma feira de arte no final de semana de encerramento e uma forma de compensar essa ausência foi fazer uma galeria virtual (www.cura.art/galeria).
LB/ Letras: No Instagram do CURA diz-se que “a ação mais combativa” deste ano foi incluir a instalação urbana Bandeiras na Janela com obras dos artistas Célia Xakriabá, Denilson Baniwa, Randolpho Lamonier, Ventura Profana e Cólera Alegria, uma “alusão ao ato político e identitária de se levantar bandeiras”. Fale um pouco sobre a seleção dos artistas e como foi sua repercussão.
JF: Bom, quando começamos a conceber as instalações a 1ª que decidimos foi por uma que dialogasse com o tempo que vivemos: a manifestação através das janelas, virtuais ou não. Lembramos dos italianos cantando pela janela, das mil e uma lives que invadiram nossos feeds, mas também refletimos sobre a impossibilidade de se manifestar nas ruas num ano difícil como esse, em que há várias razões para ocuparmos as ruas e protestarmos, mas somos impedidos pela pandemia. Então por que não colocar bandeiras na janela? Para pensar nos artistas que convidaríamos, fomos atrás justamente de artistas que já tem a sua produção artística marcada pelo manifesto, pelo protesto, pela crítica social. Quando pensamos no Denilson, tínhamos em mente a obra icônica dele que coloca o nome da cidade e escreve terra indígena (aqui seria Belo Horizonte terra indígena), mas sempre deixamos claro no convite a liberdade artística e Denilson quis trazer uma imagem que questionasse a invisibilização dos artistas indígenas ao longo da história da arte. Randolpho tem uma série famosa chamada Profecias que pensamos que cabia muito bem nesta instalação. Essa séria nunca tinha sido exibida em BH (e nem poderia, todas as obras desta série já foram vendidas e estão em instituições diversas) e como a nossa ação era reproduzir em grande formato as obras, poderíamos viabilizar ao menos a exposição de uma das obras de Profecias. Ventura teve uma participação marcada por polêmica e censura na exposição dos residentes da Bolsa Pampulha em 2019 em BH. Achávamos que seria perfeito trazer a obra Sem Senhor para o festival, não só como uma forma de reparar o que ela viveu na cidade como também é uma frase perfeita para o momento que vivemos de autoritarismo e controle dos nossos corpos pela religião, pelo governo, pelo militarismo. Célia foi uma artista que trouxemos principalmente pelo seu ativismo na luta indígena e Cólera Alegria realiza um trabalho que talvez mais tenha nos inspirado para essa ação: uma arte-protesto. Chegamos até pensar em fazer essa instalação só com obras do Cólera Alegria e mudamos de ideia por achar que essa instalação deveria ser polifônica e com artistas diversos. Essa ação colaborativa dos artistas e criativos que compõe o Cólera Alegria nos inspirou por ser uma ação que acontece através das janelas virtuais (apesar de sabermos que várias obras já foram expostas presencialmente) e por estar sempre manifestando contra o problema do “momento”, ou seja: um protesto artístico muito contemporâneo. A escolha do local se deu pelo impacto visual (o CURA sempre pensa muito visualmente as suas obras e a sensação que elas podem provocar seja pela sua dimensão seja pelo local escolhido) e também porque essa grande empena de janelas da antiga escola de Engenharia da UFMG é vista da Sapucaí. Assim teríamos duas instalações: uma em cada ponta do mirante de arte. E a repercussão foi excelente, especialmente dentro da crítica especializada. Pela 1ª vez fomos notadas pelo mercado de arte contemporânea! E na cidade a repercussão foi ótima, confesso que esperava alguma polêmica, mas isso não ocorreu.
LB/ Letras: Conte um pouco mais sobre como surgiu a idéia da obra “Entidades” do artista contemporâneo indígena Jaider Esbell, realizada em um dos ícones arquitetônicos da capital, o viaduto Santa Tereza, umas das grandes surpresas do festival – e sobre os ataques sofridos por esse trabalho em tempos de fake news.
JF: Essa obra foi pensada pela curadoria para ser a sensação do festival, para ser uma obra que atraísse olhares e flashes. Queríamos uma obra de fácil assimilação e que fizesse sucesso entre todas as pessoas, enfim que fosse uma obra popular. Então pensamos que a forma de atrair a atenção da população que circula pelo centro diariamente era conceber uma obra de grande impacto visual. Para que o artista não precisasse vir a BH por causa da pandemia, também consideramos uma obra que fosse possível de ser feita a distância (posteriormente por decisão de Jaider ele veio a BH para ser o assistente de pintura da Daiara). Chegamos então no suporte do inflável. Na hora de pensar o local, chegamos a considerar a Praça da Estação e o prédio do Museu de Artes e Ofícios. Mas quando veio a ideia do Viaduto sabíamos que tinha que ser lá. Chegamos a ponderar a dificuldade de autorizar a instalação por ser tratar de local tombado e também os custos da ação (teríamos que colocar um segurança 24h, por exemplo), mas o CURA gosta de desafios e de surpreender. Seguimos adiante e por fim foi uma execução/ produção relativamente fácil. Interessante pensar que quando convidamos o Jaider tínhamos em mente as cobras, mas como sempre não “brifamos” o artista ou encomendamos a obra, fizemos o convite pro Jaider como fazemos pros artistas das empenas: a linguagem é essa, no caso escultura inflável, e o local é esse, os Arcos. Na reunião para discutir a instalação, quando mostramos as fotos dos arcos, imediatamente o Jaider disse: já sei, vou fazer duas cobras grandes. E na hora já rascunhou como imaginava a escultura. Foi algo mágico! Jaider sempre fala que foi o universo que nos colocou juntos nessa edição, não só nós da curadoria e ele, mas todos os artistas. A gente curte bem esse mistério e essa forma de enxergar a vida. Foi um processo bem lindo.
E quando colocamos as cobras e acordamos, a imagem já corria nas redes. Foi um sucesso. Viralizou! Foi além do esperado. E a gente brinca que o auge do viral é virar fake news. Enxergamos com bom humor e não nos preocupamos com os ataques à obra porque nossa produção estava preparada para garantir a segurança, mas confesso que lamentamos o cenário geral de ódio, de racismo e preconceito. Mas não é algo que atinge só ao CURA, mas ao mundo todo.
LB/ Letras: Parte do conteúdo/ações paralelas que em outras edições foram presenciais tiveram que ser adaptadas para o contexto de distanciamento social. Como se deu essa transição de parte da programação para o formato digital e quais as dificuldades e os benefícios desse novo formato? É um formato híbrido que veio para ficar?
JF: Essa transição pro mundo virtual foi bem óbvia. Todo mundo fez isso muito antes de nós, apenas seguimos esse fluxo. A vantagem é que por ser uma programação online, pudemos pensar em convidados do mundo todo, algo improvável para a programação presencial por conta dos custos de passagem e hospedagem. Tentamos muito trazer a Grada Kilomba, por exemplo, que adora o festival mas estava super ocupada. A Cristiana Tejo participou lá de Lisboa. Tivemos o Aílton encerrando a programação, enfim, foi muito interessante poder conceber a programação sem limite territorial. E sim, acho que o formato híbrido veio para ficar não só pro CURA mas para todos os festivais. A pandemia só acelerou esse processo. Não imagino mais realizar um debate presencial sem a transmissão pela internet.
LB/ Letras: Em adição ao festival em si, o CURA atua com grande relevância na formação de novos artistas em um trabalho educativo não menos significativo…
JF: O CURA tem esse norte, trazer jovens artistas, artistas que ainda não pintaram grandes murais, treinar artistas jovens para serem assistentes de pintura para dominarem técnicas e depois eles terem condições de assinarem seus trabalhos. O CURA já deu curso NR25 para mais de 70 pessoas, que é uma qualificação necessária para trabalhar em altura. Também já fizemos uma residência artística e temos muito interesse em repetir essa ação. A própria feira de arte que sempre fizemos em parceria com a Fluxo fez com que artistas que nunca tinham pintado em um suporte “comercializável” fizesse – e vendesse – uma obra pela primeira vez.
LB/ Letras: O CURA chegou ao fim em 2020 com os títulos de “Maior empena ja pintada por uma artista indígena (2020)”; “1ª escultura/instalação de arte por um artista indígena em BH” (2020); “Maior empena pintada na América Latina (2017/2020)”, “Maior empena pintada por uma artista mulher (2017)”; “1º mirante de street art do mundo (2017)”, além dos já citados “Maior Festival de Arte Urbana de MG” e “Maior coleção de arte mural em grande escala feita por um único festival brasileiro”. Vocês tinham alguma ideia em 2016 de que alcançariam esse mérito? Parafraseando o curador Hans Ulrich Obrist faz em suas séries de entrevistas a artistas, arquitetos e curadores: Qual projeto ainda pretender realizar nas próximas edições? Algum artista que vocês gostariam de convidar? O que podemos esperar do CURA 2021?
JF: É até uma piada interna nossa essa “mania” do CURA de querer esses títulos de maior, único, primeiro etc. Acho que tem muito a ver com esse pioneirismo, querer quebrar as regras, mudar as estruturas, pensar no futuro. Mas quando começamos a conceber o festival, a gente tinha a intenção de pintar muito grande pra chamar atenção, pra nós tamanho também era importante, não só a qualidade artística ou o protagonismo feminino (depois ampliamos para outros protagonismos). Estávamos pesquisando festivais de arte urbana mundo afora e sabíamos que BH tinha as maiores empenas do mundo e poderia ser um festival que chamasse atenção por seus murais gigantes, por isso a opção de pintar o centro, onde tem essas “telas” gigantes. A ideia do mirante de arte pública veio também não só para aproveitar a geografia da cidade e criar um espaço de contemplação e fruição artística – porque normalmente a arte urbana interrompe o cotidiano, mas dificilmente nos convida a parar e apreciar – mas também para tornar o festival singular: nas nossas pesquisas não tinha nenhum outro festival no mundo que criou um espaço de contemplação das obras onde de um único ponto é possível apreciar o conjunto de murais realizados por um único festival.
Em 2021 queremos mudar de local, criar uma nova visada de arte. Já até sabemos para onde vamos, mas não posso compartilhar agora. Também queremos propor obras de arte pública em diferentes suportes e linguagens. Convidar outras curadoras para trabalhar conosco. Mas vamos pensar nisso tudo a partir de fevereiro de 2021. Sobre artistas que queremos trazer, existe um desejo de ter em BH obras dos gigantes da arte urbana do mundo: Os Gêmeos, Aryz e Blu. Quem sabe um dia?
Juliana Flores é umas das 3 “meninas do CURA”. Formada em jornalismo pela PUC Minas (2007), trabalhou com telejornalismo na Rede Minas, fundou a editora Aletria, com sua mãe e sócia Rosana Mont’Alverne (2009) trabalhando como coordenadora editorial e gestora de projetos literários. Em 2017 fundou a Pública Agência de Arte com Janaina Macruz onde desenvolve outros projetos de arte pública. Paralelamente administra a carreira do pintor mineiro e seu marido Thiago Mazza. É mãe do José de 2 anos e 5 meses, da Rita que está na barriga com 7 meses e do Francisco, seu 1º filho, que já virou anjinho.
Laura Barbi é curadora e produtora cultural cujas áreas de pesquisa incluem arte contemporânea, identidade cultural e diplomacia cultural. Entre 2008 e 2015 trabalhou como gerente de projetos na Embaixada do Brasil em Londres, responsável pelas mostras e eventos realizados na Gallery 32 e Sala Brasil – ambos mantidos pela Embaixada como uma plataforma permanente para a cultura brasileira no Reino Unido. Mestre em Design Gráfico (University of Arts London) e especialista em Gestão Cultural (Birkbeck College – Londres) é doutoranda em artes visuais (EAU-UFMG) onde pesquisa arte contemporânea e identidade cultural. Em 2017, lançou GAL, um projeto independente de pesquisa e circulação da arte contemporânea brasileira que ocupa espaços vazios na cidade com exposições e eventos temporários.