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Histórias ubíquas de ex-amores

Editoria Lyslei Nascimento

As narrativas que compõem Os mesmos e os outros: o livro dos ex, de Ana Cecília Carvalho, oferecem ao leitor inquietantes desafios e pactos sinistros. Se como já nos afiança uma de suas epígrafes, “um livro não se faz sem suas vítimas”, acompanhar, sem redes ou amarras, as histórias de perdas, de danos e de abandonos, quase todas irreparáveis, é, sobretudo, abrir mão da segurança dos sentidos e da crença nas verdades inabaláveis.

Instável, a leitura se apresenta a partir de uma série de caminhos que se bifurcam, ou como um livro de areia, semelhantes, em imagens e dicção, a muitas histórias de Jorge Luis Borges. Ler, nesse território movediço é, necessariamente, refazer, a cada lance, curso e percurso. O fio, que imaginariamente parece reunir todas as narrativas antes cria vertiginosos obstáculos, ilusórias similitudes, falaciosos estranhamentos. De incongruência em incongruência – como nos espelhamentos, distorções e aprisionamentos dos contos de Franz Kafka – o texto parece ecoar, também, o categórico e atroz convite de Carlos Drummond de Andrade, “penetra surdamente no reino das palavras”. Desse modo, em “Quando as palavras falham”, “A entregadora de sentido” e “Regulamentos”, o leitor está, duplicado, diante de personagens presos na trama/armadilha da linguagem.

A inscrição de Os mesmos e os outros nessa insubmissa tradição de fazedores de textos-enigmas como os de Borges, Kafka, Drummond, faz emergir galerias subterrâneas ou, paradoxalmente, pontes sobre abismos, cada vez mais profundos, que, da escrita, inquirem o leitor e em sua ubiquidade, o faz quase ser, intoleravelmente afogado. Assim, se alguns paralelos podem ser provisoriamente estabelecidos entre “O homem das palavras de água” e “Aqueles que andam nas nuvens”, principalmente na sugestão de certa fluidez ou continuidade, os textos reafirmam a inapreensão das coisas e acabam por se tornarem peças de um mosaico, ou quebra-cabeças, que não se deixam completar.

Nesse estranho labirinto, a chuva parece ser um entrave no olhar oblíquo dos personagens e, consequentemente, do leitor. O conto “Máscaras” dá o tom de toda a narrativa: “Chove em Andaluzia. Chove em Hong Kong. Chove em toda parte. Nunca mais vai parar de chover essa chuva ácida e fina que corrói tudo, até a nossa esperança.” Onipresente, a chuva revela, em sua ubiquidade, o estado de ânimo do narrador, que se vê em meio a esse desconforto geral dos sentidos. Desde a visão toldada, até a confusa audição, a água incessante faz migrar para nós, leitores, essa condição de imersão do sujeito em um ambiente da qual não pode se ver livre.

Diante dessa atmosfera opressiva que permeia todos os contos, seguimos as pegadas de Fidel, o ex-cão. Olhamos para ele e, surpresos, descobrimos que também somos por ele olhados. Para além de uma imagem de traição, de abandono e de desapontamento, os olhares irmanam-nos a todos: humanos e não humanos. Nesse sentido, a quebra de correntes não promove a alegria da liberdade, mas o esfacelamento corrosivo do afeto.

As histórias vão, assim, se armando e desarmando o leitor, como uma esfinge com seus personagens que ora se liquefazem – como a estranha mulher e sua dependência amorosa e etílica do conto “A dissolvida” – ora se cristalizam, como o marido avaro de “O sovina”. Diante da intrincada narrativa, só é possível se colocar como um ex-inocente ou um ex-amor. Por isso, relógio, mapa e bússola são inúteis nesse caminho tortuoso. Outros terríveis objetos, na translúcida, mas férrea, arquitetura textual, precisam ser evocados: fotografias retiradas das molduras ou uma taça de vinho antes de um tiro fatal.

Prisioneiros das tramas, como “O concorrente”, por exemplo, o leitor precisa desautomatizar-se, deixar-se perder no tabuleiro de xadrez, que é a ficção, e suspeitar de que como o apartamento vazio do conto “O ex-vizinho”, a vida é um jogo em que lacunas são necessárias para que possamos respirar e nos movimentar. Tanto em meio às guerras – reais ou metafóricas – quanto no emaranhado patético dos relacionamentos falidos ou desesperançados, abrir espaço, é, sobretudo, “lembrar para esquecer”. Ou como queria Italo Calvino, em As cidades invisíveis: “O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: procurar e reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.”

Os contos de Ana Cecília Carvalho prendem a todos numa armadilha, em desafios, dos quais, é preciso dizer, não é possível se safar. A procura incessante da poesia da vida, o reconhecimento de que a onipotência é uma fantasia e, em meio a escombros, a aprendizagem contínua, obstinada e tenaz do exercício de conviver, consigo e com o outro, são apenas alguns deles.

Referência

CARVALHO, Ana Ceclia. Os mesmos e os outros: o livro dos ex. Belo Horizonte: Quixote-Do, 2017. 191p.

Lyslei Nascimento é professora de Literatura Comparada e Teoria da Literatura na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais.

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