Editoria Maria Thereza da Silva Pinel
Entrevista com Sofia França, influencer digital de leitura
Uma das grandes alegrias de um leitor assíduo é poder compartilhar experiências de leitura e conversar sobre livros: indicar, criticar, elogiar, discutir, pensar… Estar longe da escola, da universidade e do nosso círculo social tem sido mesmo bem difícil no último ano. Nesse momento, evoco as palavras do poeta brasileiro Mário Quintana para retomar uma velha relação pessoal com a literatura, de quando os personagens das histórias me acompanhavam e me abrigavam onde quer que eu estivesse: “O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado”.
Mas, não basta ler; queremos compartilhar e ouvir outros leitores. Para manter essa interação tão importante, testemunhamos a criação de diversos perfis em redes sociais, seja de editoras, professoras, escritores e, claro, leitores, que desenvolvem conteúdo e estão sempre presentes no universo virtual. Nos comentários de uma dessas lives rotineiras que eu tomei o costume de assistir, conheci Sofia França, uma pequena influencer digital que tem 10 (quase 11) anos, e mais de 2.500 seguidores no Instagram. Ela mora em Recife (PE) com suas mães, Daniella e Gisele, e os irmãos Joaquim e Laís.
Em seus canais, todos criados durante a pandemia, ela produz conteúdo relacionado ao universo da literatura infantil e infanto-juvenil: resenhas, dicas de livros, conversas com autores, lives, biografias de escritores e rodas de leitura. Nessa entrevista, ela conta mais sobre seus gostos e preferências, faz críticas e elogios a histórias e autores, e preenche nossas esperanças, assim como os livros vem preenchendo vários vazios da pandemia, para ela e para todos nós.
Maria Thereza/ Letras: Como surgiu a ideia de fazer um canal literário na internet?
Sofia França: Minha mãe queria fazer um projeto, nada muito trabalhoso, mas que eu fizesse com ela. Então ela me perguntou se era uma boa ideia fazer sobre pets, viagens ou livros, e eu, obviamente como na quarentena me salvou tanto, respondi: “Livros! E tu ainda tem dúvida do que eu vou falar?”. Daí ela criou o blog e depois fez o canal no YouTube. Daí minha mãe Dani sugeriu de criar o Instagram, e depois que uma tia minha, tia Priscila, falou pra eu fazer uma live com uma amiga, eu comecei a bater muitos seguidores. Minha mãe fez o primeiro vídeo comigo, e o pessoal gostou. Mas ela me botou pra fazer sozinha depois. E não foi como trabalho pra mim, foi, assim, como uma brincadeira, porque eu sempre gostei de falar sobre os livros. Quando eu acabo de ler um livro, eu falo pela casa inteira sobre a história. Meu irmãos adoram!
MT/ Letras: Quando você era pequenininha, contavam história para você?
SF: A minha mãe contava muita história pra mim. Ela é professora, então ela trazia muitos livros que ela pegava na biblioteca da escola. Mas, quando chegou nos meus oito, sete anos, ela queria que eu fizesse o inverso: que eu contasse a história pra ela. Pra aperfeiçoar minha leitura, né, porque eu ainda estava lendo assim, meio robozinho. Então eu comecei a ler pra ela, a gente discutia e minha mãe até falava comigo que a minha leitura é a única que ela entende, porque quando outra pessoa lê, ela ainda precisa ver todo o texto pra entender. A gente ri, a gente conversa de livros… Hoje em dia eu já estou lendo mais pros meus irmãos, e eu amo ler com eles. Minha irmã aponta pras ilustrações e fala tudo o que ela sabe.
MT/ Letras: Qual é o primeiro livro que você tem a lembrança de ter lido e gostado?
SF: Foi o livro O menino azul, da Cecília Meireles. Fala sobre um menino que quer um burrinho que o ensine várias coisas e atravesse o mundo, usando a leitura; que leia histórias pra ele, que saiba o nome de todos os rios e ensine várias coisas. Na época, eu era o menino e minha mãe era o burrinho e, quando a gente terminava de ler, era um ritual: eu subia nas costas dela e a gente brincava pela sala. Como ela me ensinava e me ensina várias coisas, eu denominei ela meu burrinho azul. Agora eu é que sou o burrinho dos bebês, meus irmãos, porque eu ensino várias coisas a eles. Acho que esse livro é muito importante também porque pegou a figura do burro e colocou um burrinho que sabe de várias coisas, o nome dos lagos, das flores, de tudo. Então eu gosto bastante desse livro por isso. Eu sempre quis ser um burrinho, saber e ensinar muitas coisas.
MT/ Letras: Você tem um autor preferido?
SF: Sim, é o Jonas Ribeiro. Todo mudo deveria conhecer ele! Além de ser um autor perfeito, ele vive conversando comigo. Os livros dele sempre têm alguma coisa a ensinar, pra gente assim, mais grandinho. Mas acredito que ele também tenha livros pra crianças pequenininhas. Tem um sobre empatia, e daí o menininho se bota no lugar dos outros pra perguntar o que as pessoas fariam: da professora, do pedreiro, do dentista, de todos. Outro sobre os cuidados da natureza; e tem o Gavetas, que fala sobre sentimentos e, algumas vezes, as gavetas podem ser abertas e trazem sentimentos ruins, às vezes sentimento bons… E ninguém pode invadir nossas gavetas! Ele sempre fala isso. Tem outro sobre um menino que tinha leucemia, tudo isso de uma forma pra criança entender. Eu li os livros dele pros meus irmãos, e eles adoraram, as ilustrações, tudo. O livro do Jonas Ribeiro pode ter um formato pra crianças mais grandinhas; óbvio que meus irmãos não vão entender sobre empatia, né, mas eles gostam das histórias.
MT/ Letras: Quando você escolhe um livro para ler, quais são seus critérios? O que você procura?
SF: Eu vejo a capa mais bonita, um título e uma letra que me chamem bem a atenção e, o mais importante, o que não pode faltar, eu pego um livro e já vou atrás pra ler a sinopse e saber do que se trata. A maioria das vezes eu já fui enganada pela capa e, quando fui ler a sinopse, não era nada do que eu estava pensando que seria. A sinopse também me ajuda bastante na hora de fazer a resenha dos livros. Eu até queria pegar o livro, folhear, olhar… Mas muitos livros nas livrarias são lacrados.
MT/ Letras: O que uma história precisa ter para ser uma boa história?
SF: Ela precisa ter um ensinamento, independente do que seja. Uma história que a todos agrade, até quem tem um gosto mais específico. Ela tem que ter a sua essência, seu jeito de contar a história, porque cada livro tem seu jeito de contar. Tem que dar informações pros leitores, ilustrações bonitas, independente da faixa etária, adulto, infanto-juvenil, criança.
MT/ Letras: E você acha que a poesia também ensina alguma coisa?
SF: Eu acho… Eu tenho certeza, na verdade, que a poesia ensina. Pra mim, a poesia é uma linguagem bem bonita, eu amo recitar (porque é recitar, não é falar poesia, minha mãe sempre me corrige). Mas voltando, nela eu aprendo um vocabulário novo, em frases pequenininhas, porque a poesia é breve, né.
MT/ Letras: Qual tipo de história você acha que está faltando?
SF: A minha família é uma família LGBT, né, eu tenho duas mães. Mas eu tenho um pai, então isso já é difícil pra sociedade. Meus irmãos não têm pai. Voltando no livro, eu acho que devia ter mais histórias sobre diversidade pras crianças e pros adultos também, porque às vezes as crianças como eu ficam meio… Assim, afastadas… Porque todos os livros, a maioria dos livros, fala sobre um pai, uma mãe, um irmão, e raramente eu vejo um livro que fala de duas mães, dois pais, e eu queria mais livros assim.
MT/ Letras: E você já leu algum livro que tenha essa representatividade?
SF: Sim, a minha mãe comprou esse livro pra mim, porque é uma menina com duas mães. Chama Mãe não é uma só, eu tenho duas. Fala sobre uma garotinha chamada Malu e a rotina dela com as duas mães. Eu gostei muito. Tem também o livro Sapatônia, que é uma sapa que se chama Tônia e a mãe dela é lésbica. Esse livro tem um formato bem diferente, porque vem numa caixinha e são várias cartinhas que a gente lê na ordem.
MT/ Letras: Qual tipo de história já tem muito, e você não aguenta mais?
SF: Eu não aguento mais as histórias de príncipe e princesa perfeitos. Porque assim, os clássicos já está bom, né. Mas tem várias repetindo, e repetindo o mais do mesmo. Antes todo mundo se achava perfeito, agora a maioria das pessoas já está reconhecendo seus defeitos. Até os produtores da Barbie estão tentando deixar ela mais humana, mais a gente, que é negro, gordinha, muito magrinha, mas nunca deixa de colocar algum cintinho rosa, alguma coisa rosa. Eu gosto muito de livros de princesa, mas mais modernizado, tipo o Mistério de Feiurinha, de Pedro Bandeira, que é um livro que várias das princesas estão com pé inchado, com a barriga gigante, toda acabada. Branca de Neve já não tem os cabelos pretos, estão começando a ficar brancos de tanto estresse. Então assim, eu consegui identificar essas princesas com a minha mãe, quando ela estava grávida, que era a mesma coisa. Eu consegui ver que o Pedro Banderia conseguiu humanizar mais essas princesas.
MT/ Letras: Eu vi uma coletânea de contos escritos por crianças, da qual você participou. Fiquei muito interessada nesse projeto, você pode me falar mais dele?
SF: Essa coleção foi juntada por vários amigos meus do Instagram, e outras pessoas que eu não conhecia antes. Chama De volta à infância e foi organizada pela professora e autora Patrícia Bahiense. Eu só vou saber das outras histórias quando o livro chegar na minha casa, que vai ser na semana que vem, mas eu posso falar da minha história, e minha história é baseada em fatos reais, sobre a minha cachorrinha. Conto sobre minhas aventuras com ela, e falo que ela é muito parecida comigo, porque ela não parava quieta. O título é “A felicidade existe?”, mas eu não vou falar mais, porque vai ter que ler pra saber o que acontece. Você é a primeira pessoa pra quem estou falando disso.
MT/ Letras: E você pretende escrever mais?
SF: Óbvio. Inclusive, o dinheiro que eu vou ganhar da coletânea eu vou fazer um livro solo meu. E eu estou muito ansiosa, tomara que eu consiga. É uma história super incrível que fala sobre uma menina patricinha, meio princesinha por fora, mas por dentro ela é super batalhadora. Ela se encontra com a Dandara e com a tribo, e a Dandara faz penteados e conta histórias. Eu peguei essas informações em livros sobre a Dandara que minha mãe trouxe da escola e devolveu depois, e também na internet, e botei nesse livro. Eu adorei o resultado, de uma patricinha que se encontrou com uma guerreira. Não vou falar muita coisa, só uma pergunta que a menina faz, porque essa eu tenho que falar: “Por que você, uma guerreira de guerra, está lavando roupa, fazendo penteado, lavando os pratos?”. Eu tenho essa pergunta há muito tempo, e ler esses livros me fez entender porque tudo isso: todo mundo tem um lado guerreiro e um de serviço de casa. Minha mãe, por exemplo, é a maior guerreira que eu conheço e vive lavando prato.
MT/ Letras: Pelo que você contou, você já leu outras histórias escritas por crianças. Você consegue notar alguma coisa diferente nos livros escritos por crianças ou adultos?
SF: Já li muitas histórias escritas por crianças. A minha amiga Stella Torelli já escreveu dois livros, minha outra amiga Isabela Fontenele também escreveu dois livros. Eu me identifico mais com os livros escritos por crianças, obviamente porque eu sou criança: as palavras que elas usam, o jeito delas contarem. Eu acho um jeito bem animado, bem criança mesmo. Já o dos adultos eu adoro as histórias que os adultos contam, porque eles têm anos de sabedoria, então amo quando botam coisa mais de cultura. Quando os adultos invocam o lado criança deles e botam nos livros, meu Deus, eu adoro! Eu fico pensando como seria uma Ana Maria Machado, uma Clarice Lispector, uma Cecília Meireles agora, crianças, quantas oportunidades elas teriam tido e quais eram as histórias delas. Agora a gente está tendo muitas oportunidades pra escrever livro, então imagina se todas elas tivessem a oportunidade de escrever ainda criança… Ia ter muita história maravilhosa!
MT/ Letras: Qual é o melhor livro, para você?
SF: É o livro Histórias de ninar para garotas rebeldes, porque é um livro com várias mulheres empoderadas que, por mais das vezes, nem estavam pensando em ser famosas. Estavam pensando muito em ajudar todo mundo a sua volta. Por exemplo, Malala, que nem estava pensando em ser empoderada, estava pensando em meninas estudarem. Tem o um e o dois, cada um com cem mulheres, então são duzentas, eu amei. E eu sempre me lembro da minha mãe comigo do lado, lendo esse livro, e eu adoro as histórias dele, então esse é o melhor livro. Depois que eu terminei de ler esses dois livros, eu pesquisei cada mulher no Google, pra ver a evolução delas, né. Comparar a ilustração e a foto delas na vida real. E eu me surpreendi bastante, porque as ilustrações ficaram iguaizinhas.
MT/ Letras: Me conta alguém que você descobriu nesse livro que te deixou impressionada.
SF: Eu sempre leio o dessa mulher, é do livro um, é a minha preferida. É uma motoqueira surda, e várias pessoas falavam: “você não vai conseguir, porque tem que ouvir o barulho da moto, tem que ouvir a pessoa atrás”. Então eu sempre gostei da determinação e do jeito ela. E também, eu adoro o estilo dela. Chama Ashley Fiolek, motociclista.
MT/ Letras: Qual é o livro mais chato de todos?
SF: Eu ainda não tive a oportunidade de ler um livro chato, que assim, eu acho muito chato. Mas, tem uma coleção, que é a coleção de Monteiro Lobato, que eu acho que eu mudaria algumas coisas, né, porque não está mais na nossa, como eu posso falar, no jeito que a gente fala hoje em dia. Porque tem alguns apelidos que ele bota que eu acho meio racistas.
MT/ Letras: O livro mais triste de todos?
SF: Assim, no meio do livro é muito triste. Eu chorei horrores com essa história, mas no final eu morri de sorrir, chorei de rir também, porque eu adorei a superação. É o livro Extraordinário, que eu adoro, adoro, adoro. É muito triste porque ele sofre bullying, e cada apelido que doeu em mim, que era leitora, imagina no menino. E tem várias pessoas que sofrem com isso também. Mas no final ele ganhou uma medalha, e várias coisas legais.
MT/ Letras: Se pudesse escolher três autores para bater um papo com você numa live, quais seriam e o que você perguntaria?
SF: Clarice Lispector, Ana Maria Machado, e eu fiquei em dúvida entre a Cecília Meireles e a Ruth Rocha, mas acho que Ruth Rocha. Eu perguntaria quem foi que deu aquele empurrãozinho pra elas começarem a escrever e publicar; seria muito interessante saber quem deu essas oportunidade pra elas. E também o que inspira elas: se as histórias são baseadas em fatos reais ou se são inventadas. Eu teria várias perguntas, mas não vou citar todas. Essas são as principais.
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Maria Thereza faz mestrado em Literatura Brasileira (UFMG), com pesquisa voltada para a Literatura Infantil.