Por Lucas Guimaraens
A globalização econômica produz um tipo de despontencialização das democracias, da educação e da humanidade. A globalização tenta desenvolver uma racionalidade do mundo e do ser humano onde a espécie humana seria obrigada a simplesmente obedecer, alcançar metas e a produzir uma espécie de sucesso civilizatório. Mas, a meu ver, a globalização não produz mais do que uma falência cultural. Esta falência parece ser, erroneamente, o nosso destino, pois a humanidade em geral é avaliada e se avalia de acordo com a satisfação de suas necessidades de base: alimentares, sexuais e de segurança. Desta forma, a desregulamentação do mundo atual parece estar fundada em um processo de experimentação total das necessidades humanas e na conquista de suas satisfações. A satisfação destas necessidades básicas torna-se a força motriz de todos e a necessidade de educar o ser humano desaparece.
As instituições do saber, como as universidades, os museus e as bibliotecas parecem desprovidas de condições para formar uma cultura humana como alternativa a esta mera pulsão experimental das necessidades básicas do homem.
Assim, as democracias desaparecem igualmente quando os governos estatais se dão o direito arbitrário de impor seus próprios conceitos, seus interesses materiais, pretendendo, desta maneira, salvar as democracias que eles exploram para fazer reconhecer a legitimidade de sua supremacia. O espaço social não mais respeita os direitos humanos e torna-se, cada vez mais, um espaço onde todas as relações econômicas e políticas escapam de todas as regulações.
Estas falências globais sobre as quais falamos são contudo acompanhadas da possibilidade de inverter o foco da educação no que concerne a regulamentação e a civilização do ser humano.
Como poderíamos inverter este quadro? A resposta não é simples: é necessário restaurar uma conexão à cultura que não mais seria vista como uma área do conhecimento que teria apenas uma natureza criativa desprovida de qualquer regra. Ao contrário, a cultura deve ser compreendida como o poder que existe em sua natureza de moldar a razão humana e suas manifestações corporais, de saberes e não saberes, de memórias e de expressões do conhecimento acadêmico e não-acadêmico.
De acordo com o Manifesto Sobre as Bibliotecas Públicas da IFLA/UNESCO de 1994, observamos:
A Biblioteca Pública
A biblioteca pública é o centro local de informação, tornando prontamente acessíveis aos seus utilizadores o conhecimento e a informação de todos os gêneros.
Os serviços da biblioteca pública devem ser oferecidos com base na igualdade de acesso para todos, sem distinção de idade, raça, sexo, religião, nacionalidade, língua ou condição social. Serviços e materiais específicos devem ser postos à disposição dos utilizadores que, por qualquer razão, não possam usar os serviços e os materiais correntes, como por exemplo minorias linguísticas, pessoas deficientes, hospitalizadas ou reclusas.
Todos os grupos etários devem encontrar documentos adequados às suas necessidades. As coleções e serviços devem incluir todos os tipos de suporte e tecnologias modernas apropriados assim como fundos tradicionais. É essencial que sejam de elevada qualidade e adequadas às necessidades e condições locais. As coleções devem refletir as tendências atuais e a evolução da sociedade, bem como a memória da humanidade e o produto da sua imaginação.
As coleções e os serviços devem ser isentos de qualquer forma de censura ideológica, política ou religiosa e de pressões comerciais.
Ainda, no mesmo manifesto, encontramos quais seriam as missões das bibliotecas públicas:
As missões-chave da biblioteca pública relacionadas com a informação, a alfabetização, a educação e a cultura são as seguintes:
- Criar e fortalecer os hábitos de leitura nas crianças, desde a primeira infância;
- Apoiar a educação individual e a auto-formação, assim como a educação formal a todos os níveis;
- Assegurar a cada pessoa os meios para evoluir de forma criativa;
- Estimular a imaginação e criatividade das crianças e dos jovens;
- Promover o conhecimento sobre a herança cultural, o apreço pelas artes e pelas realizações e inovações científicas;
- Possibilitar o acesso a todas as formas de expressão cultural das artes do espetáculo;
- Fomentar o diálogo intercultural e a diversidade cultural;
- Apoiar a tradição oral;
- Assegurar o acesso dos cidadãos a todos os tipos de informação da comunidade local;
- Proporcionar serviços de informação adequados às empresas locais, associações e grupos de interesse;
- Facilitar o desenvolvimento da capacidade de utilizar a informação e a informática;
- Apoiar, participar e, se necessário, criar programas e atividades de alfabetização para os diferentes grupos etários.
Há, neste momento, que se ponderar sobre as formas estratificadas que deram, no Brasil e no mundo, ensejo às bibliotecas, tais como elas se encontram hoje. Cabe lembrar que uma biblioteca só atinge suas missões se estiver não somente inserida na comunidade onde se encontra, mas também se tiver as mãos e as ideias desta comunidade em sua construção e utilização. Em resumo, retomo, em analogia, a frase do filósofo Michel Foucault que diz: “O intelectual tem como função organizar e reunir as ideias, mas seu saber é parcial em relação ao saber operário”. Em outro contexto, o que esta frase remeteria à função e ao serviço bibliotecário? Entendemos, nesta frase e no contexto em tela, que a vida da biblioteca somente permanecerá se os agentes públicos entenderem o saber da sociedade civil e, a partir dele, aceitarem o desenvolvimento das atividades múltiplas que podem e devem existir dentro deste equipamento cultural.
O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos nos alerta sobre os perigos de se compartimentar as áreas do conhecimento, sem haver diálogos entre estas áreas e diz, em seu livro “A Crítica da Razão Indolente”, que todo conhecimento é total e global. Assim, ele discorre que, na ciência moderna o conhecimento avança pela especialização. O conhecimento é tanto mais rigoroso quanto mais restrito é o objeto sobre que incide. Nisso reside, aliás, o que hoje se reconhece ser o dilema básico da ciência moderna: o seu rigor aumenta na proporção direta da arbitrariedade com que espartilha o real. Sendo um conhecimento disciplinar, tende a ser um conhecimento disciplinado, isto é, segrega uma organização do saber orientada para policiar as fronteiras entre as disciplinas e reprimir os que as quiserem transpor. É hoje reconhecido que a excessiva parcelização e disciplinarização do saber científico faz do cientista um ignorante especializado e que isso acarreta efeitos negativos. Esses efeitos são sobretudo visíveis no domínio das ciências aplicadas. As tecnologias preocupam-se hoje com o seu impacto destrutivo nos ecossistemas; a medicina verifica que a hiperespecialização do saber médico transformou o doente numa quadrícula sem sentido quando, de fato, nunca estamos doentes senão em geral; a farmácia descobre o lado destrutivo dos medicamentos, tanto mais destrutivos quanto mais específicos, e procura uma nova lógica de combinação química atenta aos equilíbrios orgânicos; o direito, que reduziu a complexidade da vida jurídica à secura da dogmática, redescobre o mundo filosófico e sociológico em busca da prudência perdida; a economia, que legitimara o reducionismo quantitativo e tecnocrático com o pretendido êxito das previsões econômicas, é forçada a reconhecer, perante a pobreza dos resultados, que a qualidade humana e sociológica dos agentes e processos econômicos entra pela janela depois de ter sido expulsa pela porta; para grangear o reconhecimento dos usuários de serviços (que, públicos ou privados, institucionais ou individuais, sempre estiveram numa posição de poder em relação aos analisados) a psicologia aplicada privilegiou instrumentos expeditos e facilmente manuseáveis, como sejam os testes, que reduziram a riqueza da personalidade às exigências funcionais de instituições unidimensionais.
Os males desta parcelização do conhecimento e do reducionismo arbitrário que transporta consigo são hoje reconhecidos, mas as medidas propostas para os corrigir acabam em geral por os reproduzir sob outra forma. Criam-se novas disciplinas para resolver os problemas produzidos pelas antigas e por essa via reproduz-se o mesmo modelo de cientificidade. Apenas para dar um exemplo, o médico generalista, cuja ressurreição visou compensar a hiperespecialização médica, corre o risco de ser convertido num especialista ao lado dos demais. Este efeito perverso revela que não há solução para este problema no seio do paradigma dominante e precisamente porque este último é que constitui o verdadeiro problema de que decorrem todos os outros.
No paradigma emergente o conhecimento é total, tem como horizonte a totalidade universal de que fala Wigner ou a totalidade indivisa de que fala Bohm. Mas sendo total, é também local. Constitui-se em redor de temas que em dado momento são adotados por comunidades interpretativas concretas como projetos de vida locais, sejam eles reconstituir a história de um lugar, manter um espaço verde, construir um computador adequado às necessidades locais, fazer baixar a taxa de mortalidade infantil, inventar um novo instrumento musical, erradicar uma doença, etc., etc. A fragmentação pós-moderna não é disciplinar e sim temática. Os temas são galerias por onde os conhecimentos progridem ao encontro uns dos outros. Ao contrário do que sucede no paradigma atual, o conhecimento avança à medida que o seu objeto se amplia, ampliação que, como a da árvore, procede pela diferenciação e pelo alastramento das raízes em busca de novas e mais variadas interfaces.
A pergunta que fica no ar, por enquanto, é: até que ponto nossas bibliotecas se tornam instrumentos de desenvolvimento de ignorâncias especializadas? Que temas devemos agregar em nossas bibliotecas? Quais linguagens e expressões artísticas?
Na medida em que nos tornamos “ignorantes especializados”, nós privamos a nós mesmos e aos frequentadores das bibliotecas de nossa autonomia científica e de pensamento. Especializar-se, sim, para que possamos executar com primor nossos afazeres. Mas sempre em contato com as outras áreas do conhecimento e da cultura. Somente assim poderemos sair desta rua sem saída do tecnicismo que se perde em si mesmo e não consegue se comunicar e atingir seus objetivos: a transmissão de saberes, a memória da cultura e de outras áreas do conhecimento.
A fim de tomar a distância necessária em relação às limitações existentes nas verdades promulgadas em cada cultura e para que possamos, ao menos, analisar e criticar estas verdades e os valores atuais da vida, os grupos e os indivíduos precisam desenvolver sua educação.
Hoje, vivemos em um mundo onde grande parte dos países pressupõe aderir à democracia. No entanto, para que esta seja efetiva, é necessário o desenvolvimento da educação, da memória e da cultura. Não são estes, também, os pilares e função social das bibliotecas? Se respondermos positivamente a esta questão, como entender a biblioteca como espaço vivo e contemporâneo de convívio e conhecimento?
Aqui, retomo o conceito de “diálogo transcultural” forjado pelo filósofo e catedrático da Unesco de Filosofia da Cultura e Instituições, Jacques Poulain. O que seria o diálogo transcultural? Para que possamos responder, basta entendermos o conceito de multiculturalismo e interculturalidade.
O primeiro, multiculturalismo, entende que a humanidade (e mesmo as coletividades locais) são formadas por inúmeras formas de cultura diferentes. No entanto, elas não se comunicam, elas sabem da existência umas das outras mas se consideram autônomas e independentes.
A interculturalidade também percebe as diferentes formas de cultura. No entanto, aqui, elas aceitam coabitar os espaços sociais. Toleram umas as outras, mas não se deixam influenciar pelo diferente. No caso de uma biblioteca, seria o mesmo que não aceitar, em seus espaços, a ocupação de outras áreas artísticas e culturais que seriam, para os “ignorantes especializados”, objetos proscritos das funções de uma biblioteca.
O diálogo transcultural, por sua vez, reconhece as diferenças mas, sobretudo, tenta desenvolver uma análise de autocrítica através da qual cada grupo social, cada especialista acadêmico, cada profissional, cada país, cada cultura conseguem perceber suas lacunas e, mais, tentam preencher seus vazios através do diálogo com outras culturas, outras expertises, outras profissões. O princípio da transculturalidade é o da troca e o da contaminação mútua. É, talvez, o princípio norteador da própria sobrevivência das bibliotecas.
Se é verdade que toda biblioteca deve estar inserida na e com a comunidade onde se encontra; se ela tem livre acesso, gratuito, democrático e deve adaptar suas atividades de acordo com a demanda da sociedade, é necessário o entendimento dos agentes públicos de que este espaço pode e deve abrir suas portas também para outras atividades artísticas e culturais (em analogia à bibliodiversidade que tanto apregoam).
Assim, o Governo de Minas Gerais, em exemplo concreto, iniciou, a partir de 2016, de maneira ampla e colaborativa, em diálogo transcultural, seus primeiros passos para a construção do Plano Estadual do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas. O Livro e a Leitura no Brasil vêm sendo, nas últimas décadas, temas de incontáveis debates promovidos pela sociedade civil, sendo também alvo de investimento do Estado em programas de compra e distribuição de livros didáticos, literários e técnicos em escolas e bibliotecas públicas (ou a ausência e sempre risco da extinção destas ações do poder público, imprescindíveis para a sustentação da própria cadeia produtiva do livro). Esse movimento em torno da questão expôs problemas históricos, aventou algumas soluções, tentou romper velhos conceitos e gerou outros.
Assim, agentes públicos e sociedade civil se reuniram ao longo de 2 anos para estudar e diagnosticar os anseios, precariedades e, sobretudo, soluções para o desenvolvimento de uma sociedade efetivamente leitora. Este também é um momento importante para que toda a sociedade tome conhecimento de todas as atividades já desenvolvidas pela sociedade civil e pelo poder público nestes setores. Isto posto, um grupo de trabalho foi criado e desenvolveu encontros e pesquisas em torno de 4 eixos centrais: 1. Democratização do acesso; 2. Fomento à leitura e formação de mediadores; 3. Valorização institucional da leitura e o incremento de seu valor simbólico; 4. Desenvolvimento da economia do livro; incluindo diretrizes, metas e estratégias, de modo que planos de leitura sejam desenvolvidos no Estado e municípios, também por meio da cooperação do poder público e da sociedade civil, primando por um diálogo transcultural.
A partir do dia 29 de agosto de 2017, iniciou, assim, o Fórum Técnico Semeando Letras a fim de promover a cidadania e os direitos fundamentais por meio de um diálogo horizontal e democrático contemplando todas as regiões de Minas Gerais. O primeiro fórum ocorreu na cidade de Varginha (territórios Sul e Sudoeste). Em seguida, o evento se deu nos municípios de Juiz de Fora (territórios Mata, Caparaó e Vertentes), Montes Claros (território Norte), Governador Valadares (territórios Vale do Aço e Rio Doce), Belo Horizonte (territórios Metropolitano, Central e Oeste), Uberlândia (Triângulo Norte, Triângulo Sul e Noroeste) e Teófilo Otoni (Mucuri, Alto Jequitinhonha e Médio/Baixo Jequitinhonha). Por fim, realizou-se uma etapa final na Assembleia Legislativa e a elaboração de documento contendo os problemas encontrados, objetivos a serem alcançados com suas ações e metas a serem desenvolvidas. Espera-se, pois, que tal Plano se torne lei. E que, nesta lei, a biblioteca possa se tornar, na vida real, o chamado terceiro local (o primeiro e o segundo locais seriam a casa e o ambiente de trabalho).
Espera-se, pois, ampla participação e fiscalização da própria sociedade civil, uma vez que a cultura escrita é – apesar dos altos índices de analfabetismo – ponto central para o desenvolvimento cidadão. O diálogo transcultural é sinônimo de portas abertas. As bibliotecas são a concretude desta abertura por um mundo leitor e agregador de outras expressões artísticas e culturais. Em frente!