Editoral inicial: Elisa Belém
Texto: Marcio Abreu
As artes cênicas englobam o teatro, a dança, o circo e a performance. Nessas linguagens, encontramos outras tais quais a literatura, as artes visuais e, muitas vezes, o vídeo e o cinema. O corpo e a palavra são seus eixos, aparecendo como suporte, meio ou mesmo transformados em imagens.
A criação parece nascer de um desejo e necessidade, como sugeriu Sperber (2009), ao refletir sobre uma possível Pulsão de Ficção. Para essa autora, criar seria uma necessidade inata a fim de elaborar eventos vividos e emoções profundas. A criança, ao brincar, cria com aquilo que tem à mão. O recurso à ficção é compreendido como um instrumento básico para o entendimento, para a apreensão do conhecimento, repetição e re-significação, levando à mudança de padrões emocionais e a superação. Seria assim, uma forma de lidar com o que Sperber (2009, p. 329) nomeia como “dois grandes mistérios”: a vida e a morte – “A verdade essencial do ser humano, o grande mistério, é o próprio ser humano: vida e morte.
A busca dessa verdade se repete em ritos, cultos, mitos, contos de fadas – literatura”. O estímulo à autoria de textos literários e trabalhos de arte, seria então, uma forma de conduzir processos de efabulação, simbolização e do imaginário, por meio da criação. Despertar assim, uma necessidade que muitas vezes é circunscrita por uma censura interna ou externa dada pelas condições de vida.
Já Sontag (2008, p. 165), chama a atenção para a atividade do leitor, que pode ser estendida ao receptor do trabalho de arte: “o que os escritores fazem deveria nos libertar, nos sacudir. Abrir avenidas de compaixão e de interesse novos. Lembrar-nos que podemos, simplesmente podemos, aspirar a ser diferentes, e melhores, do que somos. Lembrar-nos que podemos mudar.” Sendo assim, ao realizar a editoria da área de Artes Cênicas, do jornal LETRAS, tenho como intenção proporcionar ao leitor conhecer mais de perto as ideias de alguns artistas da cena. Pelo prazer da leitura, percorrer os universos da criação e da efusão de imagens, impressões e pensamentos que se tornam materiais para movimentos, textos, peças, espetáculos ou performances.
Neste primeiro número, apresento o texto Pedaços, do dramaturgo e diretor Márcio Abreu, que assinou a direção do mais recente espetáculo do Grupo Galpão (Belo Horizonte, MG), NÓS, além de outras boas encenações com a Companhia Brasileira de Teatro (Curitiba, PR), como PROJETO bRASIL. Abreu, por meio de fragmentos, apresenta suas ideias sobre a criação e o teatro, lembrando que “somos seres da linguagem”. Nesse sentido, reflete sobre a encenação e a dramaturgia como escrita no ato da composição. Percebendo a potência política da arte, nota que o teatro “é o lugar do silêncio coletivo, do escuro compartilhado, das emoções manifestadas diante dos outros”. Num tempo no qual a virtualidade atravessa as vidas de forma tão direta, parece que precisamos ainda mais da pausa para o café, para o ato de ler, o silêncio, a escuta, o ver e ser afetado. Boa leitura!
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(…)Se eu não tivesse a capacidade de acreditar em algo nem me levantaria da cama. Não acredito em descrença. Tenho entusiasmo pela vida e pelas pessoas. Acredito na improbabilidade do teatro e sua potência. É incongruente e, por isso, vital! A arte é a única coisa que existe no mundo. O resto são vestígios do fim.
(…) Penso menos em temas e mais em como articular elementos estéticos e políticos em busca de gerar acontecimentos que redimensionem a potência do teatro. Não há muitos temas no mundo, já dizia Borges. O que os renova e faz com que tomemos consciência do mundo, da transcendência e de nós mesmos a cada momento é a arte, a linguagem. Somos seres da linguagem. Neste sentido as questões, de fato, migram de um trabalho a outro. Elas não se esgotam em apenas uma peça. O pensamento e a obra vão se construindo ao longo do tempo. Penso, evidentemente, na indissociabilidade entre forma e conteúdo.
(…) Há no teatro, na literatura, mas também na música e no cinema um desafio indesviável sobre o que mostrar e o que não mostrar. O que cabe na palavra e o que não cabe. O que deve existir fora da palavra. O que vem antes e o que vem depois. Tudo isso parece simples, mas pode determinar essencialmente a potência de um texto ou de uma peça.
(…) Em geral tudo isso está em intrínseca relação. A cena e os atores são também elementos da escrita. Podemos pensar a dramaturgia amplamente, como uma categoria que inclui tudo isso. Posso chamar de “texto” toda a composição de um trabalho meu no teatro. Tudo o que existe busca contar uma “história”, nada está ali por acaso. Podemos pensar que um texto de teatro é um conjunto de signos disparadores de uma nova realidade, estética, humana e que confirma o estatuto das pessoas como seres de linguagem. Assim como não separo o corpo da voz, já que tudo é produzido no corpo, tudo é corpo, não separo também essas categorias. Ainda que as entenda também nas suas especificidades.
(…) Se você escreve solitariamente, a diferença é que não tem ninguém presencialmente com você. Se escreve num processo de encenação teatral, provavelmente será influenciado pelo que acontece ao seu redor. Óbvio assim. No entanto, mesmo solitariamente, somos influenciados pelo que está ao nosso redor. Acho frágil o pensamento que busca estabelecer a dicotomia que coloca de um lado a obra do autor de gabinete e de outro a dos chamados processos colaborativos. Nada diz que um ou outro são mais ou menos potentes. A qualificação não depende disso. Ambos não garantem nada. A tendência de transformar essas experiências em “métodos” também me parece frágil, já que os processos criativos são necessariamente ligados a circunstâncias específicas, tais como os indivíduos envolvidos, os modos de produção, o lugar onde acontece, o repertório histórico e cultural com o qual se relaciona, enfim… e outras tantas que podemos imaginar. O que realmente acho que faz diferença é formação. Formação do indivíduo. Tudo o que influencia e permeia um artista.
(…) Mesmo num trabalho que parte de um texto escrito previamente, a relação no campo da dramaturgia entre ator, cena e texto existirá. E, claro, serão permeáveis entre si. A peça será, necessariamente, o resultado dessa permeabilidade. Quanto menos permeáveis os elementos, menos interesse. Não acho que o ator e a cena tenham menos valor dramatúrgico no trabalho que parte de um texto. Criar simultaneamente não garante autoria compartilhada nem dá mais status ao ator ou à cena. Acho ultrapassada essa questão. O ator e a atriz são criadores sempre, mesmo se disserem um texto escrito por alguém que eles nunca viram ou por alguém morto. Os aspectos positivos e as dificuldades são muito parecidos nas duas experiências e muito diferentes em cada processo. Como disse anteriormente, um processo criativo é um conjunto de circunstâncias, as previstas e as imprevistas. É sempre difícil fazer existir algo que ainda não existe.
(…) Pra que eu consiga escrever qualquer coisa ou mesmo para que eu tenha alguma motivação é preciso que eu crie ou escolha ou aceite uma circunstância clara, concreta, um conceito a partir do qual eu possa descrever um trajeto.
(…) Penso na atriz ou no ator hoje como um ser político. Assim como todo artista de teatro, assim como todo artista e, seguindo a linha, assim como toda pessoa. No entanto, nem sempre há a consciência disso. Novamente esta palavra: consciência. Falo repetidas vezes porque ela tem me tomado nos últimos tempos. Quase como uma reação a certa apatia recorrente que aceita não ser afetado por nada e não afeta nada nem ninguém. Afetação: outra palavra que tenho usado bastante ultimamente.
Então é isso: consciência e afetação. Um quase paradoxo que pode ser o desafio do ator de hoje, do artista de hoje.
(…) Existe o dilema da formação no Brasil. Por um lado, um grande numero de atrizes e atores, vindos de escolas convencionais ou não, com uma bagagem ligada a métodos de interpretação dos séculos XIX e XX, o que, geralmente cria ruídos quando se trata de dramaturgia contemporânea. Por outro lado, atores e atrizes ditos contemporâneos, oriundos de novas escolas ou não, que não tem consciência histórica e trabalham na superficialidade e nos simulacros tão recorrentes em época de pós-tudo.
No entanto, existe um desafio que vem antes disso tudo e me parece básico e, pra tomar pra si este desafio, é preciso ser livre de preconceitos estéticos e intelectuais e é preciso ter consciência histórica. O desafio é o da escuta, da construção da presença em relação ao outro, da generosidade. O teatro é hoje o espaço da generosidade. Não há subjetividade nisso. É concreto. A arte não é o que a gente quer a partir de movimentos internos e pulsões subjetivas, mas o que se dá numa circunstância concreta, material, feita pelas pessoas e entre as pessoas.
(…) Velho é o próprio teatro. Nisso reside também a sua potência. O teatro é um campo aberto para experiências de toda sorte. Tudo já foi feito aí. É velho, tão velho que nem sequer conseguimos imagina-lo em toda sua dimensão histórica. O teatro é tão arcaico que se torna, contraditoriamente, o que há de mais novo no nosso tempo. Vou recair em clichês, mas não me importo. O teatro é o lugar para o encontro entre as pessoas. E isso hoje é novo. É o lugar do silêncio coletivo, do escuro compartilhado, das emoções manifestadas diante dos outros. Isso é maravilhosamente velho.
Mas se falamos de opções estéticas e conceituais, nada é velho no teatro. O que é inaceitável e profundamente enfadonho é marcar um encontro e não comparecer, é não estar presente com todo o seu ser, inteiro. Isso, no teatro e na vida, é terrivelmente velho e insuportável. Demonstrações de poder e de habilidade também são chatíssimas, tanto no teatro como na vida. Recaindo novamente em clichês, o teatro é o lugar do humano, do erro, da fragilidade, ao mesmo tempo em que é o lugar da técnica e da precisão. É neste jogo de tensões que está sua força. E isso não tem época. É agora, sempre, em todos os tempos.
(…) Se pensarmos na dimensão pública da arte, é evidente que o papel de ambos, instituições e artistas, é o de mobilizar ações de caráter público, nos modos de produção, na ocupação dos espaços, na economia, no fomento da pluralidade. Sabemos que no Brasil, mas também em muitos outros países, o investimento na produção artística é feito majoritariamente com dinheiro público, direta ou indiretamente. Sabemos ainda que, em geral, a conta não fecha.
Não é o lucro ou a “economicidade” que devem pautar as relações entre artistas e instituições. E é exatamente no campo das relações e do diálogo, trabalhando e pensando juntos, que artistas e instituições podem se fortalecer. Os artistas devem ter as condições para a realização do seu trabalho, sem que o critério do capital seja determinante. A dimensão da sua atividade é pública e as sociedades devem se implicar nisso, criar os meios para que isso exista. Saber que parte do investimento público, não apenas financeiro, mas cultural, deve ser destinado a arte. Isso é um direito e determina cidadania, formação de sensibilidades, fruição do tempo, ampliação dos sentidos, estímulo ao pensamento crítico, convivência com as diferenças, afirmação de espaços coletivos e plurais. É saúde social. Neste sentido, as instituições devem ser também propositivas e não apenas lidar com as demandas. Se a força está no diálogo, também as instituições devem propor, além de ouvir.
(…) Tenho a sorte de não me lembrar. O esquecimento é um tesouro. Há coisas que constituem uma pessoa. Não me lembro do que me constitui. Apenas sigo sendo algo daquilo que foi me formando ao longo do tempo. Posso apenas inventar uma memória de alguma coisa que acho que sou. O teatro sempre esteve para mim. As brincadeiras de criança já eram o teatro, imagino. Não me lembro de ter optado por essa profissão, mas apenas de ter seguido o fluxo das coisas.
(…) Tenho pensado o teatro como forma de vida há muito tempo. Escrever e encenar requer dedicação absoluta, alma aberta, escuta apurada, leitura constante e voraz, vontade de mudar, alguma utopia, percepção e sensibilidade social, politização, amor pelo outro, necessidade de gente, pensamento estético, horas sem dormir, espírito contraditório, estômago, humor, interesses múltiplos, disposição pra inventar o que ainda não existe.
Marcio Abreu é dramaturgo e diretor. Entre seus trabalhos recentes está NÓS, com Grupo Galpão, PROJETO bRASIL, com a companhia brasileira de teatro e KRUM, parceira entre a companhia e a atriz Renata Sorrah. Publicou recentemente pela Editora Cobogó duas de suas peças: MARÉ (encenada pelo Grupo Espanca!) e PROJETO bRASIL.