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Robert Walser, o miniaturista

Editoria Ana Caetano

Fragmento do conto “Autumn” (Outono) do livro “A schoolboy’s diary” (Diário de um estudante)

“When autumn comes, the leaves fall from the trees to the ground. Actually, I should have said: When the leaves fall, it is autumn. I need to improve my style. Last ime the teacher wrote: Style, wretched. It’s upsetting but there’s nothing I can do about it. I like Autumn (…) Nature really is great. The way it shifts colors, changes robes, puts on masks and takes them off again!! It’s very beautiful. If I was a painter, and it’s not out of the question that I’ll become one someday, since after all no one know what their destiny may be, I would be most fervently an Autumn painter. I’m only afraid that my colors wouldn’t be up to it. Maybe I still don’t understand it enough. And anyway, why should I worry at all about something that hasn’t even happened yet? Only the present moment should and must concern me deeply. Where did I hear that? I must have heard it somewhere, maybe from my older brother, who is in college. It will be Winter soon, the snow will swirl, oh how I’m looking forward to that! When everything outside is so white, everything in class is so right. Colors fill up your mind too much with all sorts of muddled stuff. Colors are too sweet a muddle, nothing more. I love things in one color, monotonous things. Snow is such a monotonous song. Why shouldn’t color be able to make the same impression as singing? White is like a murmuring, whispering, praying. Fiery colors, like for instance Autumn colors, are a shriek. Green in midsummer is a many-voiced song with all the highest note. Is that true? I don’t know if that’s right. Well, the teacher will surely be
so kind as to correct it.” 1

Quando o outono chega, as folhas caem das árvores. Na verdade, eu deveria ter dito: Quando as folhas caem, o outono chegou. Tenho que melhorar meu estilo. Na última vez, o professor escreveu: Estilo, terrível. É preocupante, mas não há nada que eu possa fazer sobre isto. Gosto do outono. (…) A natureza é realmente assombrosa. A maneira como ela muda as cores, troca de vestes, coloca máscaras para retirá-las novamente!! É maravilhoso. Se eu fosse um pintor, e não está descartado que eu o serei um dia já que ninguém sabe ao certo seu destino, eu seria certamente um pintor do Outono. Apenas receio que minhas cores não lhe fariam jus. Talvez eu não o entenda o suficiente. E, de qualquer maneira, porque eu deveria me preocupar sobre algo que ainda não aconteceu? Apenas o presente momento me importa e deve me importar profundamente. Onde eu ouvi isto? Devo ter escutado em algum lugar, talvez do meu irmão mais velho que está na universidade. O inverno está chegando, a neve irá rodopiar, ah mal posso esperar! Quando tudo lá fora está tão branco, tudo na sala de aula é tão perfeito. As cores enchem nossa mente com todos os tipos de coisas confusas. Cores são uma doçura muito confusa, nada mais. Eu amo coisas em uma só cor, coisas monótonas. A neve é uma canção tão monótona. Por que uma cor não seria capaz de causar a mesma impressão que uma canção? O branco é como um murmúrio, um sussurro, uma oração. Cores fogosas, como cores do outono, são um grito. O verde no verão é uma canção de muitas vozes com todos os tons mais altos. Será verdade? Não sei. Mas o professor terá certamente a gentileza de nos corrigir sobre isto.


As guirlandas de linguagem de Robert Walser são tais que “cada sentença parece ter o único propósito de tornar esquecida a anterior”, diria Walter Benjamin sobre o escritor. Essa impressão é compartilhada por outros admiradores como W.G. Sebald que considerava a escrita de Walser uma espécie de ato de evasão: “sua prosa parece evaporar à medida que é lida”. A potência da escrita desse autor genial e inclassificável deriva exatamente dessa recusa de heroísmo e da valorização da minúcia, da insignificância, da monotonia. Seu maior interesse e sua grande proeza foi se abster de pensamentos acabados para capturar as maravilhas do êfemero e os movimentos da mente do narrador no seu próprio ato de pensar. Assim, ao ler suas histórias densas de detalhes e as digressões de seus personagens, o que permanece conosco é esse movimento, muito mais que o significado de uma sentença ou a imagem de um acontecimento.

Robert Otto Walser nasceu em 1878, em uma família com muitas crianças; cresceu em Biel, na Suiça, na fronteira linguística do alemão e do francês. Dominava os dois idiomas, embora tenha escrito sua obra em alemão. Após a morte da mãe “emocionalmente perturbada”, viveu em Stuttgard com o irmão e logo depois em Zurique onde foi introduzido ao grupo Art Nouveau que se articulava em torno da revista Die Insel. Vários contos e poemas de Walser foram publicados na Die Insel nesse período (1898-1905).

Nos anos que viveu em Berlin (1905-1913) com o irmão Karl escreveu as novelas Geschwister Tanner, Der Gehülfe e Jakob von Gunten que foram publicadas pela editora onde Christian Morgenstern trabalhava como editor. A narrativa irônica, delicada e inusitada das novelas e dos muitos contos publicados em revistas e jornais da época o tornaram um autor respeitado por escritores como Herman Hesse, Walter Benjamin, Kurt Tucholsky, Stefan Zweig, Franz Kafka entre outros. O austríaco Robert Musil dizia que a prosa curta kafkiana mais parecia “um caso particular do tipo Walser”.

De volta à Suiça em 1913, Walser apurou seu estilo único: linguagem elusiva, subjetiva mas bem humorada e elegantemente simples. Em Biel, Walser escreveu inúmeros contos dos quais os mais conhecidos são Der Spaziergang (1917), Prosastücke (1917), Poetenleben (1918), Seeland (1919) e Die Rose (1925) que apareceram em jornais e revistas da Alemanha e da Suiça. Dentre os experimentalismos de Walser, é notável a sua fascinação pela pulp fiction. Muitos dos textos desse período são recriações de novelas populares no formato de contos. Tais combinações ambíguas de sofisticação e simplicidade, ironia e disciplina, senso de humor e apreço pelo estranho se tornaram traços marcantes da sua obra.

Entre as novelas, as peças e os contos, um dos textos mais notáveis de Walser foi um dos primeiros: “Os ensaios de Fritz Kocher” (Fritz Kochers Aufsätze) de 1904. Em um golpe de mestre, Walser se lançou como escritor disfarçado de um estudante morto na sua juventude que deixa para a posteridade uma coleção de exercícios (ensaios) literários. “The boy who wrote these essays passed away not long after he left school. I had some difficulty convincing his mother, a dear and honorable lady, to allow me to publish them. (…) Farewell my little friend! Farewell, reader!” (O garoto que escreveu esses ensaios faleceu logo depois de deixar a escola. Eu tive alguma dificuldade em convencer sua mãe, uma prezada e honrada senhora, a permitir que eu os publicasse. (…) Adeus, meu amiguinho! Adeus, leitor!). A partir dessa introdução, o livro se compõe de ensaios curtos sobre temas variados. A primeira edição da obra incluiu ilustrações feitas pelo irmão Karl Walser, um artista plástico de sucesso na época. Nesse livro aparentemente sem fio condutor, o autor já exibe suas digressões bem humoradas, os auto-questionamentos narrativos, a ironia, a improvisação elegante e a ambiguidade oscilante entre sofisticação literária e simplicidade que encontramos em toda a sua obra.

A partir de 1929, Walser foi internado várias vezes em sanatórios diferentes sob a alegação de sofrer de alucinações. Durante essas repetitivas internações (entre 1924 e 1932), ele produziu uma série de poemas e textos em prosa escritos a lápis em caligrafia Sütterlin (Sütterlinschrift), a mais difundida forma da tradicional caligrafia alemã (Kurrent). Chamados de “microgramas”, esses textos compõem uma coleção de 526 folhas de formatos diferentes densamente cobertas de letras de um milímetro de altura e ilegíveis à primeira vista. Werner Morlang e Bernhard Echte foram os primeiros a decifrá-los e publicá-los nos anos 90 em uma edição de 6 volumes chamada Aus dem Bleistiftgebiet (“Escritos a lápis”). Atualmente, uma edição em espanhol dos microgramas de Walser está disponível no formato de coletânea (“Escrito a lápiz”) traduzida do alemão por Juan de Sola Llovet e publicada pela Editora Siruela.

Para esse narrador da minúcia, o ofício da escrita e as trajetórias dos personagens se confundiram muitas vezes com sua própria itinerância. Walser sempre foi um caminhante incansável. Especialmente nos últimos anos de vida, os longos passeios eram sua primeira fonte de inspiração, de onde ele extraía os encontros furtivos com seus pequenos grandes temas. “Sem passear eu estaria morto”, dizia o autor. Em um de seus contos mais famosos, “O Passeio”, ele descreve exatamente uma dessas jornadas pelo estranho e delicado cotidiano. Traduzido para o inglês por Christopher Middleton em 1955, o conto foi magnificamente introduzido por Susan Sontag que chamava Walser de “Paul Klee em prosa”. Diz Sontag sobre o conto e o autor:

“A variedade do tempo nas estórias de Walser, sua elegância e sua extensão imprevisível me lembra as formas livres na primeira pessoa abundantes na literatura clássica japonesa: livro de cabeceira, diário poético, ensaios do ócio. Mas qualquer admirador apaixonado de Walser recusará tais comparações acerca do seu trabalho… Walser é um miniaturista, promulgando as vozes do anti-heroico, do limitado, do modesto, do pequeno – como se em resposta ao seu sentimento agudo pelo interminável… Ele tinha a fascinação depressiva pelo estático, pelo tempo que se estende e é consumido; e passou a maior parte da sua vida obscessivamente transformando o tempo em espaço: suas caminhadas.”2

De fato, ele nunca deixou de fazer suas longas caminhadas. Tampouco abandonou a escrita, mesmo nos anos difíceis da década de 40 quando crises depressivas e alucinações o conduziram a vários sanatórios onde ele passou o restante da sua vida. Embora Walser tenha conhecido um sucesso precoce no início da sua carreira literária, a popularidade do seu trabalho gradualmente diminuiu durante as décadas que se seguiram à I Guerra Mundial tornando sua influência uma mera sombra e sua sobrevivência como escritor crescentemente difícil.

Seus livros em prosa ganharam algumas traduções em português: “Histórias de amor”, “Histórias de imagens”, “Absolutamente nada e outras histórias”, “Os irmãos Tanner”, “Jakob von Gunten, um diário”, “O ajudante”. Restam, no entanto, várias das suas magníficas peças literárias a serem traduzidas.

Referências:

1. Fragmento do conto “Autumn”. De “A Schoolboy’s Diary”, 2013. New York Review Books. New York. ISBN 978-1-59017-672-6. Tradução para o português: Ana Caetano, 2018.

2. Susan Sontag,”Introduction to The Walk.” De Selected Stories of Robert Walser, 2002. New York: NYRB Classics ISBN 978-0940322981

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