Por Raquel Castro*
Editoria Julia Guimarães
Em março de 2020, teatros e outros espaços culturais fecharam as portas em todo o Brasil devido às medidas de distanciamento social necessárias para conter a propagação do novo coronavírus, causando grande impacto nos setores artísticos e culturais do país.
A realização de diversas atividades artísticas, dentro ou fora dos edifícios teatrais, foi impossibilitada, afetando, especialmente, as chamadas “artes vivas”; como o teatro, a dança, o circo, a ópera, os shows e concertos musicais ao vivo. Nessas manifestações, o compartilhamento das mesmas coordenadas de espaço e tempo entre artistas e público é considerado, na maioria das vezes, imprescindível.
Aos poucos, os teatros, museus, centros e espaços culturais do país vêm sendo autorizados a reabrir suas portas por decretos municipais. No entanto, a efetiva reabertura e a retomada das atividades presenciais exigem protocolos e medidas de segurança difíceis de serem adotadas, ao menos a curto prazo, por espaços e artistas independentes, que somam grande parte dos agentes culturais no Brasil. Além disso, a questão da mobilização e formação do público para algumas áreas, como é o caso das artes da cena, que já era complexa mesmo antes da pandemia, virá à tona no contexto da flexibilização do distanciamento social.
Diante desse cenário, há uma pergunta que talvez alguns espectadores habituais de teatro tenham feito a si mesmos: entre a interrupção das atividades artísticas e o momento de sua retomada, ainda que gradual, a que se dedicaram/dedicam os artistas de teatro?
Sem dúvidas, não há uma resposta única para essa questão e, provavelmente, como qualquer outro setor da sociedade que abrange a classe trabalhadora, as respostas incluem a busca por meios de sobrevivência e adaptação aos novos modos de vida impostos pela pandemia.
De toda forma, é fato que os edifícios teatrais fecharam e o convívio entre artistas e público foi impossibilitado em suas formas mais comuns, mas o teatro não parou. No Brasil e no mundo, artistas da cena lançaram-se, como puderam, à investigação das possibilidades de criação e compartilhamento de suas obras em tempos de distanciamento. Com projetos e processos de criação em andamento, suspensos pelo início da pandemia ou instigados por novas questões, diretoras(es), atrizes, atores, dramaturgas(os), técnicas(os), produtoras(es) e outros trabalhadores e trabalhadoras do teatro, que por sua natureza é considerado uma “arte da presença”, vêm buscando outras formas de experimentar a ideia de convívio e criar efeitos de copresença em suas obras.
Há quem tenha se voltado para a própria história do teatro na busca de possíveis saídas para o teatro do chamado “novo normal”, revisitando, por exemplo, o teatro lambe-lambe1, a tradição dos crieurs de rue2 franceses, o radioteatro ou teatro radiofônico, o teleteatro da década de 1950, o teatro de escalas ampliadas em que você vê os atores de longe, além de outras formas de teatro a céu aberto ou apresentações para um público bastante reduzido.
A maioria dos artistas, contudo, voltou seu olhar para o espaço virtual e tem realizado trabalhos no formato digital. Suas obras são híbridas e, no mínimo, instigantes. “Experimento sensorial em confinamento”, “peça digital”, “espetáculo online”, “teatro vídeoconferência”, “cineteatro de pandemia”, “live teatro de Instagram” ou um “filme-ensaio” para uma peça que estava a ponto de estrear, são algumas das denominações atribuídas pelos artistas às suas obras criadas nos últimos meses. Entre as plataformas utilizadas para a realização das criações, as mais comuns são Youtube, Instagram, Whatsapp, Facebook e Zoom.
É importante lembrar que a tecnologia sempre esteve presente no teatro e a neotecnologia3, desenvolvida a partir do surgimento do computador, na década de 1940, e, principalmente, da internet, no final da década de 1960, já permeava várias obras de artistas da cena desde o final do século XX. Pode-se observar, no entanto, que a grande maioria das criações teatrais brasileiras contemporâneas, até março de 2020, privilegiavam o convívio entre os corpos presentes no tempo-espaço do acontecimento teatral. Mesmo nas obras atravessadas pelas mídias digitais, preservava-se certa valorização da copresença através da ausência evidenciada pelo jogo com as novas tecnologias.
Já presente no cotidiano de grande parte das pessoas, a virtualização das relações, dos corpos e dos espaços, intensificada pela necessidade do distanciamento social, passa a ser experimentada mais amplamente também em atividades antes essencialmente presenciais, como o teatro e a educação. Trata-se de uma mudança considerável. É possível dizer que há duas perspectivas principais e, à primeira vista, contraditórias sobre o assunto. A primeira teme uma desumanização das relações, já anunciada em livros como Admirável mundo novo (1932) ou na série inglesa Black Mirror (2011). A segunda, no rastro do filósofo Pierre Levy4, considera a virtualização como uma heterogênese do humano. Para o autor, o virtual é uma possibilidade, uma realidade e uma presença latentes.
As obras digitais criadas pelos artistas de teatro nos últimos meses trazem, em maior ou menor grau, as marcas dessas duas perspectivas. Algumas estabelecem uma relação mais fluida, outras, mais conflitiva com a cibercultura e suas narrativas próprias, valorizando ou não a interatividade, o hipertexto e expondo a convergência ou divergência entre o mundo online e o mundo offline.
Há ainda aqueles artistas para os quais a relação entre teatro e internet provoca certa tensão. A “contaminação” do teatro pelas outras mídias causava-lhes insatisfação mesmo antes da pandemia. Muitos discutiram o lugar normativo do que o teatro é ou não é, defenderam a resistência às investidas digitais, enfatizaram a exaustão das lives e das redes sociais e criticaram o imediatismo na produção durante a pandemia.
Sob o prisma menos temerário em relação à virtualização, outros artistas dedicaram-se a ressaltar que as obras digitais podem ser sim consideradas experiências teatrais. Se aqueles reafirmam as especificidades de cada linguagem, estes destacam aquilo que é comum a elas.
Também é notória a preocupação legítima de muitos artistas e público de que esse processo do teatro digital, acelerado pela pandemia, possa deixar muita gente para trás. É fato que os obstáculos para a democratização do acesso ao teatro já existiam e seria triste criar ainda mais obstáculos agora, seja no acesso ao seu ensino, produção ou apreciação.
Ainda assim, muitas criações artísticas brasileiras produzidas no período atual têm sido acessadas por centenas de pessoas do país e do exterior graças aos esforços e às pesquisas de artistas de teatro, muitas vezes sem verba ou condições técnicas para realiza-las.
Dentre as obras teatrais digitais compartilhadas com o público nos últimos tempos, algumas incorporam em grande medida características intrínsecas aos espaços virtuais; como a cultura da participação, a obra aberta à coautoria, a imersão e o agenciamento. Alguns exemplos nesta direção são as peças Clã_destin@, teatro imersivo digital do grupo Clowns de Shakespeare (Natal); Parece loucura mas há método, da Cia. Armazém (Londrina/Rio de Janeiro); Tudo que coube numa VHS e Todas as histórias possíveis, do Grupo Magiluth (Recife); Poema em queda livre, da Cia. Mungunzá (São Paulo); e Errantes, criação cênica online em 9 episódios, do grupo Teatro Público (Belo Horizonte). São obras inéditas, realizadas ao vivo na maior parte do tempo, em uma ou mais plataformas digitais.
Outros trabalhos, mais marcados por sua grande afinidade com a linguagem audiovisual do que com as especificidades das mídias digitais, preservam ainda uma forte relação com a experiência teatral anterior à criação digital das obras. É o caso de Frequência 20.20; da atriz, diretora e dramaturga Grace Passô e Em Companhia; com Renata Sorrah. As artistas remetem às experiências de convívio com o público durante as temporadas presenciais, aos espaços pelos quais o trabalho circulou e às equipes artísticas e técnicas da obra original. Tais referências abrangem mais de uma obra das quais as artistas participaram e a ação de rememorar essas vivências conduz as (des)montagens online. Esse processo confere certa nostalgia aos trabalhos (basta dizer que Frequência 20.20 começa com a frase “Ai que saudade de um palco!”) e provavelmente será uma experiência diferente para quem assistiu aos espetáculos no teatro e quem está tendo o primeiro contato com a obra no formato digital. Outras criações digitais que propõem uma releitura de obras anteriores e vale a pena conferir são os projetos Quatroloscinco em Leitura, do grupo Quatroloscinco (Belo Horizonte) e Maré, escutas coletivas, da Cia. Brasileira de Teatro (Curitiba).
Há também obras que transitam entre a nostalgia e o assombro de não estarem nos palcos e a apropriação intensa da tela e do espaço virtual. Éramos em bando, filme-ensaio do Grupo Galpão (Belo Horizonte) e Peça, espetáculo documental online idealizado pelo ator Marat Descartes e dirigido por Janaína Leite (São Paulo), são trabalhos que estavam em processo quando a pandemia começou e aceitaram o desafio de habitar o ambiente virtual provocando experiências diferentes de expectação.
Seja na perspectiva mais distópica e temerosa ou mais adepta às possibilidades do espaço virtual (ou, ainda, no tensionamento entre ambas) as admiráveis criações artísticas online na área das artes da cena durante a pandemia de coronavírus no Brasil têm reivindicado seu espaço nas redes e nas vidas de artistas e público. Por fim, outra questão pode ser levantada: quais serão as reverberações e os impactos dessas experiências digitais no teatro dos próximos anos?
*Raquel Castro é pesquisadora, atriz e diretora de teatro. Professora de Interpretação Teatral do Departamento de Artes Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Integra o Coletivo Mulheres Encenadoras (BH) e o grupo de pesquisa CRIA – Artes e Transdisciplinaridade da Escola de Belas Artes/UFMG, no eixo Performatividade e Política. Doutora em Artes, ênfase em Artes da Cena (EBA/UFMG) com estágio de pesquisa (doutorado-sanduíche) no Centro de Pesquisa Eur’ORBEM (dupla tutela: Université Paris-Sorbonne/CNRS).
Referências
1 Linguagem de formas animadas que ocupam um espaço cênico mínimo formado por um palco em miniatura confinado em uma caixa preta de dimensões reduzidas.
2 Comediantes e artistas de ruas franceses que declamam, aos pés dos edifícios, mensagens enviadas aos seus habitantes.
3 Referente às mídias digitais que revolucionaram a conectividade entre as pessoas e aumentaram consideravelmente a velocidade do compartilhamento de dados e de recursos audiovisuais.
4 Filósofo, sociólogo e pesquisador em ciência da informação e da comunicação. Estuda o impacto da internet na sociedade.
Bibliografia
HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
LEVY, Pierre. Que es lo virtual? Barcelona; Buenos Aires; México: Editora Paidós, 1999.