Por Andréa Flores
Editoria Elisa Belém
Viajar é como perder-se-me. Sou uma artista com constante necessidade de deslocamento, de saída, de perdição. Há tempos que faço partidas em busca do riso, da comicidade, em um território complexo onde nasci, vivo e com o qual crio: Amazônias. Sou palhaça há dez anos. Com os deslocamentos, prestei mais atenção aos espelhos diante de mim. E o que vi, o que tenho visto, tem redimensionado toda minha criação, retorcendo meu corpo cômico.
Olho-me. Vejo palhaça, nariz vermelho, herança europeia. Em sala de aula, vejo-me ensinando palhaçaria, indicando leituras de autores que nem meus alunos, nem eu sabemos pronunciar bem o nome, ou de outros brasileiros que ensaiam e ensinam essa pronúncia há tempos. O problema não são eles, nem é uma questão de pronúncia; o problema é quando sabemos somente deles e não conseguimos pensar sobre que mecanismos fizeram a cisão entre “eles” e “nós”, tornando-os importantes, respeitados e conhecidos, e nós, os atrasados, não importantes ou não conhecidos.
Olho-me no dia a dia, comendo peixe envenenado com resíduos que as grandes empresas de mineração jogam nos rios amazônicos; comprando legumes, frutas e verduras, cultivadas com agrotóxicos, em áreas de plantio criadas a custas da derrubada de áreas verdes e de invasão de território indígena, no melhor estilo Agro.é.tech.agro.é.pop.agro.é.tudo. Agro é veneno e bancada ruralista. Corpo rico em metais pesados, corpo esmagado pelo latifúndio. Vejo-me dirigindo um carro que passa ao lado de um braço de rio, tornado canal, dentro de Belém, exalando o mau cheiro de sua morte enlixarada.
O espelho revela-me afroindígena, olhos repuxados, neta de Helena, sobrinha de Selma, parente de tantas mulheres de religião afrobrasileira, vivas ou mortas, sobre as quais sei que incorporavam, principalmente, entidades indígenas. Pergunto sobre elas, sobre seus caboclos, pergunto sobre Ivone, esposa do falecido tio Césio, uma das poucas que mantém sua prática religiosa. A família cala, fala baixo, fala pouco, fala mal. Práticas pecaminosas. Meu pai tinha curadas suas doenças banhando-se com banho de cheiro e outras pajelanças, levado pela vovó Helena. Hoje esses costumes tornaram-se obsoletos, estranhos, diabólicos talvez. E sobre os caboclos daquelas mulheres da família não se fala mais, mas sei que estão vivos.
Lembro de Tia Ângela, minha tia-avó, que nos recebeu em sua casa na beira da praia, em Salvaterra, na Ilha do Marajó, quando eu tinha dez anos. Outra dessas mulheres sobre as quais não se fala muito, ela observava-me, certo dia, enquanto eu tomava banho de praia de rio o dia inteiro, até que me tirassem quase à força de lá. Eu não saía da água, sempre fui assim. Eu a ouvi dizer a meu pai: “Cuidado com essa menina nas águas”. E então ficou estranha, diferente, dizendo coisas, era o que viam meus olhos de criança. Tiraram-na de minha frente, disseram que ela era assim por ser “metida com macumba”. Cuidado com esta menina nas águas. Cuidado com esta menina das águas. Ela pode deixar-se levar, ao cansar de tanto nadar para alcançar a terra firme, que lhe parece cada vez mais branca e colonizadora.
Eu já tomei chá de ervas para enjôos, dores de estômago e cansaço. Andiroba para garganta e músculos inflamados. Já usei fava de jucá para ferimentos e também já me perfumei com o perfume que vovô ensinou alguns filhos a fazerem, a base de patichouli e outras ervas aromáticas. O mesmo que um namorado meu uma vez sentiu em mim e disse que era cheiro “de macumba”. Mesmo assim, não me contaram de onde vim. A família não fala sobre nosso sangue negro e indígena, mas tem orgulho das influências brancas.
Eis o que me impulsiona em viagens, nesta atual necessidade de perder-me. Sigo em busca de comicidades, mas digo que é preciso decolonizar: o riso, o pensamento, o corpo. Tudo está em seca: o modo de viver e compreender o mundo, a Amazônia urbana que conheço, meu riso, o teatro que faço e ensino (como se houvesse um só teatro, como se a palavra “teatro” fosse suficiente). Invento que é floresta adentro o lugar para onde preciso deslocar-me. São outras amazônias, são outras comicidades, são outras epistemes. Parto em busca de comicidades de floresta, ameríndias, que operam com outros regimes de poder, saber e ser, que se situam nas fissuras dos regimes de colonialidade.
Há um processo criativo em curso, a ele denomino Curupirá, com acento. Curupira, sem acento, é ser encantado que habita a vida das florestas nas Amazônias. Suas gargalhadas assustam e confundem os que entram inadvertidamente na floresta. O Curupira tem os pés virados para trás, deixando pegadas invertidas no caminho para que os caçadores se percam. Talvez nunca retornem. Curupira protege a floresta, protege onças e outros bichos em risco de extinção, bichos e entes que são mortos não somente em seu habitat, mas principalmente em nosso corpo, desonçado, colonizado. Em celebração ao modo como caminha o Curupira e a sua função na mata, no pensamento, com a poética cênica que crio convido a curupirar: virar os pés, virar a cabeça, alterar perspectivas. Curupirar, verbo que vira Curupirá. Curupirá é a virada de um corpo que abandona o Ocidente como referência absoluta para o pensamento.criação. Riso decolonial, traiçoeiro e abusado, potente para a vida humana dentro e fora das Amazônias. É preciso Curupirá o mundo e ainda haverá um dia em que o mundo Curupirá.
Agosto de 2017. Viajo doze horas em um avião de Belém a Brasília, e de Brasília a Rio Branco, no Acre. Não há voos diretos, nem baratos. Sigo por cerca de quatro horas de estrada até o Estado do Amazonas, fronteira com o Acre. Município de Boca do Acre. Beira do rio Purus. Entro em uma pequena embarcação. Cerca de quinze minutos depois, desço, faço uma trilha. Em seguida, subo uma ribanceira íngreme. Finalmente chego à Terra Indígena Camicuã e de lá não saio mais, meu corpo foi dilatado e uma parte jamais voltou.
Fevereiro de 2018. Belém, Pará. Abro, pela primeira vez a sala de trabalho de Curupirá para um ensaio aberto, depois de meses sozinha ou brevemente acompanhada, em processo de criação. Quem entra na sala, depara-se com todos os bichos que passam a habitar-me. Traquinos, malinos, libidinosos. Eles retorcem a cômica.
Macunaíma,
curimã curioso,
osso duro de roer.
Macunaíma,
ser que é
quando não-sendo
e sido.
-Irmãos! Irmãos!
Eu quero ver um sexo de mulher!
Macunaíma,
não é mais. Seria
cueiro de ócios, vícios,
setestrelo.
E como não servisse.
passa a ser
corpo de quati,
ainda que não sendo.
Pretérito e presente,
nunca é o seu agora,
que nesta hora é cobra
e já descobre,
o seu momento réptil.
-Irmãos! Irmãos!
Eu quero ver um sexo de mulher!
Macunaíma ri.
Sorri e é rio
espumando-se em peraus,
dentes de lama.
A sina e o sim do sexo,
fixo nexo
de Macunaíma à vida.
Macunaíma, formiga,
sobe o tronco,
alvo tronco de verdes arrepios.
No alto o fruto pende
maduramente aberto
em ventre de folhagens.
Em joelho e nós
escala dermes e cascas,
que de bem perto quer ver
e que se oferta em delta,
Aporta perto e espia
nos lábios labaredas que o engolem e dentro desse verde vasto sexo,
amazonsexo selva riocorrente,
encontra um olho fixo ocupante.
Dores e tratores,
pororocas
e cocares sangrentos,
malinados,
castas índias e seus
machos castrados,
machados decepados,
mitos emasculados em barrancos…
Macunaíma treme,
mas não teme,
tanto que agora é centopéia
e tem cem direções para fugir.
JOÃO DE JESUS PAES LOUREIRO, poeta paraense.