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Aurea Mediocritas: a receita para uma vida feliz

Por Heloísa Maria Penna
Editoria Alexia Teles Duchowny

O poeta da aurea mediocritas (medida de ouro) é o famoso Horácio que viveu na cidade eterna, na época dos grandes acontecimentos políticos e literários do Império Romano, o principado de Augusto. Nesse contexto, de relativa tranquilidade, “o ideal do otium contemplativo, da paz, o culto dos sentimentos mais nobres e delicados, constituem as notas mais características de toda a poesia augustal”, de acordo com Ettore Paratore. Em torno de Mecenas, “braço direito” de Augusto, se reuniram as principais figuras literárias do início do principado: Virgílio, Horácio, Polião, Vário, Tuca, Cornélio Galo e foi a capacidade desse “organizador de opinião” e, ao mesmo tempo “protetor liberal das letras de seu tempo” que permitiu, conforme Maria Helena Pereira, “uma das mais extraordinárias florações de talentos literários de todos os tempos”. A produção do círculo literário de Mecenas, intimamente ligado ao programa político de Augusto, se destacou por, embora dedicado à imitação, emulação e reelaboração da poesia grega, para Paratore, “criar uma grande tradição poética latina”.

Fixemos aqui nosso olhar para o poeta Horácio, um dos cultores mais entusiasmado da poesia helênica: buscou inspiração não só nos poetas helenistas (a partir do século III a.C.) quanto e, com muita convicção, nos poetas arcaicos gregos (século VII a.C.). Como apontado em nossa tese de doutorado, “Não é difícil determinar as principais influências exercidas pela literatura grega sobre a poesia de Horácio. O próprio autor faz questão de citar, em suas obras, seus modelos preferidos: Arquíloco, Alceu, Safo, Anacreonte, Píndaro e Simônides, poetas gregos da época arcaica” que foram “parceiros” de produção das obras do venusino: Sátiras, Epodos, Odes e Epístolas.

No livro das Odes encontramos poemas dos mais variados ritmos e temas: são composições em 13 esquemas métricos diferentes que modulam temáticas de amor, de cunho moral, de feitos militares e civis, de banquete, hinos religiosos, dentre outras.

Horácio é conhecido como o poeta da moderação, ainda que muitas outras características lhe possam ser apontadas, analisando o conteúdo de seus livros. O epíteto de “poeta da moderação” lhe cai bem por odes de cunho moralista, sátiras que criticam os vícios e por epístolas que apontam caminhos e orientam seja o jovem que se inicia na vida literária (Epistula ad Pisones); seja aconselhando um jovem, extraindo exemplos de Homero; seja mostrando a maneira de se conduzir como os grandes. Escolhemos aqui, para tradução e breve análise a ode II, 10.

A ode traduzida é uma composição de cunho moralista, repleta de conselhos e advertências e destinada a Licínio. As incertezas do futuro e as constantes mudanças de situação são metaforizadas pelos fenômenos naturais, tão volúveis e imprevisíveis aos navegantes. Segundo o poeta, o homem equilibrado adota a famosa “medida de ouro” (aurea mediocritas) que não é um “convite para compromissos fáceis, mas, antes, uma estratégia para suportar os extremos inevitáveis da vida”. Os deuses controlam o ciclo da natureza e os “altos e baixos” da vida. Assim como os invernos são passageiros e as calamidades eventuais, a vida alternará bons e maus momentos.

A tradução que se segue tem a intenção da fluência do português com o cuidado da preservação do sentido das palavras em latim. Respeita-se o número de versos e a estrutura estrófica da ode e, sempre que possível, resgata-se o modelo do último verso, menor, no número de sílabas, e de efeito semântico relevante, a partir do texto de François Villeneuve.

Ode a Licínio

Mais retamente viverás, Licínio, se não buscares sempre
o alto mar, nem prudente, enquanto receias
as procelas, expor-te demais a
um litoral acidentado.

Todo aquele que ama a dourada moderação,
seguro, não sente falta da sordidez
de um teto obsoleto, e sóbrio, evita
o invejável paço.

Muitíssimas vezes o ingente pinheiro é agitado
pelos ventos e as excelsas torres desabam
em queda brutal e os raios ferem
os píncaros do monte.

Espera, na adversidade e teme, na bonança,
a sorte mudada, um bem preparado
espírito. Pois retorna com o disforme inverno
Júpiter, o mesmo

que o remove. Se há mal agora e outrora,
não será assim: por vezes, com a cítara,
Apolo invoca a Musa silente e nem sempre
o arco enverga.

Nas situações difíceis, corajoso e
forte permanece; sabiamente também
enroles, sob vento bastante favorável,
as infladas velas.

Texto original: II, 10 Rectius uiues, Licini, neque altum/ semper urgendo neque, dum procelas/ cautus horrescis, nimium premendo/ litus iniquom.// Auream quisquis mediocritatem/ diligit, tutus caret obsoleti/ sordibus tecti, caret inuidenda/ sobrius aula.// Saepius uentis agitatur ingens/ pinus et celsae grauiore casu/ decidunt turres feriuntque summos/ fulgura montis.// Sperat infestis, metuit secundis/ alteram sortem bene praeparatum/ pectus. Informis hiemes reducit/ Iuppiter, idem// summouet. Non, si male nunc, et olim/ sic erit: quondam cithara tacentem/ suscitat musam neque semper arcum/ tendit Apollo.// Rebus angustis animosus atque/ fortis appare; sapienter idem/ contrahes uento nimium secundo/ turgida uela.

Breve análise da ode II, 10

Viver bem, segundo a ode, é controlar a ousadia, alegoricamente representada pela navegação em alto mar e navegação de cabotagem; evitar as ambições de lugares luxuosos, como o paço imperial, e projetos sinistros de locais moralmente deteriorados; resistir à mudança da sorte com um espírito bem preparado; e empregar a prudência até mesmo nas ocasiões favoráveis – enrolar velas com ventos excessivamente favoráveis. A ode é caracterizada pelo abundante emprego de advérbios, muitas vezes no grau comparativo de superioridade, que sugerem atitudes positivas de retidão.

Sobre a composição estrófica da ode sáfica
A estrofe sáfica, medida empregada por Horácio em 25 odes, de sua coleção lírica, é formada, no Latim, de três versos sáficos de onze sílabas e de um adônico.

(i) A primeira estrofe: viverás bem se…
A primeira estrofe da ode, se inicia com o conjunto verbo no futuro do presente e advérbio de modo (no latim, rectius uiues) projetando para o amigo leitor (Licínio) uma adequada para se trilhar na vida, sem se jogar precipitadamente nos perigos, representado pelo alto mar (altum) e sem se poupar demais, por excesso de prudência, receando os desafios naturais a serem enfrentados, como as procelas (procellae). Aquele que foge de um mal maior, precipitado, pode cair noutro oposto pior, na figuração literária, um litoral acidentado (liquus iniquom).

(ii) A segunda estrofe: A justa medida
O “justo meio” é a ideia central dessa segunda estrofe; admira-o quem age com segurança (tutus) e consciência (sobrius). A dourada moderação (aurea mediocritas) representa o ideal horaciano do bem-viver, é um conceito “inspirado na filosofia grega e particularmente nas teorias peripatéticas do justo meio”. A palavra mediocritatem, aqui traduzida por moderação, impressiona pelo volume, explorado esteticamente ao ser associada com a ideia de grandeza moral.

(iii) A terceira estrofe: quanto maior a altura maior a queda
Nessa estrofe, descreve-se a ação dos ventos sobre os pinheiros, da pesada estrutura sobre as torres e dos raios sobre os picos dos montes. Os alvos têm em comum a altura, ‘ingente pinheiro’, ‘excelsas torres’ e ‘picos do monte’ (ingens pinus, celsae turres e summos montis) e a vulnerabilidade de suas posições que facilitam o açoitamento (agitatur), a queda (decidant) e a ferida (feriantur). Essa é uma descrição figurativa que, transposta para o campo moral, tenciona mostrar que os soberbos, representados pelos pinheiros, torres e picos (ingens pinus, celsae turres, summos montis) sofrem as consequências de sua ambição. Alcançar os mais altos e distintos cargos não assegura tranquilidade, estar no topo da pirâmide social atrai problemas de iguais proporções, metaforizados pelos ventos, queda e raios (uenti, casus, fulgura). E quanto maior a elevação maior a queda (grauiore casu decidunt); quanto maior a exposição mais grave é o dano (feriunt summos fulgura montis). O desenvolvimento da estrofe não traz surpresas com um único assunto “em pauta”: o enfrentamento corriqueiro das forças naturais.

(iv) A quarta estrofe: mantenha a mente serena e preparada
O efeito das aproximações insólitas, ter esperança na adversidade (sperat infestis) e temer na bonança (metuit secundis) é imediato no espírito do leitor. O estranhamento chama atenção e provoca reflexão: a instabilidade caracteriza a vida. O conteúdo da estrofe flui de modo linear, em doses certas, sem pressa, buscando fixar bem as palavras e seguindo a didática de uma exposição oral. O poeta faz apologia à sábia desconfiança, tece elogios à postura crítica e admira um coração bem preparado para a vida. O último verso traz o nome de Júpiter, o pai dos deuses, como o articulador desse ciclo das estações que é também o da vida.

(v) A quinta estrofe: Apolo, a mesma mão que tange as cordas estende o arco
A estrofe 5 acrescenta às regras do bem-viver a transitoriedade dos acontecimentos: “não há mal que sempre dure”, um deus traz e leva a estéril estação, outro, deixando de lado o arco (instrumento agressivo), por vezes, presenteia o mundo com regeneradora música. Para reforçar a ideia da capacidade restauradora do tempo, Horácio evoca Apolo, o deus que pune, mas reconforta, mostrando sua autoridade sobre os homens e sua influência na harmonia terrestre.

(vi) A última estrofe: o sábio se mantém forte nas adversidades
Nessa última estrofe percebemos o cuidado do poeta em estruturar os versos, pondo em concordância forma e conteúdo. Essas características externas estimulam a composição de enunciados que expressam emoções, noções e evocações afins como os apresentados nas passagens iniciais dos versos onde se registram situações aflitivas (rebus angustis); ordem de apelo ao heroísmo, ‘forte permanece’ (fortis appare); e recomendação de recuo, aparentemente contraditória, ‘enrole sob vento’ (contrahes uento). O verso de encerramento da estrofe e da ode, ‘as infladas velas’ (turgida uela), retoma a falsa ideia de felicidade pela ostentação de grandeza, ‘ingente pinheiro’, ‘excelsas torres’ e píncaros do monte’ (ingens pinus, celsae turres e summos montis). A vela enfunada pelo vento excessivamente favorável representa, na verdade, um perigo para o nauta confiado em seu volume e velocidade prometida.

Bibliografia
COMMAGER, S. The Odes of Horace: a critical study. New Haven: Yale University Press, 1962.
HORACE. Odes e Épodes. Texte établi et traduit par François Villeneuve. Paris: Les Belles Lettres, 2002. p. 70-71.
HORÁCIO. Odes, Epodos e Poema Secular. Explicados literalmente, traduzidos em português e anotados por Francisco Antônio Picot. Paris: Librairies-Imprimeries Reunies, 1893.
PARATORE, E. História da Literatura Latina. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983. p. 351; 352.
PENNA, H. M. M. M. Implicações da Métrica nas Odes de Horácio. 333 f. Tese (Doutorado em Letras Clássicas: Latim). São Paulo, USP, 2007. p. 30. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8143/tde-17122007-120823/publico/TESE_HELOISA_M_M_MOREIRA_PENNA.pdf
PEREIRA, M. H. da R. Estudos de História da Cultura Clássica II: cultura romana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984. p. 231-232.

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