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A vida modo de usar e outras enganações

Por Jacques Fux[1]

O encontro e o estranhamento

Eu nunca tinha ouvido falar de Georges Perec até fazer uma disciplina eletiva no doutorado em Letras. Estava fazendo um curso sobre ‘Escritas Híbridas’ e parte d’A vida modo de usar caiu em minhas mãos. Não entendi nada. Nadinha de nada. Até achei que seria um livro de autoajuda fornecendo-me indicações e recomendações de como usar (ou manusear) minha própria vida. Vida essa que, naquele momento (como em todos), se encontrava completamente confusa. Mas o estranhamento, o mal-estar, o desconforto que o livro causou me motivou a continuar lendo e relendo as famigeradas páginas. Eu tentava descobrir, revelar e desvendar todos os mistérios do puzzle que Perec ofertava. Assim, depois de uma grande labuta, um caminho de sonhos e de novas possibilidades literárias se abriu. Fiquei fascinado. Encantado. Iludido com uma nova literatura improvável, mas ao mesmo tempo maravilhosa. E esse brave new world nunca mais se fechou. E me formou definitivamente escritor.

Perec foi membro do OULIPO, um grupo que brincava com ideias e estruturas matemáticas diversas e as utilizavam na composição de seus livros. Parece complicado e limitante. E poderia até espantar alguém. Mas não é. Garanto! Um novo universo se abre. Um universo expandido de novos e esplendorosos conhecimentos humanos. A matemática funciona aqui como o desejo de se buscar mais explicações, mais belezas, mais profundidade na já fantástica e perturbadora mãe de todas as ciências e sentimentos: a Literatura.

A vida modo de usar começa com um Preâmbulo perturbador: o narrador supostamente compara uma obra literária a quebra-cabeças.  “Podemos deduzir algo que é, sem dúvida, a verdade última do puzzle: apesar das aparências, não é um jogo solitário – todo gesto que faz o armador de puzzle, o construtor já o fez antes dele; toda peça que toma e retoma, examina, acaricia, toda combinação que tenta e volta a tentar, toda hesitação, toda intuição, toda esperança, todo esmorecimento foram decididos, calculados, estudados pelo outro”. Seria possível o escritor imaginar todas as possibilidades de leitura e interpretações de seus leitores? Seria possível controlar a recepção de sua obra? De suas palavras? Seria plausível controlar a vida?

A vida pregou peças em Perec. Sua mãe morreu em Auschwitz e seu pai no front de guerra. Ele viveu só, angustiado e saudoso buscando alguma memória do pouco convívio teve com sua família. A contingência da História o fez brincar com o controle matemático na literatura. Ele, então, buscando as inacessíveis ‘certezas’ escreve La Disparition, um livro com trezentas e tantas páginas em que nunca aparece a letra ‘e’, a mais frequente no francês. Loucura? Insanidade? Projeto impossível? Não sei, só sei que foi realizado. Mas, não tente fazer isso em casa. E qual seria o motivo de realizar tamanha façanha? Ele dizia que, ao se ver privado pelos nazistas do convívio com as pessoas mais importantes do mundo (père e mère), ele também teria que ser capaz de escrever um livro sem a letra mais importante do alfabeto.

Perec também escreveu o Palindrome, um livreto com cinco mil palavras que foi parar no Guiness Book já que poderia ser lido de trás para frente e permanecer sendo o mesmo livro (como ‘Ana’, mas, no caso, o livro inteiro). Fantástico? Tentativa absurda de controlar o incontrolável? De dificultar ou facilitar ainda mais a vida?

Nessa onda de projetos impossíveis, surge o A vida modo de usar: em cada capítulo Perec se obriga a usar quarenta e duas regras distintas e lógicas. Aparecem inúmeras citações, referências a países diversos, personagens sentados, em pé, de lado, segurando algo, etc… Milhares de restrições impostas antes mesmo de se começar a escrever o livro. Centenas de tabelas foram confeccionadas para compor esse esplendoroso trabalho. Difícil, né? Muito. Mas, com certeza, vale a leitura. O livro é maravilhoso!

A questão principal trabalhada por Perec é que, talvez, você não precise conhecer nada de matemática ou das regras utilizadas para ser capaz de ler e gostar dos seus livros – ou de textos com esse cunho e essa abordagem “restritiva”. São bonitos, delicados, profundos, sublimes (ou não, vai depender de cada leitor e de cada leitura, como geralmente é). Mas, pense: se você for capaz de desvendar os mistérios, de saber das ‘leis’ que regem cada capítulo, cada linha, cada pensamento de cada personagem – quase como um deus?,o livro acaba se tornando mais mágico e encantado. Fabuloso e empolgante! Você se depara com o poder inventivo da mente! A cada nova leitura, a cada nova resenha, a cada novo comentário alguém descobre (ou inventa) algo diferente. E, além das leituras de cada um (que são infinitas), as possibilidades lógicas que Perec apresenta abrem sempre novos caminhos.

Eu continuo me encantando diariamente com Perec… e por mais que estude, que trabalhe, que leia tudo relacionado ao seu incrível projeto, mais e mais eu fico sem saber. Mais e mais eu desconheço sua mágica e sua labuta. Mais e mais eu me curvo diante da grandiosidade da nossa adorada literatura!

A vida modo de usar

No dia 26 de outubro de 1976 morre o escritor e amigo de Perec, Raymond Queneau. E, nesse mesmo dia, realizando uma homenagem, Georges Perec começa a escrever A vida modo de usar. De grande complexidade e construído sob restrições (contraintes), o livro trata de histórias inter-relacionadas de habitantes de um mesmo prédio situado à 11 Rue Simon-Crubellier.  Assim Claude Burgelin descreve A vida modo de usar:

Construir a torre de Babel, escrever um romance que contenha todos os tipos de romances; colocar em cena dezenas de vidas simultaneamente; evocar modos de usar da existência tão diversa quanto possível; deixar seguir múltiplos tempos a partir desse espaço fechado; obrigar a evocação de milhares de objetos, emblemas, imagens e dar vida a esse propósito; juntar o prazer da infância (jogos, encaixes, listas, quebra-cabeças, livros de aventuras, trocadilhos, adivinhas, cadeias ao infinito) e combinatórias mais sofisticados; abolir, subverter, ultrapassar fronteiras entre texto e imagem, narrativa e ícones, transformar a literatura em uma cópia miniaturizada do mundo e da literatura; aprender a olhar e ler errando sem parar; metamorfosear o enciclopedismo em material romanesco; estruturar claramente um romance labiríntico, tornar móvel um romance-imóvel, dirigir um romance-jogo de xadrez (em todos os sentidos da palavra). Estas são algumas das proezas do acrobata Perec (BURGELIN, 1988, p.177).

O enredo gira em torno de três personagens principais, o excêntrico e rico Percy Bartlhebooth, o artista Gaspard Winckler e o pintor Serge Valène:

Durante dez anos, de 1925 a 1935, Bartlebooth se iniciaria na arte da aquarela.  Durante vinte anos, de 1935 a 1955, percorreria o mundo, pintando, à razão de uma aquarela a cada quinze dias, quinhentas marinhas do mesmo tamanho, as quais representariam portos marítimos. Ao terminar cada uma dessas marinhas, ela seria enviada a um artista especializado (Gaspard Winckler), que a colaria sobre finíssima placa de madeira e a recortaria num puzzle de setecentas e cinquenta peças.  Durante vinte anos, de 1955 a 1975, Bartlhebooth, de volta à França, reconstituiria, na mesma ordem, os puzzles assim preparados, à razão, novamente, de um a cada quinze dias. À medida que os puzzles fossem reorganizados, as marinhas seriam “retexturadas”, de modo que se pudesse descolá-las de seus suportes, transportá-las para os próprios locais onde – vinte anos antes – haviam sido pintadas e ali mergulhá-las numa solução detergente da qual saísse apenas uma folha de papel Whatman, intacta e virgem (PEREC, 1989 p. 594)

O nome dado a uma das principais personagens do livro, Bartlebooth, alude a duas outras personagens literárias: Bartleby, de Herman Melville, o homem da imobilidade que não deseja nada, que prefere não fazer; e Barnabooth, de Valèry Larbaud, o homem da viagem, que tem desejos errantes. Esse é o paradoxo vivido por Bartlebooth, homem de tamanha riqueza e de indiferença face ao mundo, que se propõe um projeto de perfeição circular, de muito viajar, muito registrar e destruir todos os traços dessa grande e inútil jornada.

O projeto da A vida modo de usar é rigoroso e bem estruturado, assim como um jogo. A construção lógica e definida sob regras nos remete ao teor axiomático da matemática. Entretanto, o objetivo proposto não é concretizado, como descrito abaixo:

É o dia 23 de junho de 1975, e vão dar oito horas da noite. Sentado diante do puzzle, Bartlebooth acaba de morrer. Sobre a toalha da mesa, nalgum lugar do céu crepuscular do quadringentésimo trigésimo nono puzzle, o vazio negro da única peça ainda não encaixada desenha a silhueta quase perfeita de um X. Mas a peça que o morto segura entre os dedos, já de há muito prevista em sua própria ironia, tem a forma de um W (PEREC, 1989, p.578).

Essa não concretização do projeto pode ser encarada também como uma das contraintes que Perec utiliza para a confecção de sua máquina de contar histórias, a chamada manque (falta). Há também uma relação deste projeto não acabado com sua obra, sua incompletude em relação à tentativa de controlar todas as possibilidades e combinações de leitura e escrita.

Um exemplo das tabelas de restrições

A vida modo de usar é construída graças a um grande cahier des charges. Temos duas listas: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 0 e A, B, C, D, E, F, G, H, J, K. Em cada coluna e em cada linha, observa-se somente uma letra e um número, que indicam que determinadas contraintes serão utilizadas em cada apartamento do prédio situado em 11 Rue Simon-Crubellier:

QUADRO 1 – Cahier des charges de A vida modo de usar

1A 7H 6J 5K 0B 9D 8F 2C 3E 4G
8G 2B 1H 7J 6K 0C 9E 3D 4F 5A
9F 8A 3C 2H 1J 7K 0D 4E 5G 6B
0E 9G 8B 4D 3H 2J 1K 5F 6A 7C
2K 0F 9A 8C 5E 4H 3J 6G 7B 1D
4J 3K 0G 9B 8D 6F 5H 7A 1C 2E
6H 5J 4K 0A 9C 8E 7G 1B 2D 3F
3B 4C 5D 6E 7F 1G 2A 8H 9J 0K
5C 6D 7E 1F 2G 3A 4B 9K 0H 8J
7D 1E 2F 3G 4A 5B 6C 0J 8K 9H

 

Para nos aproximarmos do exemplo proposto por Perec, trocamos a lista de letras (A,B,C,D E, F, G, H, J, K) por outra lista de números e, em cada casa, atribuímos um valor de acordo com um tabuleiro de xadrez[i] 10 x 10. Perec se pergunta também se esta composição é bastante desordenada, já que seu objetivo é variar ao máximo as regras para que os capítulos não sejam de forma alguma parecidos: “É necessário perceber como Perec fez aparecer esta estrutura, mas também se perguntar se há outros bicarrés: colocamo-nos em dúvida imaginando rotações, simetrias, mas será que é bastante, e bastante desordenado?”[ii]

QUADRO 2 – Tabuleiro de xadrez 10 x 10

1 59 1 7 83 8 6 15 9 5 10 0 0 57 2 9 48 4 8 7 8 2 52 3 3 45 5 4 54 7
8 97 7 2 11 2 1 58 8 7 82 9 6 16 0 0 9 3 9 46 5 3 55 4 4 6 8 5 51 1
9 84 6 8 60 1 3 96 3 2 14 8 1 47 9 7 56 0 0 49 4 4 8 5 5 53 7 6 44 2
0 12 5 9 98 7 8 81 2 4 86 4 3 95 8 2 17 9 1 28 0 5 43 6 6 50 1 7 5 3
2 61 0 0 85 6 9 13 1 8 18 3 5 27 5 4 79 8 3 94 9 6 4 7 7 41 2 1 30 4
4 99 0 3 70 0 0 26 7 9 80 2 8 87 4 6 1 6 5 42 8 7 29 1 1 93 3 2 3 5
6 25 8 5 62 9 4 88 0 0 69 1 9 19 3 8 36 5 7 78 7 1 2 2 2 31 4 3 40 6
3 71 2 4 65 3 5 20 4 6 23 5 7 89 6 1 68 7 2 34 1 8 37 8 9 77 9 0 92 0
5 63 3 6 24 4 7 66 5 1 73 6 2 35 7 3 22 1 4 90 2 9 75 0 0 39 8 8 32 9
7 4 1 72 5 2 64 6 3 21 7 4 67 1 5 74 2 6 38 3 0 33 9 8 91 0 9 76 8

 

Cada casa do novo tabuleiro de xadrez representa um apartamento. Como temos 99 capítulos, consideramos a aparição do capítulo faltante como um bicarré 1ab (Posição – Atividade), no canto esquerdo abaixo. O quadro foi composto de acordo com cada capítulo do livro. O primeiro número representa a Posição, o número do meio representa o capítulo em questão e o terceiro número representa a Atividade. Temos também outros pares: 1cd (Citação 1, Citação 2), 2ab (Número, Função), 2cd (Terceiro Setor, Recurso), 3ab (Muros, Solos) etc.

Tomamos, por exemplo, o apartamento situado no canto superior direito (estaremos no capítulo 54). Neste capítulo aparecem os números 4 e 7, que representam respectivamente as contraintes Posição (sentado) e a Atividade (reparação), de acordo com o QUADRO 3 abaixo:

QUADRO 3 – Contraintes Posição e Atividade de A vida modo de usar

1 a Posição 1 b Atividade
1. Ajoelhado 1. Pintura
2. Agachado ou abaixado 2. Entrevista
3. De bruços 3. Limpeza
4. Sentado 4. Erótico
5. Em pé 5. Classificar, arrumar
6. Subir ou mais alto que o solo 6. Se servir de um mapa
7. Entrar 7. Reparar
8. Sair 8. Ler ou escrever
9. Deitado sobre as costas 9. Ter um pedaço de madeira
0. Um braço no ar 0. Comer

 

Conforme apresenta o QUADRO 4 a seguir, o livro apresenta 42 tipos de contraintes, que aparecerão em duplas:

QUADRO 4 – 42 Contraintes

1a Posição 1b Atividade 1c Citação 1 1d Citação 2
2a Número 2b Papel 2c 3º setor 2d Mola
3a Muros 3b Solo 3c Época 3d Lugar
4a Estilo 4b Móveis 4c Comprimento 4d Diversos
5a Idade e sexo 5b Animais 5c Roupas 5d Tecido (natural)
6a Tecido (matéria) 6b Cores 6c Acessórios 6d Joias
7a Leituras 7b Musicas 7c Tabelas 7d Livros
8a Bebidas 8b Alimento 8c Pequenos móveis 8d Jogos
9a Sentimentos 9b Pinturas 9c Superfícies 9d Volumes
0a Flores 0b Bibelô 0c Falta em 0d Falso
Ca 1º de uma dupla Cb 2º de uma dupla    

 

Se tomarmos novamente o capítulo 54, teremos sempre a dupla (4,7), que nos leva à seguinte lista: (sentado, reparar); (Kafka, Stendhal); (4, cliente); (fazer parte, criar); (cortiça, tapete de lã); (século 17, extremo oriente); (império, Guéridon); (3, clero); (mulher velha, abelha); (saia ou calça, a confeccionar); (flanela ou feltro, cinza); (luvas, relógio); (carta, pop ou folk); (A queda de Ícaro, Cem anos de Solidão); (cerveja ou cidra, queijos); (esculturas móveis, palavras cruzadas); (tédio, cartas e planos); (hexágono, poliedro); (plantas verdes, cristal); (4,7); (Philémon, Brouillard).[iii]

Assim Perec vai construindo tabelas e mais tabelas e se impõe a utilizar todos os procedimentos em sua ficção. A grande questão é que, numa primeira e ingênua leitura, não há como encontrar ou desvendar esses mistérios. Se o leitor quiser – e quiser “brincar” de detetive – há muitos segredos nessa e em todas as obras de Perec.   

Para saber mais: 

No meu livro Literatura e Matemática: Jorge Luis Borges, Georges Perec e o OULIPO (Perspectiva, 2016) discuto muitos dos jogos de Perec, além de comparar o seu uso da matemática com o do escritor argentino Jorge Luis Borges.

Em meus livros ficcionais Antiterapias (Scriptum, 2012), Brochadas: confissões sexuais de um jovem escritor (Rocco, 2015), Meshugá: um romance sobre a loucura (José Olympio, 2016) e Nobel (José Olympio, 2018) uso algumas restrições e jogos escondidos.

Bibliografia

BURGELIN, Claude. Georges Perec. Paris: Éditions Seuil, 1988.

PEREC, Georges. A vida modo de usar. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

PEREC, Georges. Espèces d’espaces. Paris: Galilée, 2000.

FUX, Jacques: Literatura e Matemática : Jorge Luis Borges, Georges Perec e o OULIPO (Perspectiva, 2016).

 

[1] Escritor vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura em 2013 com Antiterapias (Scriptum, 2012). Autor de Brochadas: confissões sexuais de um jovem escritor (Rocco, 2015), Meshugá: um romance sobre a loucura (José Olympio, 2016) e Nobel (José Olympio, 2018). Matemático, mestre em Ciência da Computação e doutor em Literatura pela UFMG e pela Université de Lille 3. Foi pesquisador visitante na Universidade de Harvard. Pós-doutor em Teoria Literária pela UNICAMP e pela UFMG. Com o Literatura e Matemática: Jorge Luis Borges, Georges Perec e o OULIPO (Perspectiva, 2016) venceu o Prêmio Capes pela melhor tese do Brasil em Letras/Linguística e foi finalista do Prêmio APCA.

[i] O tabuleiro de xadrez é de tamanho 8 x 8, porém Perec utiliza um suposto tabuleiro de 10 x 10, contendo 100 casas.

[ii] Georges Perec, Le cahier des charges de la Vie mode d’emploi, Paris, CNRS, Zulma, 1993.

[iii] Magné, Hartje e Neefs, Le cahier des charges.

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