Por Thiago Pereira
Os discos novos estão ali, ao lado, empilhados e implorando por uma audição. Algumas abas estão abertas, logo acima, com dicas infindáveis dos melhores discos de todos os tempos das últimas horas. Dividindo espaço com esse documento em branco, no qual teço essas mal traçadas, está o YouTube, e dentro do YouTube, está a maravilhosa obra de Briton Rivière, de 1890, “Daniel na Cova Dos Leões”, emoldurando a compilação afetiva (porque não oficial feita por um fã) da banda britânica The Sound. Liderada por Adrian Borland, o Sound é percebido por boa parte da (boa) crítica britânica dos anos 1980 como um dos maiores pecados do mundo pop, por sua condição anônima e subestimadíssima, para alguns “melhor que Joy Division e U2”. Aqui estou, aqui fico.
Tendo a concordar com a primeira parte da opinião dos colegas ingleses (porque The Sound NÃO é melhor que Joy Division, nem U2). Mas minha coceira intelectual é em outro lugar, mais precisamente naquela pilha de lançamentos que segue berrando por atenção aqui, enquanto o YouTube dispara grandes canções aos meus ouvidos (independente das comparações, trata-se de uma belíssima banda. The Sound é infinitamente melhor que Interpol, por exemplo). Porque estou aqui e não ali?
Por variados motivos, claro. É sábado à noite e, cabeça cheia, não quero me ocupar de novas informações ali – apesar do fato de que o The Sound é uma descoberta pessoal recente, deste ano. Porque quero de alguma maneira, um lugar seguro, confiavelmente prazeroso e confortável para pousar meus ouvidos agora. Porque isto e porque aquilo e as justificativas são infinitas.
A maior delas, desconfio, é porque posso. E quem me oferece essa chance, está ali, sempre disposto, sempre responsivo, sempre dócil, sempre aberto, infindável. Há alguns anos comprei o melhor aparelho de som do mundo. O nome dele é YouTube.
Antes de qualquer coisa, já disparo: sei que existem outras plataformas que me oferecem a música que realmente quero ouvir, a qualquer tempo, em qualquer espaço. Meu negócio com o YouTube é que, aos moldes (repito: aos moldes, não igual) de um ponto de encontro “físico”, embaixo do player de vídeo, frequentemente encontro opiniões (“It’s unbelievable that “Where The Love Is” is missing in this compilation. One of the best songs of all times” e lá vou eu atrás, um clique, da tal “Where The Love Is”). Encontro informação (“Great band, great singer (Adrian Borland RIP) thanks for sharing”. Ué, então ele morreu? Como? Quando? E lá vai Google…). Encontro informação em cima da informação (“Can anyone tell me what is the name and author of the painting, please?”, para alguém responder e eu já ir fazer a busca no images e imaginar que, hum, Renato Russo devia escutar isso…).
Caramba, como eu gosto desse aqui.
Aqui? Expressão que encerra um espaço e um tempo muito específicos: o agora, o presente. Mas estou, com o YouTube em muitos tempos (antes, depois) e espaços, sem me deslocar. O francês Paul Virillo definiu essa condição muito bem, dizendo de uma tele-ação que já não se confunde com o aqui (espaço) e agora (tempo) da ação imediata. Esse caráter randômico, que delicia os arquivistas (talvez possamos falar aqui, foucaultianamente, em heterotopia), do site serve muito bem a alguém que não é um fissurado da qualidade do som (como eu).
Eu gosto da ideia de uma máquina do tempo, portátil, que pode ser miniaturada, onde escolho, diante de uma biblioteca aparentemente infinita (sempre imaginei o paraíso como um interminável estoque e música, Borges), qualquer som que quiser ouvir. (Chamem-me de conformista. É difícil competir com máquinas do tempo, ainda mais uma com playlist personalizável. Vide aquele clássico episódio de Big Bang Theory. Não sabe? No YouTube tem…)
Diante desta coletânea do The Sound, é fácil entender porque o site é um dos dispositivos onde a retromania, termo que Simon Reynolds usa para sinalizar o grande apego da cultura pop ao seu próprio passado e o constante uso de referências a si mesmo (bem como a volta de diversos elementos de décadas passadas ao presente) encontra condições ideais de se configurar na contemporaneidade.
Senhores e senhoras, trago boas novas, novíssimas: estive de frente com o passado e ele está cada vez mais presente. A mania retro não é moda, é quase uma condição, porque estamos mesmo absolutamente cercados de revisões, em diversas áreas, de diversas formas: a música pop aqui entra, com The Sound, apenas como um exemplo do “nada se cria e tudo se copia”; e ainda há muita coisa a se copiar. Diante do YouTube, a (i)lógica do arquivo e a experiência da nostalgia se apresentam como marcas extremamente contemporâneas. Sabe o museu, aquela palavra que Adorno aproximou de mausoléu, ou seja, um depósito de coisas mortas? Nunca esteve tão vivo!
Existe uma culpa enorme nesse raciocínio, culpa incentivada pela intocável pilha de novas informações que me vigia aqui ao lado? Existe. Esta é outra das tantas questões que temos (a arte?) de resolver neste, por vezes, deliciosamente bagunçado, aquie agora. Não nego.