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Tipologias arquitetônicas

Por Daniela Paoliello

A fotografia como memória do futuro no trabalho de Rafael Adorján

A editora de Fotografia do Letras Daniela Paoliello entrevista Rafael Adorján fotógrafo e artista carioca, para conversar sobre a obra  “Doze esquinas de subúrbio e uma dúzia de quiosques de praia”, em parceria com o fotógrafo inglês Wes Foster.

 

A série Doze esquinas de subúrbio e uma dúzia de quiosques de praia é composta por 24 fotografias, sendo 12 imagens  de quiosques de praia na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, captados por Rafael Adorján, e outras 12 imagens de Wes Foster, que escolhe fotografar sistematicamente em seu caminho para o trabalho, as esquinas vitorianas de Hull (subúrbio próximo à cidade de Manchester).  As imagens são feitas de maneira frontal, no intuito de criar uma espécie de inventário de uma arquitetura típica. Apesar do vazio dos espaços, que nos faz crer que o trabalho teria sido realizado recentemente, ele é de 2017, bem antes da pandemia.

Daniela Paoliello/ Letras: Adorján, você poderia me contar um pouco mais sobre o processo de criação do trabalho “Doze esquinas de subúrbio e uma dúzia de quiosques de praia”?

Rafael Adorján: É importante salientar que esse trabalho foi uma espécie de “encomenda” gerada a partir da formação de duplas de trabalho iniciadas em uma primeira exposição chamada “Reply All”, realizada na Manchester School of Art, com curadoria de Raphael Fonseca, em 2016. Na primeira oportunidade, fizemos uma publicação, um zine a partir de fotos e de nossas conversas registradas por email. Já o trabalho sobre o qual estamos conversando surgiu após a confirmação de uma versão brasileira, da exposição que foi realizada no Espaço Despina, no Rio de Janeiro, em 2017. Para essa nova edição, as mesmas duplas seriam mantidas porém com o objetivo de se produzir obras diferentes. O desafio era aprofundar as relações com Wes a partir da produção de um novo trabalho, mesmo que à distância. Wes escolheu fotografar sistematicamente em seu caminho para o trabalho, as esquinas de Hull (subúrbio próximo à cidade de Manchester, onde vive) repletas de casas de arquitetura típicas do estilo vitoriano, algumas delas geminadas e que são apresentadas de maneira peculiar por meio de seu conjunto. Ao partir de uma monotonia da paisagem, Wes questiona valores e padrões de vida daquela sociedade de maneira algo irônica, bem ao estilo de uma tradicional comédia inglesa.

Já o meu “tema de obsessão” teria que ser algo que gerasse um contraste à série que Wes estava desenvolvendo, com suas fotografias de esquinas típicas de subúrbio. Foi dessa forma que decidi ir em busca de quiosques da praia da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, captando todos no intuito de criar uma espécie de catalogação de uma arquitetura típica. A montagem do trabalho na exposição, com a apresentação de cada imagem, lado a lado, alternando o ambiente de cada local teve a intenção de enfatizar essas diferenças de aspecto cultural, mas também de criar uma espécie de jogo, em que a vista buscasse formar possíveis combinações entre pares de fotos similares. Os trabalhos “casaram” gerando uma dinâmica própria por meio de uma relação formal entre imagens distintas, mas que surgiu a partir da informalidade advinda de elementos do cotidiano de ambos.

DP/ Letras: A série transparece o desejo de trabalhar a partir de uma tipologia arquitetônica, e dialoga com o estilo fundado pelo casal Becher (Hilla Becher e Bernd Becher), fotógrafos alemães que influenciaram fortemente a fotografia contemporânea, conhecidos por inventariar estruturas industriais em desaparição na era moderna. A junção da fotografia com essa lógica tipológica exacerba sua dimensão sociológica, capaz de revelar aspectos do próprio tempo, mas também sua dimensão museológica, como se a fotografia fosse capaz de conservar essas arquiteturas que um dia vão desaparecer.  É interessante que, quando eu olho essas imagens, parece que elas foram feitas atualmente, em contexto de pandemia, justamente por esse vazio, ausência de pessoas nas fotografias. Poderíamos fazer um exercício poético e pensar que essa série nos remete a uma memória do futuro ou a uma distopia realizada, na qual o futuro se presentifica de uma forma inesperada com o desaparecimento das pessoas e não das coisas. Você poderia comentar um pouco sobre como esse trabalho ganha essas outras camadas nesse momento que estamos atravessando?

RA: Acho extremamente interessante que o trabalho possa trazer essa leitura visto que foi produzido antes do período de pandemia. Isso para mim demonstra que com o passar do tempo ele permanece pertinente, no sentido de ainda gerar novos significados. Mas sim, entendo os termos enquanto exercício poético, sobretudo “memória do futuro”, por haver uma relação de correspondência com o porvir, no sentido de uma imagem responder à outra do meu parceiro nessa série. Já a distopia remete a um futuro muito desesperançoso, mas também faz sentido por colocar a figura humana em condição de desaparecimento, fruto de um mundo inabitado. Ainda que o trabalho também dialogue com elementos mais leves e sutis, como o humor. 

DP/ Letras: Quando penso o que conecta suas fotografias às de Wes Foster,  penso justamente nesse vazio que descaracteriza o uso ritual dessas estruturas arquitetônicas (entrar, sair, ocupar, socializar, comprar, morar), e as aproxima de sua natureza estrutural, quase como se existissem por si mesmas, prescindindo de sua funcionalidade. Se afirmam, assim, frente à câmera fotográfica enquanto objetos a serem coletados. Você poderia comentar um pouco essas questões?

RA: É importante estabelecer uma diferença entre os conceitos de “vazio” e “abandono”. O vazio remete à dualidade presença/ausência mas não necessariamente a uma descaracterização total desses espaços. Existe também a questão do momento presente calcada na ideia de se constituir um repertório, uma coleção de um mesmo “tema de obsessão” para ambos criarem uma contraposição diante de uma ideia de conjunto, como podemos ver na forma como o trabalho foi apresentado.

DP/ Letras: Conta um pouco mais sobre suas referências pro trabalho?

RA: Além da referência ao casal Becher que você já destacou, o trabalho também faz uma alusão direta ao modus operandi do artista pop norte americano Ed Ruscha, tanto que a referência é explicitada inclusive no título do trabalho, que remete às seus livros seminais como “Twentysix gasoline stations” ou “Nine swimming pools and a broken glass”. No nosso caso, não importa tanto o objeto propriamente em si, mas sim a relação que ele constrói no conjunto de uma tipologia arquitetônica um tanto antagônica, criando essa espécie de jogo da memória. Poderiam ser piscinas ou postos de gasolina, mas são quiosques de praia e casas de subúrbio, onde também a sua geolocalização acaba sendo importante por trazer elementos culturais característicos das cidades do Rio de Janeiro e de Hull, nos arredores de Manchester, de onde vem as minhas imagens e as de Wes Foster.

DP/ Letras: Eu observo em outros trabalhos seus, como o Religare, Correr, e  MSV432, essa questão do vazio, da ausência de pessoas. Você acha que essa saída de cena do humano abre espaço para outras presenças?

RA: Pode existir muita presença na ausência e muita ausência na presença, digamos assim. O nosso silêncio pode dizer muitas coisas, e podemos não dizer nada mesmo falando muito. Muitas vezes a fotografia é justamente sobre o que não está dentro do quadro, como percebo muitas vezes no caso da série Religare, que também trata desses vazios preenchidos pela natureza. Já em MSV432, a questão do vazio está relacionada à presença de uma construção arquitetônica. Gosto de lidar com essas ambiguidades da linguagem, como na metáfora do copo meio cheio, meio vazio. O fator humano está sempre ali, mas presentificado de diferentes maneiras, talvez de uma forma mais subjetiva ou mesmo metafísica, de efeito suprassensível e simbólico.

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